Compreender o momento, empreender a união
segunda-feira, 2 de janeiro de 2023
Atualizado às 09:15
"(...) a história não é em absoluto um processo, mas uma miscelânea de mudanças caleidoscópicas - algo como nuvens que se juntam e se dispersam de maneira aleatória"1.
Dentre as várias possibilidades analíticas que permitem a tomada de consciência sobre a realidade estrutural e conjuntural do Brasil pós-Bolsonaro, talvez, no momento, a forma mais concreta de fazê-lo é reconhecer que os fatos políticos, econômicos e sociais não podem ser caracterizados enquanto "processo". O Brasil está alquebrado e espedaçado em grupos perdidos em meio ao corpo social. A aceitação desta premissa pode contribuir para antecipar a primeira tarefa do governo: criar e dar propulsão a um novo "processo" de desenvolvimento para o país.
O país tão fragmentado, sobrestado por tantas narrativas sobre a realidade factual e sem razoável percepção cognitiva e metodológica sobre o que se passa, pode fazer com que o novo governo se perca na condução dos negócios de governo e de Estado. Se há uma herança nítida do ex governo do ex-capitão é a confusão de objetivos permanentes, políticos e econômicos. Basta verificarmos que do lado da economia quis a administração anterior dar vazão concreta às envelhecidas ideias liberais, representadas pelo seu ministro da Economia Paulo Guedes. De fato, o resultado obtido é deplorável: a política fiscal foi esburacada por isenções tributárias que visaram atender às demandas de ocasião (e.g. a desoneração dos combustíveis e do IPI de vários produtos), a política monetária se esmerou a enfrentar a inflação de custos originada pelo câmbio desvalorizado e pela alta dos preços das commodities (e.g. petróleo e alimentos) o que onerou todo sistema econômico com um custo financeiro recorde mundial. A política financeira foi absolutamente condicionada pela busca de apoio político junto ao esfomeado centrão que, em prol de si, dourou das "emendas secretas" à aceitação passiva de um orçamento de 2023 com algo como 150 bilhões de reais de "furos ao teto". De fato, o estranho liberal de Chicago não é reconhecível pelas reformas liberais, mas pela submissão inconteste ao seu capitão e pela destruição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta lei passou de "ordenamento" político das finanças para a dinâmica dos cortes continuados do orçamento para ajustar a conta e evitar manchas ao currículo do ministro. Esta emergência fiscal durante toda a administração do ex-capitão é a marca que tem de ser superada no governo Lula, prima facie.
Ocorre que ninguém pode imaginar que um governo é capaz de dar propulsão ao desenvolvimento com o mero controle da finança pública. Disciplina fiscal é meio e não fim, por óbvio. De toda a forma, não se pode adotar uma atitude blasé quando se fala sobre o tema. A simplificação de atribuir ao gasto público sem teto certas virtudes miraculosas é erro crasso no uso da expressão latina e velhíssima. Estabelecer uma "âncora fiscal" não pode ser um ato de criação espetacular. Tem de ser algo ordinário, óbvio e razoável, como as coisas mais comezinhas da vida humana. Perder tempo e esforço mental na discussão e elaboração sobre o tema pode significar o primeiro fracasso na consecução da "consistência processual" necessária ao novo governo, diante da fragmentação que enfrentará. Melhor investir em outras searas do debate público.
O principal caminho a ser trilhado a partir da inauguração do Governo Lula seja o de deixar claro quais são as fronteiras do desenvolvimento que pretende empreender. Aqui a tarefa é perigosa, mas é acima de tudo fascinante e necessária. Afinal, se deixarmos de lado a mentalidade e o complexo de vira-lata de certas hordas das elites brasileiras, o Brasil é dos pouquíssimos países do mundo, senão somente ele, que pode engendrar um padrão de desenvolvimento inovador e que serve na medida ao século XXI e, quiçá, além disto. Num artigo como este não se pode elaborar longamente sobre o que seria o "novo padrão". Todavia, para não ser furtivo em relação à provocação, creio que é chegada a hora do Brasil apostar numa revolução econômica na direção da economia limpa, na sustentabilidade ambiental e social, na adoção da felicidade como conceito e padrão econômico.
Provavelmente, haverá aqueles que trarão à baila a longa série de dificuldades para engendrar os processos necessários à consecução desta tarefa política e econômica. Inegável este "pleonasmo" argumentativo", pois afinal construir novas ordens é tarefa difícil mesmo. Todavia, suspeito que, por detrás das mentes que colocam as dificuldades como barreiras anteriores à determinação desta nova construção, reside a submissão ideológica e colonial ao que vige lá fora. Os países centrais do capitalismo atual são, no seu conjunto e individualmente, problemáticos (senão, inviáveis) para construir plenamente essa nova "ordem econômica sustentável". A vantagem comparativa de nosso país é inegável. Não há país algum no mundo com as nossas características de meio ambiente, clima, dimensão territorial, unidade linguística, presença pacífica, fronteiras estabelecidas, litoral aberto e imenso e assim vai. Vale dizer que aqui não se trata de louvação às virtudes fundadoras do Brasil: é a racionalidade analítica que deve nos conduzir por este caminho.
Há décadas, a sustentabilidade ambiental e social não era contemporânea aos processos políticos e sociais. Não é o caso de agora. A tomada deste novo caminho pelo Brasil é absolutamente contemporânea com as demandas de nosso povo e da humanidade. Chegou a hora, é certo!
Uma escolha como esta pode ser difícil, mas tem efeitos colaterais extremamente benéficos. A anamnese do caso brasileiro nos leva a esta constatação. O Brasil é hoje um país fragmentado internamente pelas divisões de toda a ordem: entre pobres e ricos, pretos e brancos, esquerda e direita, estados do sul e do norte, pró-imunizações e contra elas, evangélicos e não evangélicos e assim vai. Esta é a herança mais maldita que poderia ser legada ao nosso país. O esmero do ex-capitão e seus napoleões perdidos em trucidar as resistências civilizadas ao seu projeto autoritário, levou-nos a esta desunião inédita. Pois bem: é a sustentabilidade a melhor fonte para acalmar as mentes e pô-las para construir e não para destruir e dividir. A nossa vocação para a cordialidade que destrói a coisa pública pode ser, por que não?, a alavanca para aglutinar a sociedade em torno de interesses muito próximos: nossas próprias vidas.
No cenário internacional, caótico e sem ordem jurídica e política, o Brasil tem na sustentabilidade o seu único argumento soberano e incontestável. Somos uma potência ecológica e diversa que conversa com a modernidade e que pode ser tratada sem as submissões coloniais aos modelos mentais e políticos de alhures. Toda a gama de informações e tecnologia disponível pode nos levar a engendrar um novo tipo de produtividade, não relacionada à mais-valia sobre o trabalho e a elevação da produção, mas à qualidade de vida, à poupança da natureza, a um novo padrão de tecnologia e à verdadeira transição energética. Neste último aspecto, vale lembrar que o Brasil é o único país do mundo que dispõe hoje de uma matriz energética tão diversificada e útil à passagem do fóssil à sustentabilidade.
A mistura de enorme apatia política dos donos do poder e da perigosa cisão na sociedade brasileira, meticulosamente estimulada pelo trágico governo do ex-capitão, será barreira enorme para o sucesso da nova administração do presidente Lula. Não é possível prever ou gerar razoáveis expectativas sobre o país nos próximos anos porquanto a situação é delicada, mesmo que não crítica. Para ter sucesso o governo precisa utilizar da vitória estreita das urnas para alargar a base social que o sustenta. Isso não poderá ser conseguido de forma ordinária: não precisamos recorrer a Winston Churchill para saber que situações excepcionais necessitam de soluções excepcionais. No caso do Brasil, a excepcionalidade não é o autoritarismo tentado pelo ex-capitão e parte dos "generais de pijama" que o cercavam. A excepcionalidade que se pode provocar é o encontro do país com os seus melhores destinos e virtudes, junto aos mitos que fundaram a sua existência, a sua natureza, a extensa terra que rodeia a nossa gente, essa gente que mergulhou numa desunião que conspira contra o seu próprio futuro. A hora é da sustentabilidade.
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1 Kracauer, S. in History: the last things before the last. Markus Wiener, 1994, p.160-1: Princeton.