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O Dia da Independência e o assombro bolsonarista

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Atualizado às 07:56

A preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco.

O Sete de Setembro, transformado e travestido pelo ex-capitão que nos governa, demonstrou a natureza reacionária do bolsonarismo.

A imensa desigualdade social, fruto da falta de direitos básicos relacionados à saúde, à educação, à previdência social, à renda justa e à cultura é a raiz da atual radicalização política. Não podemos nos afastar desta realidade sob pena de não alcançarmos o entendimento sobre o momento.

Por sua vez, neste contexto, o que o presidente promove é a ficção, a mentira, a dissimulação, formas de transportar os seus apoiadores e simpatizantes para um universo de falsa sublimação da realidade com base no ódio contra inimigos imaginários. O bolsonarismo inverte a máxima de Von Clausewitz no clássico "Da Guerra": a política é a extensão da guerra. O Dia da Independência foi mais um dia deste espetáculo deplorável.

Sob a óptica bolsonarista, o cidadão marginalizado é integrado ao sistema econômico, político e social a partir de uma narrativa ficcional. O ex-capitão, mentiroso contumaz, nada promete, apenas diverte a sua plateia à base de fake news, da terra plana à ineficácia das vacinas, passando pela ideia de que "a história pode se repetir". Infelizmente, esta farsa tornou-se estratégia política e o Dia da Independência foi uma de suas expressões.

Esta "linguagem estratégica" do bolsonarismo opera em dois planos. O primeiro sobre a realidade como ela é. Usa a Constituição Federal e a ordem jurídica e institucional para cobrar respeito ao Estado Democrático de Direito, como no caso da defesa dos empresários que estariam dispostos a financiar as aventuras reacionárias do ex-capitão. O plano para financiar as operações do bolsonarismo em sete de setembro não implicaria em nenhum descumprimento constitucional, segundo o presidente. O uso da ordem vigente dá o revestimento da legalidade ao presidente que de fato a despreza.

De outro lado, aquele que usa a Constituição para defender apaniguados é também o que falsamente levanta dúvidas e falsas inquietações sobre o processo eleitoral. Para tanto, além de afirmar categoricamente sobre fraudes eleitorais, convoca as Forças Armadas a apoiá-lo no intento de criar instabilidade perante o TSE e o STF. Não se trata, como se sabe, de uma criação qualquer, mas forçar a polarização institucional como forma de identificar quem está ao seu lado e quem são os inimigos.

O bolsonarismo opera a partir deste tipo de ambiente e ações que, em princípio, parecem contraditórios: usa a ordem institucional para se defender e a mentira para atacar esta mesma ordem. No dizer de George Orwell em "1984". "duplipensar significa o poder de manter duas crenças contraditórias em sua mente e aceitar as duas".

Um outro plano a ser analisado a partir dos comícios bolsonaristas do Dia da Independência, é a reação da mídia e dos analistas em relação aos fatos.

A mídia não bolsonarista, ao que parece, tem se esmerado em "mostrar o absurdo presidencial" com a intenção de que a audiência perceba o perigoso ser político em ação, mentiroso, arrogante e reacionário. O ex-capitão, uma vez exposto, seria "revelado" ao público. Ocorre que a cosmovisão do bolsonarismo está baseada, como observado acima, pela percepção da realidade a partir da lente da fantasmagoria. O ex-capitão age para desmoralizar conceitualmente a independência da mídia e, com efeito, cria a suspeição que impede que a audiência avalie o ex-capitão em função de seus atos, mas, isto sim, pela figura redentora que ele representa. Qualquer história que sobre ele se conte não altera a imagem do personagem político que ele representa aos olhos de seus seguidores - vale salientar que não à toa ele é chamado de mito.

Os órgãos de mídia passaram o Dia da Independência, "contando os absurdos" do presidente na expectativa de que ele se revelasse à plateia. O que de fato ocorreu é que o ex-capitão apenas ofereceu o espetáculo que dele se esperava, com suas mentiras, grosserias e aberrações. Algo muito parecido com Donald Trump na campanha eleitoral de 2016 nos EUA que deslizava as mentiras para o público com o objetivo de diverti-lo. Diante de um eventual erro ou embate com a mídia, Trump construía uma longa narrativa que lhe fosse favorável - acabou por ganhar o pleito eleitoral. Por que seria diferente no caso do ex-capitão? Para controlar e ampliar a sua base, o bolsonarismo precisa do inimigo, mesmo que isso seja construído pela mais genuína mentira - a verdade nem sempre é boa para a audiência.

A saída, neste momento imediato, para esta cilada midiática depende de muitos aspectos, mas certamente "falar dos fatos" e não do "personagem" é algo que deva ser considerado. Assim, não se permite que a visão distorcida da realidade possa ser meio de promoção de um líder mentiroso. A realidade factual, nua e crua, é a forma de não permitir que o "caos" se torne a prática usual da política. O bolsonarismo tem método reacionário, mas não tem programa claro. Isto precisa ser ressaltado para que não se forme um "vácuo" na realidade a ser preenchida pela narrativa e não pela verdade factual.

Por fim, é preciso que se tome por premissa deste momento que a preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco. O sistema representativo está obscurecido por suas próprias práticas pouco republicanas o que permite a personificação falsamente redentora do ex-capitão. Somente a reversão das políticas públicas em favor de maior igualdade e desenvolvimento podem cessar a tendência autoritária do momento. No curto prazo, é preciso que a oposição e a sociedade, especialmente a mídia, desmoralizem a percepção de uma legitimidade baseada na mentira e na existência de inimigos internos e externos. É hora de retirar do espetáculo seu principal ator e colocá-lo, de forma natural, sob o escrutínio democrático. É momento de confronto democrático e não de conciliação com o reacionarismo.