Frente ampla num horizonte estreito
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
Atualizado às 08:42
"Bem sabes: a primeira vez que respiramos o ar
Vagimos e berramos". (Rei Lear, W. Shakespeare)
A vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições abre um novo espaço político para os próximos quatro anos, mesmo que ainda não saibamos com razoável precisão os caminhos que serão trilhados para que seja um governo de sucesso. Do ponto de vista da História muito ainda terá de ser desvendado em relação a este pleito de 2022 e ao processo político nesta última década.
Também é essencial que se tenha claro que o denominado bolsonarismo teve expressiva vitória ao aglutinar na extrema direita do Brasil grande parte do centro político, especialmente o PSDB. Os números eleitorais no Estado de São Paulo e a presença de grande número de parlamentares próximos ao ex capitão evidencia o tamanho dos avanços do bolsonarismo, um movimento originalmente desorganizado que ganhou contornos nítidos ao redor dos conservadores, dos evangélicos, de parte relevante das Forças Armadas e policiais e do agronegócio. Há novas identidades que foram criadas no no entorno do atual presidente, com força política suficiente para impor derrotas acachapantes em diversas áreas do eleitorado do Centro-Sul do Brasil. Isso tudo, a despeito do ex capitão ter sido o primeiro incumbente a ser derrotado pós-adoção da reeleição. Na Europa e nos EUA, o avanço da extrema direita se deu em função das mudanças, para pior, na economia e, especialmente, no aumento da desigualdade social pela perda de vigor do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, foi a ausência de mudanças a principal causa do avanço da extrema direita.
O diagnóstico inicial do novo presidente em relação ao processo eleitoral e à sua própria vitória foi precisa: o novo governo não será petista porque não pode ser petista. Foi, isso sim, a "Frente Ampla" que venceu a eleição, especialmente se considerada a margem de votos de 1,8% que levou Lula à presidência, a mais baixa de todas as eleições presidenciais - somos um país dividido econômica, social e regionalmente. Neste sentido, não se pode prever que o candidato eleito possa implementar um programa político que se distancie do centro no qual gravitam as forças democráticas que o apoiam. Além do prudencial apoio parlamentar que Lula almeja alcançar, é muito razoável esperar uma condução conservadora na economia o que, por sua vez, conterá a velocidade e profundidade das tão esperadas reformas, sobretudo as sociais. Não haverá mais um "presidencialismo de coalizão", mas um "presidencialismo possível" - o sistema político do Brasil ainda carece de correções estruturais.
Do ponto de vista imediato, a permanente campanha eleitoral do atual presidente vai deixar um rombo relevante nas finanças do governo e de terceiros: dos saques dos depósitos do FGTS ao Bolsa-Brasil, passando pelo orçamento secreto e o empréstimo consignado, a conta é imensa, mesmo que ainda não se saiba o porte - seriam R$ 100 bilhões?
A adoção de uma "estratégia emergencial" para cumprir o programa de governo, especialmente em relação aos mais pobres, especialmente o Bolsa-Família, Farmácia Popular e aumento do salário-mínimo, requererá enorme esforço político e congressual o qual diluirá adicionalmente o poder político do eleito. No Congresso Nacional não há neófitos quando se pretende amealhar entre R$ 150 e 200 bilhões.
A Frente Ampla em formação também permitirá que haja um arejamento, em termos ideológicos, econômicos e sociais, das políticas públicas que serão adotadas. O Presidente eleito tem afirmado que não poderá repetir as suas administrações anteriores. Além das condições políticas serem completamente diferentes daquelas que prevaleciam entre 2003-2010, é evidente que as transformações tecnológicas, sociais, antropológicas, econômicas e assim por diante, alteraram o mundo e o país. Pode-se afirmar com certa segurança que as transformações do eleitorado também derivam deste processo.
Dados das pesquisas eleitorais também evidenciam que os desmandos e a corrupção foram fortemente associados ao PT e ao novo Presidente. Esta constatação também precisa se tornar uma referência para a nova administração que terá de ser muito rigorosa em relação aos temas da ética pública, corrupção e quaisquer eventos escandalosos, inclusive em relação ao Erário. A sociedade, justa ou injustamente, é mais intolerante com Lula e o PT em relação ao tema relativamente, por exemplo, a aceitação do "orçamento secreto", "pedalas fiscais" e outros malfeitos ocorridos no curso da administração do atual presidente. Ademais, o "Mensalão" e "Petrolão" foram muito presentes na campanha eleitoral e serão relembrados em caso de novos incidentes no próximo governo.
Também requererá muita atenção ao próximo governo a questão da comunicação. A transformação digital na forma e no conteúdo informacional alteraram significativamente a relação do governo com a população, dentre outras tantas. Aqui, será preciso que se pense sobre como se pode pensar a comunicação a partir de novos valores que permitam que a fragmentação dos meios possa atender aos fins democráticos. Se no passado a esquerda intentava a mudança dos marcos da mídia no Brasil, agora a missão política não é regular as grandes redes de televisão, mas convencer os usuários das redes sociais daquilo que é verdade factual em vista das narrativas e realidades criadas. Do ponto de vista psicossocial este tema é vital vez que as redes permitem movimentos de massa jamais vistos, organizados na forma e completamente duvidosos no conteúdo. A mobilização bolsonarista após o resultados das eleições são simbólicas e retratam uma mudança estrutural que terá de ser enfrentada.
No campo internacional, Lula terá de reerguer, mesmo que de forma diferente, o policentrismo da política externa, buscando o diálogo junto ao centro do capitalismo mundial (o que ironicamente inclui a China comunista), bem como, transversalmente, alinhando-se às agendas nas quais países emergentes e subdesenvolvidos podem propor e participar do delivery negociado. No tema do aquecimento do clima, do ambientalismo e do comércio internacional, o Brasil tem um lugar para exercer certo poder e isto foi completamente abandonado pelo ex capitão e seus napoleões perdidos. Lula é figura relevante no mundo, sobretudo na Europa. Terá aí o seu melhor espaço para exercer no curto prazo este poder e, quiçá, obter bons resultados.
Por fim, a maior dificuldade de Lula será exercer o governo sem que a cisão política do país o atinja e/ou contamine. Para reunificar o país talvez tenhamos de esperar um período bem mais longo e que ainda não é possível estimar razoavelmente. De toda a forma, o novo presidente terá de recolocar as instituições republicanas no lugar e, ao eliminar as disfuncionalidades dos poderes estatais, não incorrer no aumento da insegurança jurídica e institucional. Infelizmente, o bolsonarismo invocou para o seu ringue boa parcela das funções e instituições que tem de zelar pela legalidade democrática. Este processo originou excessos em todos os poderes, o que revela riscos de inconstitucionalidades. Além disso, devemos lembrar que a legalidade pode ser expressa em normas e princípios, mas a harmonia depende essencialmente dos líderes dos poderes. O bolsonarismo deixou a institucionalidade em frangalhos e com ela o próprio país e sua democracia. Lula terá de ser impecável nesta reconstrução republicana, acima de si e de seu governo.
A eleição de Lula é uma esperança para o Brasil. Não resta dúvida. Todavia, a vitória agora terá de ir bem além daquela sobre o medo.