Cresce a incerteza com a campanha dos heterônimos
segunda-feira, 18 de julho de 2022
Atualizado às 07:46
A campanha eleitoral brasileira caminha mal como mal caminha o país. A disputa é binária e todos os sintomas advindos das pesquisas eleitorais indicam que assim será em primeiro turno e, a depender do resultado deste, no segundo turno.
Os fundamentos eleitorais e políticos da disputa entre o ex capitão que ocupa o Planalto e o ex metalúrgico que já o ocupou são os mesmos de 2018. O Brasil não parece ter evoluído para qualquer alternativa viável que não sejam os dois candidatos que "falam com o povo". O imenso "vazio político", a ausência de ideologias com mínima solidez e a falta de propostas viáveis para alterar o curso do atraso brasileiro são os fatores que propiciam as condições essenciais para que as eleições deste ano sejam binárias.
A denominada "terceira via" não passa de arremedo estratégico calcado na oportunidade (existente) de que uma boa parte do eleitorado aceitaria uma "alternativa" aos dois candidatos que lideram as pesquisas. Todavia, esta oportunidade teria de estar enraizada em um projeto político visível ao distinto eleitor: tudo, nesta hora do país, parece improvisado e destoante em relação aos anseios concretos da população - política não se faz somente no momento eleitoral.
Em um país fragmentado em classes sociais tão díspares e uma concentração de renda de países subdesenvolvidos, como acreditar em lideranças arraigadas ao regionalismo, patrimonialismo e corporativismo? O povo está longe do debate político e considerada a possibilidade de uma terceira via o resultado é cristalino: segundo as pesquisas de institutos sérios, cerca de 70% de quem vota no ex capitão e no ex metalúrgico que assim permanecerá até o final do pleito. Trata-se da racionalidade soberana do eleitor.
De outro lado, o mosaico das alianças políticas regionais para fins eleitorais chega a superar em gênero e grau até mesmo a fragmentação congressual e dos estados. Com efeito, o próximo presidente, seja quem for, terá de fatiar e lotear o seu governo baseado em um algoritmo político que não conseguirá alavancar qualquer projeto político que retire o Brasil da barafunda em que está metido. O jogo político que é não-cooperativo desde a redemocratização elevou a sua própria irracionalidade: agora os pedaços do Congresso não formam sequer um mosaico que seja identificável.
Não bastasse a incerteza sistêmica que estas eleições trarão para a política e os apoios partidários, há a crise institucional. As piores expectativas em relação às instituições republicanas levariam a concluir que o Brasil poderia registrar múltiplas disfuncionalidades que criariam lentidão e disformidades na consecução concreta das políticas do Estado e do governo. Ocorre que o cenário está muito mais agravado que poderia se supor: vivemos um completo desrespeito pelas instituições republicanas que nos levam a concluir que o cenário atual é completamente imprevisível. A título de ilustração, vejamos: o Judiciário atua além da natural passividade deste Poder, os militares opinam abertamente sobre urnas eletrônicas e assuntos eleitorais, o Congresso despeja bilhões e bilhões em programas claramente eleitorais, temos um "orçamento secreto" sustentado pela situação e oposição (vejam só!), cuja aberração conspira contra o mais básico princípio da transparência e publicidade, o Executivo interveem nas estatais para fazê-las atuar em prol de seu projeto, os órgãos de controle ambiental estão destroçados, a política externa é capenga e flerta com regimes autoritários e assim vai. As instituições da República não estão apenas em "frangalhos", no uso do termo consagrado durante a ditadura militar: de fato, estão a serviço de projetos político-eleitorais que se constituem em uma espécie de superestrutura dissociada dos interesses econômicos e sociais. Os frangalhos viraram quebra-galhos, eventualmente, permanentes.
Mais impressionante deste processo continuado de enfraquecimento institucional é a relativa indiferença das elites econômicas perante este cenário extremamente desolador. Os riscos de deterioração ainda maior do cenário superam, e muito, a expectativa de maior estabilidade no curto e médio prazo. As eleições usualmente trazem turbulências e inquietações, mas também expectativas de alterações positivas no curso da economia e da política. As eleições de 2022 prometem mais desalento que soluções.
Neste sentido, os candidatos mais bem posicionados no processo eleitoral se comportam como heterônimos. Os autores do roteiro eleitoral se distanciam do éthos e não se sabe exatamente o que é programa e o que mera pirotecnia imagética. Neste sentido, o debate sobre costumes, religião, o "bem e o mal", os temas identitários e outros elementos distorcidos de retórica ganham projeção desproporcional.
Os candidatos, despersonalizados de si mesmo podem alçar voos mais elevados em relação à realidade mais concreta, mas o resultado da eleição pode acabar num grande cataclisma frente à inflação, à crítica situação fiscal, aos desafios ambientais e energéticos, à integração do país nas cadeias produtivas, ao atraso educacional e tecnológico e assim por diante. Há mais: o armamentismo civil é um estímulo ao servilismo à violência, inclusive à eleitoral.
As lições históricas ensinam que os eleitores não podem mandatar líderes sem fiscalização e contrapesos. Somente a assunção de responsabilidade perante o país e o mundo pode nos tirar deste perigoso caminho que estamos a vislumbrar, seja para as eleições vindouras, sejam para o governo que virá. Infelizmente, os fatos foram substituídos pelas versões. A hipocrisia, a inimizade, a corrupção, o nepotismo, o patrimonialismo, o clientelismo e as fake news precisam ser enfrentados não apenas pelo eleitor, mas sobretudo pelos cidadãos. O enfraquecimento da democracia é a contradição da nossa capacidade de fazermos história, de nossa aptidão para abrir picadas e avenidas e, assim, construirmos mudanças. Sempre haverá tempo para esta tarefa. Todavia, por ora, o trabalho está a se tornar cada vez mais pesado e penoso. Os graus de liberdade estão a cada dia menores. Olhe ao seu redor e verá.