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A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Atualizado às 08:14

A "crise institucional" crônica e corrosiva já demonstra que há evidente vulnerabilidade dos poderes

Por mais que se deseje afastar a ideia de "ruptura" do cenário político-eleitoral, temos de admitir que a possibilidade de uma quebra da ordem institucional é concreta, quiçá provável. Neste sentido, é razoável aceitar que o bolsonarismo teve significativa vitória neste primeiro turno. A quantidade de governadores eleitos e aqueles que provavelmente serão eleitos, somados aos parlamentares sufragados pela força-motriz originária do próprio presidente dão a dimensão exata desta vitória.

Por óbvio, o fato de o ex-presidente Lula estar na liderança das pesquisas do segundo turno, bem como, o fato de que vários governadores que o apoiam podem ser eleitos relativizam, por ora e até o segundo turno, a percepção da vitória do bolsonarismo. Mesmo se confirmada a vitória do ex-metalúrgico no segundo turno, o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político.

As razões mais visíveis e estruturais (e, também, estruturantes) para o aumento do poder bolsonarista derivam de alguns aspectos. Vejamos.

O governo bolsonarista sempre procurou desvincular o poder sobre o Estado das instituições. No primeiro mandato, o ex capitão exerceu o papel de iconoclasta do ordenamento jurídico e institucional do país. Pregou contra o Judiciário, mas também sobre os fundamentos mais cotidianos e essenciais da democracia, do direito à saúde às políticas ambientais, passando pelos costumes e identidades das minorias. O resultado desta estratégia é espetacular: a construção do apoio popular ao atual presidente minorou, senão eliminou, qualquer expectativa de que os valores democráticos e os direitos fundamentais estivessem acima de tudo e de todos. O bolsonarismo não tem limites claros.

O efeito da escolha popular em prol do bolsonarismo faz com que a sua estratégia em relação ao propósito de minar o processo eleitoral e limitar os direitos civis, o que inclui necessariamente o aumento de sua influência concreta sobre o Judiciário, tem chance muito razoável de ter sucesso. Se antes, o bolsonarismo foi barrado pela sua própria desorganização política (e.g. fragmentação partidária, falta de um projeto político abrangente), agora pode prosperar enquanto efeito das conquistas eleitorais de 2022.

Processos políticos como este, ocorridos em outros países no passado (e.g. Alemanha e Itália) ou no presente (e.g. Hungria e Polônia) ensinam que as mudanças ocorrem sob holofotes moralistas e por uma espécie de guerra cultural que esconde a desigualdade econômica e social sob o manto de uma ideologia que agrega o povo em torno de ideias sem relação com a realidade, digamos, "objetiva". Todavia, sempre vale a ressalva de que processos que são estruturalmente semelhantes nunca se espelham exatamente.

O slogan "Deus, Pátria, Família" associado a outros movimentos de extrema direita, tem a proposição clara de dissociar o povo da realidade temporal. No dizer do historiador Timothy Snyder1, "se acharmos que o futuro é uma extensão automática da boa ordem política, não precisamos indagar que ordem é essa, por que é boa, como se sustenta e como pode ser aperfeiçoada".

Outro tema relevante da vitória bolsonarista decorre do fato de que, pela primeira vez, o presidente, realmente se interessou pela formação de uma maioria parlamentar. O volumoso apoio que recebeu nas urnas deve tê-lo feito perceber que sua mensagem foi acostada em boa parcela da sociedade. Seus adeptos sufragaram candidatos apoiados diretamente pelo presidente e rejeitou aqueles que ele rejeitou. Está aí a evidência de que a utilidade das fake news é muito maior do que pensava. Ademais, pode-se interpretar que a vitória do ex capitão veio e virá em camadas: primeiro vem o sucesso do proselitismo moral, depois a revolução concreta. Entre estas duas camadas existe a destruição institucional e jurídica, cujo grau dependerá da maior ou menor adesão social num eventual segundo mandato.

No campo econômico, o atual presidente está disposto a se acomodar no modelito liberal. Não necessariamente estamos a falar do atual ministro da Fazenda, mas de qualquer força ou pessoa que possa atrair robusto apoio das elites para o seu projeto. Nesse sentido, a desmobilização do Estado enquanto agente econômico essencial é clara. A privatização e desregulamentação não são temas "políticos" no uso clássico do termo. De fato, ganham forte e renovada conotação ideológica. A adesão das elites ainda é tímida na aparência, mas não tão vagarosa quanto se pode imaginar. A reconstrução da imagem internacional do Brasil também pode ser derivada desta ideologia integracionista e liberal. Certamente, os temas sociais e ambientais são limites a esta possibilidade, mas vale não subestimar o pragmatismo das relações entre Estados.

Observados e designadas as tendências acima, vamos ao segundo turno. Parece bastante claro que a vitória do bolsonarismo consolidou a ideia de que a disputa do segundo turno não pode ser classificada ou conceituada como sendo homogênea do ponto de vista democrático: as duas ideias de Estado e de governo das candidaturas são opostas do ponto de vista da democracia.

O bolsonarismo essencialmente não é legalista. Já há inúmeras provas de que a ordem institucional e jurídica se constituiu em empecilho à realização plena dos objetivos preconizados pelo atual presidente. Não é necessário um rol extenso de exemplos. Basta uma rápida visita aos sistemas de busca da internet. Ademais, os chamados do atual presidente aos seus apoiadores são bastante distantes da via pacífica daqueles que acreditam na democracia - não há uma "lei superior" a conter os instintos políticos (e primários) dos seus agentes, mesmo que parte do eleitorado tenha exercido o "voto útil".

Além da questão da legalidade, temos de levar em conta que a "crise institucional" crônica e corrosiva que vivemos já demonstra abertamente que há evidente vulnerabilidade dos poderes diante do bolsonarismo. O exemplo mais evidente diz respeito à contenção responsiva que o Judiciário exerce às fake news e aos abusos nas redes sociais que evidencia que as consequências nefastas destas não são barradas. As próprias manifestações do atual presidente servem mais para esconder a verdade do que revelá-la para o eleitor. A mentira ganhou contornos científicos, de fato.

Feitas as breves considerações sobre o que opõe o bolsonarismo à democracia pode-se afirmar com segurança que o que será decidido no próximo dia 30 de outubro é se a vitória do bolsonarismo nestas eleições será parcialmente contida ou se mergulharemos na incerteza e instabilidade institucional. Restará, ainda, tomar conhecimento se o eleitor sabe o que está em jogo.

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1 T.Snyder, Na contramão da liberdade (2018), pp.23, São Paulo: Editora Schwarcz.