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Ainda sobre as ideias e o Direito de Autor

terça-feira, 4 de abril de 2017

Atualizado em 3 de abril de 2017 14:59

Carolina Diniz Panzolini e Luciano Andrade Pinheiro

É sabido que o Direito Autoral não se ocupa da proteção das ideias, nos termos do inciso I, art. 8º da lei 9610/98. Nesse sentido, para uma obra intelectual ser protegida, faz-se necessário que ela seja exteriorizada, por qualquer meio, ou seja, que a manifestação de espírito do criador seja retirada do campo das ideias e fixada num suporte, que pode ser um livro, um fonograma, uma tela e a própria internet, dentre tantas possibilidades de suporte existentes. Caso fosse possível proteger ideias, adentraríamos num estado de insegurança jurídica imenso, além da dificuldade prática de dita proteção.

Outro aspecto que merece destaque no Direito Autoral brasileiro é a dimensão da dignidade humana impressa na obra intelectual. O Direito Autoral brasileiro segue a linhagem do Direito Autoral francês, oriundo do Civil Law (Direito Continental) e, por conseguinte, concentra sua atenção preponderantemente sobre a figura do criador da obra. Assim, todas as dimensões do Direito Moral, como a paternidade, a integridade, a retirada de circulação da obra e o direito de ineditismo, dentre outros aspectos do Direito Moral, ficam ressaltadas.

Após o destaque dos aspectos acima, podemos abordar uma situação que pode gerar tensão e vulnerabilidade da obra intelectual que é o momento em que o autor submete sua criação para um titular de direitos, para que este tome conhecimento de sua obra e decida pelo interesse em explorá-la. Esse titular de direitos pode ser uma gravadora, uma editora de obras literárias e uma organização de radiodifusão. Muitas vezes, o autor transfere a integralidade da obra, para quem analisará a qualidade da obra e as possibilidades de abordagens estratégicas de mercado e a sua criação circula sem grandes proteções, o que pode gerar prejuízos futuros.

Nesse contexto, vale mencionar um caso concreto que foi julgado no Superior Tribunal de Justiça, em que a autora ajuizou ação objetivando indenização por danos materiais e morais, em face de um diretor de dramaturgia brasileiro e um canal brasileiro. A autora informou que escreveu um script e o registrou perante a Biblioteca Nacional em junho de 1996, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Ademais, a autora também afirmou que entregou os originais a diversas redes de televisão e alega que um desses canais usurpou seus direitos ao transmitir uma minissérie com o mesmo nome em agosto de 2000. Sustentou que havia perfeita identidade e simetria da minissérie com sua obra intelectual (script), com os personagens centrais da história, embora com eventuais alterações. Por fim, a autora alegou que havia abordagem de detalhes e circunstâncias muito similares com a temática desenvolvida.

A decisão do colegiado do Superior Tribunal de Justiça seguiu a seguinte linha de argumentação, verbis:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. AQUARELA DO BRASIL.

ROTEIRO/SCRIPT. MINISSÉRIE. ART. 8.º, INC. I, DA LEI 9.610/1998.

APENAS AS IDÉIAS NÃO SÃO PASSÍVEIS DE PROTEÇÃO POR DIREITOS AUTORAIS.

1. É pacífico que o direito autoral protege a criação de uma obra, caracterizada como sua exteriorização sob determinada forma, não a idéia em si nem um tema determinado. É plenamente possível a coexistência, sem violação de direitos autorais, de obras com temáticas semelhantes. (art. 8.º, I, da Lei n. 9.610/1998).

2. O fato de ambas as obras em cotejo retratarem história de moça humilde que ganha concurso e ascende ao estrelato, envolvendo-se em triângulo amoroso, tendo como cenário o ambiente artístico brasileiro da década de 40, configura identidade de temas. O caso dos autos, pois, enquadra-se na norma permissiva estabelecida pela Lei n. 9.610/1998, inexistindo violação ao direito autoral 3. Por mais extraordinário, um tema pode ser milhares de vezes retomado. Uma Inês de Castro não preclude todas as outras glosas do tema. Um filme sobre um extraterrestre, por mais invectivo, não impede uma erupção de uma torrente de obras centradas no mesmo tema" (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. 2. ed., ref. e ampl.

Rio de Janeiro: renovar, 1997. p. 28).

4. Recurso especial a que se dá provimento para julgar improcedente o pedido inicial.

(REsp 1189692/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2013, DJe 01/07/2013)

O entendimento do STJ foi no sentido de que se o script e a minissérie produzidos se tratavam de obras intelectuais diferentes, com perspectiva de originalidade e criatividade distintas e únicas, ainda que tenham abordado a mesma temática, com pontos de convergência de argumentos e mesmo lapso temporal.

O argumento central do STJ foi no sentido que o Direito Autoral não se incumbe de proteger ideias e, por conseguinte, uma história e respectivos personagens podem ser replicados ilimitadamente, desde que sob ponto de vista individual e com conteúdo de originalidade e criatividade. Portanto, a tese desenvolvida pelo STJ para corroborar o acórdão partiu do fato que, embora o script e a minissérie pudessem ter sido feitos a partir de uma ideia nuclear e similar, referida circunstância não deslegitimaria a minissérie.

Sem tecer juízo de valor sobre a adequação jurídica do acórdão transcrito acima, referida decisão de colegiado é muito rica no que pertine ao Direito Autoral e merece ser analisada detalhadamente.

De fato, as ideias não são protegidas sob o manto do Direito Autoral e referida previsão está contida no inciso I do art. 8º da lei 9610/98. Ademais, o Direito Autoral não exige que se aborde temas inéditos, ou seja, temas nunca antes abordados. Se isso fosse possível, só uma pessoa poderia falar sobre amor, política, solidão, etc. Não é disso que o Direito Autoral se encarrega, sua atenção concentra-se sobre o fato das abordagens e das manifestações do espírito humano deverem ser criativas e originais, partindo-se do pressuposto que a natureza do ser humano é única e, por conseguinte, a obra intelectual deverá trazer caracteres também únicos da criação humana.

Destaque-se, ainda, que também há autores, mundo afora, que sustentam a tese da coincidência fortuita e da capacidade infinita das pessoas se influenciarem. Nesse sentido, uma ideia, ao circular, pode inspirar e provocar em outros autores a capacidade de criação. Portanto, não haveria a possibilidade de uma ideia permanecer hermeticamente fechada, sob a tutela do seu criador.

O Direito Autoral e a Propriedade Industrial são profundamente diferentes acerca da natureza de suas criações. Para a Propriedade Industrial, a criação deve ser inédita e o autor, antes de registrar seu produto ou obra, deve fazer uma pesquisa de anterioridade, porque, caso exista uma criação com o mesmo escopo, o segundo criador perde seu direito de registro e, por conseguinte, de reivindicar a autoria da obra.

Portanto, há uma diferença substancial com o Direito Autoral, que não exige ineditismo para que suas obras intelectuais sejam protegidas sob esse ramo jurídico. Há até um clássico exemplo que é a situação de dois pintores olhando para uma mesma montanha e, ao pintarem suas respectivas telas (sem copiar a criação do outro), produziriam expressões criativas diferentes, em razão dos pintores serem indivíduos diferentes e suas obras conteriam aspectos únicos das respectivas personalidades.

Ressalte-se, ainda, a existência de uma doutrina sedimentada no Direito Autoral denominada "scenes a faire" que significa que, quando são abordados determinados temas, necessariamente serão perpassados aspectos comuns à temática tratada. Assim, ao abordarmos o assunto escravidão, elementos como senzala, solidão, tristeza, castigos, dentre outros, necessariamente seriam explorados, o que não significaria plágio, apenas por essas circunstâncias similares.

Por outro lado, há uma grande vulnerabilidade por parte dos autores de obras intelectuais ao submeterem suas criações a terceiros e estes poderem se apropriar dessas obras inadvertidamente. Essa condição de insegurança é muito comum quando um escritor vai submeter seu livro a um editor, por exemplo e essa pessoa, física ou jurídica, tem acesso integral ao livro.

Nesse sentido, ainda que o escritor registre sua obra na Biblioteca Nacional e produza um termo de confidencialidade, há sempre o receio que esse livro (ainda não publicado) possa circular e ser explorado por alguém sem sua autorização. Se isso acontecer, não resta a menor dúvida que o escritor terá um arcabouço significativo de demonstração probatória, mas será um desgaste financeiro, emocional e provocará um dispêndio de tempo, por parte do autor.

O que aconteceu no caso concreto do Recurso Especial mencionado não nos cabe mais julgar, mas, sem dúvida, há uma condição de vulnerabilidade do autor que merece ser objeto de alerta e que pode ser abrandada por meio das medidas abaixo:

- Registro: embora declaratório e prescindível, constitui-se prova importante a favor do autor;

- Termo de confidencialidade: documento que demonstra a natureza confidencial da obra e compromete a pessoa (física ou jurídica) que tem acesso à obra a não a divulgar;

- Correspondência eletrônica, notificações e testemunhas: provas frágeis, mas tem seu valor probatório.

Por fim, depreende-se que expor a obra pode provocar um estado de vulnerabilidade para o autor, mas que há cautelas que abrandam essa situação. Não obstante, o mais importante é que essa circunstância não deve inibir o criador de obra intelectual de manifestar sua criatividade, uma vez que a presunção de autoria sempre será sua.