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O "recado" do mercado e a demanda dos excluídos

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Atualizado às 10:03

Economia é uma disciplina social que ganhou contornos científicos conforme foi estilizada ao longo do século passado por modelos com a aparência cada vez mais hermética porquanto matemática se tornou. Todavia, se tem uma coisa certa é que a distância entre muitos temas da disciplina econômica e a realidade deixa muito a desejar. Exemplo evidente diz respeito aos efeitos da quantidade e velocidade da moeda sobre a inflação. Por diversas razões, sabe-se que esta relação não faz sentido há algum tempo, muito embora significativo arcabouço teórico-matemático tenha sido erigido ao redor desta "escola" e os monetaristas tenham adquirido nos anos 1970 ares de profetas. O nosso ministro da Economia Paulo Guedes foi propagador desta ideia que deu de frente com o muro da singela realidade. 

Há, porém, certos postulados econômicos que foram sendo consolidados ao longo do tempo vez que demonstraram conexão razoável (mesmo que não plena e perfeita) com os fatos e fenômenos econômicos. Um destes postulados diz respeito à necessidade de equilíbrio fiscal no longo prazo. De forma sumária, verifica-se que o valor presente dos fluxos de superávits primários (resultado da diferença entre receitas e despesas do governo antes do pagamento dos juros da dívida pública) tem de guardar razoável equilíbrio com o endividamento público real (deflacionado pelo nível de preços). Com efeito, se a expectativa for a de que os superávits fiscais futuros cairão, as expectativas serão de aumento de endividamento e consequente incremento do risco de inadimplemento.

Há dúvidas se o equilíbrio fiscal tem significativo efeito direto sobre a inflação, mas há certo consenso que as expectativas são afetadas pela percepção sobre a política fiscal o que indiretamente afeta o nível dos preços (inflação).

Ora, a despeito de se tratar de relevante ponto de partida para a lógica relacionada às expectativas, é preciso reconhecer que o equilíbrio fiscal, assim como a disciplina econômica, tem natureza política. (Aliás a "economia" perdeu no Ocidente o aposto "política" por causa da disputa ideológica entre marxistas e liberais ingleses vez que os primeiros usavam generalizadamente o termo e os liberais resolveram "extingui-lo" nos seus escritos).

Em sendo "político" o tema fiscal, é preciso ter em mente que a formação do superavit (déficit) fiscal depende das escolhas que são feitas pela sociedade, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, em relação à origem das receitas e a destinação dos gastos públicos. Em princípio, se espera que tais escolhas sociais intermediadas pelos políticos guardem racionalidade de, pelo menos, duas espécies: (i) que sejam utilizados critérios socialmente isonômicos (critério político de eficiência) entre mais ricos e mais pobres e (ii) que a aplicação e arrecadação dos recursos em despesas e investimentos seja fiscalmente sustentável - o endividamento não pode se elevar de forma desalinhada com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Feitas estas considerações iniciais, vamos aos eventos da semana passada. No mercado financeiro e de capital brasileiro houve uma sólida e forte reação ao discurso do Presidente eleito Lula, quem afirmou em discurso que os gastos sociais (e.g. aumento do salário-mínimo, Bolsa-Família, Farmácia Popular) a serem efetivados via uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) não obedeceriam ao critério do "teto de gastos" que é uma das formas legais de controlar os dispêndios fiscais. Os preços das ações e títulos financeiros despencaram fruto de uma "deterioração das expectativas". Comentários abertos de agentes do mercado tratavam de um "recado" dos investidores ao presidente eleito e ao PT.

Parece-me que o tema não está somente relacionado à comunicação de lado a lado, muito embora se possa avaliar que o discurso do presidente eleito tenha sido mais informal que o adequado para alguém que já é o eleito. Teria faltado prudência nas escolhas das palavras e na avaliação das consequências. Todavia, prefiro situar o tema dos gastos sociais no contexto de uma dissonância cognitiva coletiva. Vejamos.

Não me parece razoável imaginar que os agentes do mercado financeiro possam inferir que os gastos propostos não são "eficientes" segundo o critério da isonomia, entre os mais abastados e os mais necessitados. Parece-me que a natureza dos gastos é legítima e o seu total (R$ 175 bilhões) não causaria um buraco estrondoso no endividamento público. Afinal, o orçamento do ano que vem está com uma previsão conservadora de 2% de queda na arrecadação federal (excetuando-se estados e municípios). O número é muito pessimista. Se não houver queda o dispêndio a maior cairá a zero. Se cair metade do esperado, o aumento de gasto será de R$ 75 bilhões. Se a gasolina não for mais desonerada (o que isonômico do ponto de vista ambiental), o déficit adicional será de R$ 100 a 120 bilhões. Ou seja, em muitas hipóteses o gasto pode não ser causador de grandes abalos econômicos quando sabemos que o abalo social será enorme.

Então tudo bem? Absolutamente, não! Se o tema da sustentabilidade fiscal tem de levar em conta a justiça distributiva, de outro lado, é necessário uma reforma tributária e financeira profunda para criar um ambiente fiscal hígido que permita a ampliação da isonomia social juntamente com a estabilidade do endividamento público.  Para tanto, a revisão de onde (não) gastar e onde (não) arrecadar tem de ser profunda. Isto deve incluir, muito provavelmente, a menor tributação do consumo e do investimento e o aumento da tributação sobre a renda e a riqueza. O Brasil tem de caminhar para uma tributação mais justa e republicana.

Sabidamente as relações capitalistas não têm natureza cooperativa. O ganho de um, no geral, significa a perda de outro. Ocorre que, no Brasil e no mundo, faz-se urgente a construção de uma sociedade resiliente, promotora da inclusão, redutora da desigualdade social e atacante das fontes das injustiças sociais. Isto apenas poderá ser efetivo dentro de um ambiente de sustentabilidade social, ambiental e de governança pública e privada. O discurso de Lula pode não ter convergido para a necessária transparência e equilíbrio fiscal. Todavia, o "recado" do mercado não é convergente com o entendimento de que sem um mundo inclusivo e mais justo não haverá desenvolvimento, mas sobrará obscurantismo e barbárie.

A dissonância cognitiva me parece evidente e o debate de uma pobreza digna de um Bolsa-Família.