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Genivaldo e a asfixia do momento

terça-feira, 31 de maio de 2022

Atualizado às 07:45

Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados.

Fosse a violência um serviço ou produto lícita e economicamente comercializável, o Brasil seria líder mundial no setor, senão pelos números absolutos, pelo menos no que tange à consistência e ao seu "processo de produção". Pode-se afirmar, inclusive, que a violência é antropologicamente um dos principais fatores que contribuíram e contribuem para a dinâmica social no Brasil.

A Constituição de 1988 é farta no estabelecimento dos direitos humanos como um dos alicerces fundamentais da convivência social e para a racionalidade do funcionamento das instituições do Estado brasileiro. De fato, as previsões indicativas do aparato constitucional são ainda anseios e não virtudes praticadas no cotidiano social.

Ao contrário, no Brasil a violência foi historicamente presente nas relações políticas, econômicas e sociais e a ordem institucional jamais foi capaz de controlá-la. O que predomina no Brasil é a permissividade licenciada pela injustiça social profunda, sobretudo em relação aos jovens pobres e negros, e pela repressão ilegítima dos aparelhos do Estado que, por sua vez, é aceita como "parte da solução" diante do caos da violência no Brasil.

A pobreza e a miséria são as principais matérias-primas para o carrossel cada vez mais veloz da violência. Os dados da criminalidade e de condições de vida têm certo atraso na sua apuração, mas é claramente possível concluir que as condições gerais de vida, sobretudo nas áreas urbanas são determinantes do nível de criminalidade. Dados como o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, expectativa de tempo de estudos, crianças fora do ensino primário, renda pessoal, dentre outros, são excelentes proxies para medir a relação entre violência e condições de vida. De uma forma geral, verifica-se nos estudos disponíveis na academia sobre o tema que a violência tem relação estatística direta e substancial com o nível econômico e social. Estados e municípios que apresentaram crescimento per capita da renda, tiveram redução dos níveis de violência. Todavia, somente políticas públicas mais amplas, que vão da escolaridade até políticas de repressão e punição dos crimes, são capazes de reduzir a violência num contexto de distribuição de renda. Neste sentido, o Estatuto do Desarmamento e a campanha do desarmamento de 2004, por exemplo, foram excelentes políticas que contribuíram para o declínio da violência na primeira década do novo milênio. Tempos que estranhamente parecem distantes.

Já a morte em Sergipe de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, pode ser facilmente catalogada na categoria de abusos comumente realizados pelas autoridades de repressão ao crime.  Homem pobre e com problemas psiquiátricos foi brutalmente asfixiado publicamente pelos policiais da Polícia Rodoviária Federal, entidade que conta com enorme prestígio perante o ex-capitão que nos governa. Ele não cometeu crime algum, não tinha antecedentes e apenas estava sem capacete no momento da abordagem pelos policiais. Não está o ocorrido na categoria de ilícitos perpetrados por pessoas pobres que acabam ingressando nas fileiras dos criminosos, os organizados e os não organizados. Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados e agentes do monopólio legítimo da violência.

Sou daqueles que acreditam que a adoção de medidas repressoras e injustas contra as pessoas mais pobres no Brasil não têm explicação ou motivação específica. São consequências, digamos, "inatas" de uma sociedade acostumada à prática da violência contra aqueles que considera como "seres inferiores". Trata-se de uma espécie de "racismo" - quando não é isso no estado puro - oriundo de nossa formação social escravocrata. Grande parte da sociedade brasileira, embutida neste ambiente de generalizada violência adere à visão de que é "natural" que se possa fustigar os mais pobres na simples presunção de que eles são criminosos.

E tem mais: sob o manto de que, diante da existência de criminalidade espalhada no corpo social, torna-se justo que a população se arme e que a prática da justiça seja substituída pela vingança.

Para os vingadores do Brasil, nada mais natural que os "possíveis responsáveis" por crimes possam ultrapassar todos os limites: a lei sequer é obedecida e a permissão é para a crueldade e a perversidade. De resto, sabem que a Justiça Estatal lhes é mãe enquanto para as vítimas é madrasta.

Igualmente é natural para os "vingadores" que não seja reconhecido o caráter, digamos "político" de fatos como o assassinato de Genivaldo. Para estes a análise sociológica e econômica dos crimes não pode, de qualquer forma, ser parte do entendimento da barbárie que vivemos. Independente ou não dos fatos, as mortes bárbaras no Brasil são essencialmente entendidas como "acidentes de trabalho" dos agentes armados e vingadores. Talvez os gendarmes não tenham sido eficientes na visão disseminada pelos vingadores, mas diante da total impessoalidade com que os fatos são analisados e entendidos, não se vê nas mortes dos pobres algo incabível e, sequer, desproporcional.

Sob a liderança do ex-capitão que nos governa, o drama se acentua ainda mais. Afinal, a aposta da comunicação dele é propagar a versão geralmente aceita de que somente a vingança, pessoal ou institucionalizada é capaz de redimir a sociedade. A responsabilização de agentes públicos para o ocupante do Planalto, é a exceção à regra:  a lei está abaixo da própria ação repressora injusta.

É indesejada a conclusão de que a violência do Brasil é profunda e é cultural e está impregnada desde a fundação desta Terra, neste triste trópico. A verdade é que Genivaldo é mais um personagem a aflorar de sua própria miséria para desmascarar a fachada de que vivemos em verdadeiro Estado Democrático de Direito. O atual presidente da República, neste contexto, é um manipulador vulgar da lógica mais elementar e que, face ao seu papel político, nos demonstra que, afora a ausência da prevalência da lei, a civilização está em risco. Ou talvez nunca tenha chegado por aqui.