Governar sem verdades e mentiras sagradas
terça-feira, 20 de dezembro de 2022
Atualizado às 09:01
"Tente viver como se fosse manhã".
Zaratustra, Nietzsche
A democracia não é apenas um "sistema" ou "forma" de tornar concreta a política. A democracia pode ser analisada e exercida sob diferentes enfoques vez que, na qualidade de fenômeno social (pólis), permite diferentes angulações sobre a convivência entre os "agentes políticos de determinada sociedade.
A necessidade de "sucessão" no exercício do poder político é das mais desafiadoras faces da democracia na atualidade: sem sucessão não há democracia, pois é desta que deriva a liberdade de escolha daqueles que exercem o Poder Político. Sem liberdade a democracia não pode materialmente existir. Afinal, é o escrutínio dentro da dinâmica social que cria as condições para a escolha de quem governa.
Por outro lado, a corrupção está entre as distorções mais relevantes da democracia pois que o processo de sucessão pode ser mitigado ou destruído e o escrutínio social passa ser negativamente condicionado pelo envolvimento dos cidadãos com os empoderados - o Brasil sabe bem disso. A primeira derivada da corrupção leva a um interesse público destroçado. Sempre.
Os primeiros e singelos dois parágrafos deste artigo servem apenas para nos lembrar de que o esgarçamento eleitoral de 2022 ocorreu pela polarização entre dois candidatos que expressaram em menor medida a formação de correntes de opinião pública com fronteiras balizadas pela natural diversidade e pluralidade democrática (da esquerda à direita do espectro político) e muito mais a luta por meio do voto (graças!) entre os que acreditaram que a perspectiva de sucessão democrática não poderia ser arrebentada por um governo autoritário e, quiçá, ditatorial ou, face à esta possibilidade, pelos que acreditaram que a corrupção poderia destruir a expectativa de um Estado minimamente republicano.
Claro que se trata de uma simplificação que, neste momento histórico de nosso país, faz todo o sentido. (Voltamos aos bancos escolares em matéria democrática). A diferença microscópica de votos entre Lula e Bolsonaro (1,8% dos votos) materialmente não simboliza per se o acirramento da disputa eleitoral. Significa, isso sim!, o fracasso de nossa democracia como expressão de que a neutralização dos "inimigos da democracia" via o voto universal poderia falhar.
Não foram poucos eleitores dispostos a trocar a democracia pela ilusão da corrupção derrotada. De outro lado, foram outros muitos que disponibilizaram os seus votos para barrar um regime autoritário.
Esta terrível constatação é facilmente identificável por aqueles que vivenciaram a eleição. Deveria sê-lo também pelos que ganharam a eleição, não é mesmo?
É certo que os modelos baseados exclusivamente no tal do "mercado" não são fonte infindável de asseguração de que a democracia será sempre vitoriosa. Veja-se o caso da China que se estruturou como uma "economia de mercado", mas de facto é uma ditadura autocrática, dita comunista. O "mercado" pode viver sem a democracia, mas felizmente o contrário não é possível. Afinal, o escrutínio do voto livre repousa sobre direitos fundamentais insuperáveis, como o direito de consumir e investir livremente e no livre trânsito das ideias e expressões culturais. No mundo moderno, a restrição ao mercado decorre dos limites à sobrevivência e preservação da natureza, na maior igualdade social, no respeito às diversidades humanas e do meio ambiente e assim vai. As externalidades modernas tomaram conta de nossas preocupações maiores.
A corrupção muito provavelmente não será extinta. Todavia, é obrigação de quem governa mitigar, ou mesmo, eliminar os meios propulsores da corrupção. Há compêndios volumosos que tratam deste tema. É dispensável a titulação de PhD para entender e dar vazão às boas práticas políticas e sociais em prol da redução da corrupção.
No sentido do que acima escrevo, em suma, tivemos em 2022 (i) uma escolha de governo com estreiteza mínima de votos em face da polarização política, (ii) a rejeição dicotômica de um candidato em face das práticas de corrupção em suas administrações anteriores e de outro candidato que tentou (e tenta) pregar e agir contra a democracia e (iii) a vitória por uma margem de votos irrisória para justificar a glorificação do vencedor.
Os termos da vitória eleitoral do governo vindouro deveriam motivá-lo à uma postura serena, mesmo que arrojada, em prol da renovação da política, das melhores práticas de governo e da inovação criativa e ética no trato da coisa pública.
A legitimação da nova administração, do ponto de vista material e não somente eleitoral, depende da criação de excelentes expectativas a começar por aquilo que quase criou uma ruptura política. O combate à corrupção, ao clientelismo, ao patrimonialismo, à timocracia desprovida das virtudes na gestão da coisa pública. Tendo sido à vitória do novo governo promovida pelas suas virtudes democráticas por que as destroçar no reavivamento de seus desvios históricos? Aqui não se faz juízo de valor sobre as razões desta imagem histórica, justa ou injusta, de quem quer que seja. Referimo-nos exclusivamente à necessária percepção de que é preciso atuar naquilo em que o distinto povo desconfia e quer ver corrigido.
Vê-se que a formação e estruturação da administração do candidato vencedor carece de cuidados com as cavidades e abismos nos quais pode tropeçar e levar a todos. Mal dizer, a título de ilustração, sobre a necessidade de uma âncora fiscal ou de uma gestão inovadora e escorreita do orçamento não é bom começo para quem desconfia de que o risco-país vai subir e pode estragar a festa da democracia. Mesmo para mudar as linhas mestras de uma política fiscal que se considera superada é necessário buscar apoio na sociedade e justificar a nova ordem fiscal. Se não há sabedoria no tal do "mercado" não pode faltá-la a quem não quer sacrificar a Política face ao tal do "mercado".
Da mesma forma, não é bom sinal empoderar políticos e tecnocratas sem que se vislumbre ex ante a possibilidade de estes cuidem bem dos interesses mais profundos e legítimos da sociedade. Frentes amplas na formação de governos não deixam de requerer a estreiteza frente às más práticas com a res publica, bem como, a visão estratégica para que o país saia deste atoleiro econômico, social e político no qual todos estamos metidos.
Sacrificar a Lei das Estatais, mesmo que se deseja melhorá-la, não é bom passo na longa caminhada. A perda de poder simbólico é enorme.
O tal do "mercado" forma preços e variações de valor a partir de expectativas. A política forma expectativas a partir de fatos. A sociedade está vendo, desde a eleição, os fatos ao tempo em que forma as suas expectativas. Não se pode errar na saída sob pena de jogarmos o país nas mãos dos que estão dispostos a sacrificar a democracia em uma troca injustificada por uma nova ética autoritária.
Por fim, creio que cabe relembrar que, nas escolhas dos que vão governar, a ingratidão aos apaniguados talvez seja uma virtude, no uso não-literal da profética e irônica sentença do grande Charles De Gaulle.
Um bom Natal a todos e um feliz ano novo.