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A democracia vencerá?

segunda-feira, 27 de março de 2023

Atualizado às 07:22

Os dados objetivos e a análise subjetiva da evolução da história brasileira nos últimos quarenta anos demonstram que o crescimento econômico do país não ganhou tração que pudesse caracterizar consistente ciclo de transformação estrutural do país. Neste período, vale notar, o crescimento econômico se tornou estruturalmente dependente de transformações tecnológicas e da contribuição do "capital do conhecimento" para drenar capacidades de inovação que proporcionassem o aumento da produtividade. Ao contrário, o Brasil ficou atolado em níveis deploráveis de educação e na raquítica formação de técnicos e cientistas capazes de levar o país para o centro do capitalismo mundial, para citar dois exemplos.

Do ponto de vista político, este atraso econômico estrutural brasileiro foi construído concomitantemente ao aprofundamento das características e laços de nossa formação para exercício do Poder Político. À corrupção, ao clientelismo e ao patrimonialismo, outros vícios sociais se juntaram: a continuada e crescente desigualdade social, a ausência de concretas oportunidades sociais, a falta de dignidade humana mínima, o racismo e a desigualdade de gênero.

A polarização política recente (desde meados de 2017), a crise institucional que origina inconsistências e confusões funcionais do Poder Estatal, o enfraquecimento das organizações sociais e trabalhistas, o declínio da participação dos salários no PIB, o desemprego e as condições deterioradas de vida no campo e nas cidades completam o quadro altamente preocupante no nosso país. Há de se reconhecer também que, mesmo nos países centrais do capitalismo, este processo está presente e se tornou tendência estrutural.

Neste contexto de atraso econômico que faz o Brasil permanecer dentre as nações atrasadas do mundo, juntou-se a fragilidade crônica da representação política. Há poucos anos, o enfraquecimento ideológico e representativo da classe política eram razões para processos arrastados e incompletos de reformas democráticas e econômicas. O processo político formal, tornou o tradicional "retardamento" de reformas em explícito impedimento concreto destas, agora. Não há a menor possibilidade que o atual sistema político brasileiro possa contribuir em suficiência para o desenvolvimento e o progresso do país. Reformas provavelmente acontecerão, mas com a excessiva mitigação em vista de interesses específicos acabarão por produzir ineficácias e ineficiências para sairmos do atraso.

Ocorre que diante deste cenário, os movimentos sociais se radicalizaram em turbas que, antes desorganizadas, se tornam a cada dia mais coesas. O conteúdo ideológico rarefeito de antes, se torna a cada dia em movimentos mais consistentes a pregar a ruptura institucional e a adoção de modelos de governo autocráticos e antidemocráticos.

As elites, diante desse enfraquecimento, juntam as suas demandas de forma oportunística na tentativa, ainda vã, de reduzir o gap do atraso econômico em relação ao mundo e/ou se inserir nas cadeias econômicas mais lucrativas. Vale dizer que o agronegócio, modernizado e produtivo, ocupa o papel que na República Velha, foi do café: aqui é onde residem os maiores riscos em termos antidemocráticos e autocráticos.

Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 não foram, de forma alguma, o ápice deste processo de deterioração do processo político. Todos as tendências estruturais em prol da radicalização estão presentes e atuantes na sociedade brasileira. A popularidade de Jair Messias Bolsonaro é desses sinais da demanda de parte substantiva da população por um "regime forte". A reação positiva das instituições republicanas, após os eventos de janeiro último, reduziu o tom de voz dos segmentos radicais, mas a impaciência social em relação a "velha ordem" política persiste forte.

Também importante relevar que dois modus operandi recentes, amplamente utilizados pelas hostes radicais, permanecem, mesmo que em menor intensidade: (i) os argumentos sobre a ilegitimidade das eleições e (ii) a utilização de notícias falsas ou deturbadas (fake news) e discursos de ódio. Observada a cena internacional sob este prisma, apenas falta a organização de forças paramilitares para que se configure plenamente a vigência de grupos políticos reacionários organizados e prontos para a tomada do poder. No Brasil, o imbricamento parcial das Forças Armadas com grupos radicais é sinal muito preocupante.

Esse é o contexto estrutural do Brasil atual: atraso econômico enorme somado a riscos potenciais e imanentes à democracia. A sociedade assiste a tudo com passividade, talvez em função das disfuncionalidades do processo político formal.

Face ao que discorrido acima é que deve ser avaliado o desenvolvimento das atividades governamentais até o momento.

Parece-me que se faz necessária uma "organização mais estratégica" do governo que permita a existência de um "fio condutor" entre as diversas iniciativas que têm sido tomadas. Provavelmente, o fato de o governo ter sido formado à luz de uma "frente ampla" acaba por desalinhar as iniciativas em vista de objetivos estratégicos maiores. Afora isso, possíveis visões de mundo incompatíveis entre si e entre os vários segmentos políticos (desorganizados), há de se considerar que os vícios sociais da corrupção, do clientelismo e do patrimonialismo persistem em ação dentro e fora do governo. Aqui não me refiro a fatos aflorados, mas às raízes conhecidas da política do Brasil.

Por tudo isso, a fixação de ambiciosos objetivos estratégicos precisa seja estabelecida. Por exemplo, a criação de um "plano diretor" de desenvolvimento tecnológico pode ser um dos direcionadores estruturais para o desenvolvimento econômico, não para fazer o PIB crescer, mas para o país progredir, no sentido de se desenvolver holisticamente. Aqui, o Brasil tem na área de energia e de meio ambiente boa vantagem frente a outros países, não resta dúvida. Logo, é possível construir um modelo conveniente e de originação de oportunidades para irmos à frente. Feito este "alinhamento estratégico" as tarefas do governo poderiam ser derivadas em novas tarefas, com mais rigorosa seleção de iniciativas. Por óbvio, trata-se apenas de um "exemplo teórico" para fins deste artigo. Nesse diapasão, a tarefa de construir um orçamento viável se tornaria muito mais nobre do que a elaboração de uma "âncora fiscal" que apesar de necessária e urgente, ao invés de nos assegurar no médio e longo prazo, pode vir a nos afundar no atraso, a despeito da eventual estabilização econômica momentânea.

Vale dizer que estes "objetivos estratégicos" podem servir à consolidação de um projeto político menos fragmentado, com a agregação de atores e partidos políticos "soltos" em termos ideológicos para um leito comum de atividade legislativa. Outros órgãos de Estado, como o Banco Central, podem ser convencidos que estes objetivos estratégicos se constituem de facto em saída consistente e estabilizadora, não apenas da taxa de inflação (momentaneamente "de custos"), mas também para as instabilidades políticas e sociais, além das econômicas. A atividade de planejamento (não somente do ministério homônimo) do governo tem de ser engrandecida para dar dinâmica ao país. A estagnação do momento, além de concreta, é conceitual.  Precisa de uma construção politicamente mais sólida e tecnicamente mais robusta.

Outro aspecto importante é que para que esta política estratégica tem de ser positiva e construtiva para todos, mesmo que existam "perdedores e ganhadores". Diante da mais absoluta desigualdade social que vivemos, não resta dúvida de que os interesses difusos precisam prevalecer perante os direitos organizados e concentrados. Aqui a liderança política e o convencimento democrático permanente das elites é a tarefa mais importante para fazer entender os riscos enormes que estamos a viver. O Presidente Lula é legitimado pelas urnas para a tarefa. Não precisamos assustar as elites com ameaças e medidas. É preciso que estas participem dos frutos que virão do progresso do país frente à estagnação corrente. Este é um percurso arriscado, mas que necessita ser percorrido.

Um "pacto social" no Brasil é inviável do ponto de vista formal. Não teremos um "Moncloa", para usar o exemplo espanhol, porque não temos organização social, política e econômica equivalente para a edificação de uma obra conciliadora de interesses. Todavia, as forças dispersas podem e devem ser atraídas ao centro político por meio da criação de "empatias" com interesses estratégicos que façam sentido no seu conjunto.

A democracia no Brasil e no mundo está sob cerrado fogo. As sociedades estão fragmentadas e divididas. Estas vulnerabilidades já foram captadas para fins de radicalização política e para tomar o Poder Político. De fato, os extremos, sobretudo à direita, persistem ganhando espaço, depois de alguns recuos momentâneos. Não tenhamos ilusões a respeito.

Os democratas e o governo devem radicalizar positivamente as suas metas por meio de ações estratégicas ambiciosas que aglutinem a sociedade. A desigualdade social é o maior ingrediente a turbinar a radicalização antidemocrática. Precisamos progredir. As inconsistências internas ao Poder Político são uma espécie de conspiração voluntária e involuntária contra a democracia em meio ao nosso profundo atraso econômico.