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O debate sobre as novas regras da gestão coletiva de direitos autorais - um relato da audiência pública e uma visão sobre sua essência

segunda-feira, 24 de março de 2014

Atualizado às 08:06

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

"Para todo mal há remédio. Mas, para o mal
do remédio, que remédio há?"

Atribuindo-a à antiga sabedoria ibérica, Dr. Sylvio Capanema proferiu a frase da epígrafe em seu discurso na semana passada para a audiência pública realizada com a finalidade de colher contribuições sobre a potencial inconstitucionalidade da Lei 12.853/13. Com essa solar simplicidade, o famoso professor, desembargador e causídico, contrário à norma, conseguiu sintetizar o ponto central da questão que levou artistas e especialistas a horas de explanação para municiar de informações o Min. Luiz Fux, relator das ADIs que atacam a lei1.

O mal

O mal que a lei nova pretendeu enfrentar é o mal de um ECAD sem controle nem supervisão, situação que levaria ao cometimento de abusos, entre eles a prática de uma taxa de administração de 25%, falta de transparência na distribuição da arrecadação, e prática de preços abusivos em razão do monopólio, estatuído por lei, de que a entidade desfruta.

O senador Humberto Costa (PT), relator do projeto que originou a lei 12.853/13, descreveu em seu pronunciamento que a comissão parlamentar de inquérito que apurara denúncias contra o ECAD2 entre 2011 e 2012 concluiu que as decisões e práticas do escritório central se implementavam em benefício de quem não era titular de direitos, que associações eram excluídas arbitrariamente do ECAD, sendo privadas de participar de sua administração, que a entidade pagava prêmios a gerentes e diretores da entidade de maneira ilegal, e que o escritório central retinha valores não distribuídos de maneira irregular. Afirmou, também, haver falta de transparência e auditabilidade dos resultados.

O caso Milton Coitinho, lamentável fraude cometida para levantar valores relacionados à utilização de obras falsamente atribuídas a um compositor que sequer sabia o que era o ECAD, foi mencionado pelo senador Randolphe Rodrigues (PSOL), propositor da CPI, em seu pronunciamento, que também acusou o escritório central de descumprir contratos, distribuir honorários de sucumbência aos diretores da entidade e substituir arbitrariamente empresas de auditoria interna.

Com semelhantes apontamentos, falaram também em favor da lei a deputada Jandira Feghali (PCdoB), Aderbal Freire Filho, presidente da SBAT3, Paula Lavigne, pelo Procure Saber, Ronaldo Lemos pelo ITS e Frejat, pelo GAP. Frejat destacou que o acordo do escritório central com a SKY teria repassado apenas 43% do total acordado aos titulares de direitos, e sublinhou ineficiências advindas do sistema de aferição por amostragem utilizado pelo ECAD, apontando que o sistema de hoje é insatisfatório tanto para usuários quanto para titulares de direitos.

A manutenção da existência em si do ECAD como entidade monopolista na gestão coletiva foi um consenso entre quase todos os expositores pelo ganho operacional e padronização que essa concentração traz, com exceção de Denis Borges Barbosa, que mencionou o sistema estadounidense como um exemplo de organização em que três entidades distintas cuidam da arrecadação e distribuição de valores obtidos a partir da execução pública de obras protegidas por direitos autorais.

O representante do CADE na audiência Pública, Carlos Ragazzo, apesar de posicionar-se no sentido da necessidade da existência do ECAD como ente monopolista na arrecadação e distribuição de valores relacionados à execução pública, discorreu sobre a conveniência de combater, por meio de controles específicos, os eventuais males que adviriam da existência desse monopólio, emulando-se um ambiente de competitividade por meio desses instrumentos regulatórios da atividade do escritório central.

O remédio

Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXVIII, alínea b - são assegurados, nos termos da lei, o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas

A lei 12.853/134 apresenta mecanismos de controle da atividade de gestão coletiva de direitos autorais, elegendo o Ministério da Cultura como principal ator a operar o exercício desse controle. É uma transferência, portanto, ao estado, da tarefa de realizar o que, após o desaparecimento do CNDA5, havia permanecido exclusivamente nas mãos das associações de gestão coletiva, que são entidades privadas.

A norma, depois de declarar que a atividade das associações possui munus publicum, traz um conjunto minucioso de regras entre as quais destacamos as seguintes:

(i) direito de votar e ser votado nas associações exclusivamente a autores originários, sendo que o voto será obrigatoriamente pessoal, e nunca por procurador;

(ii) cobrança proporcional ao grau de utilização das obras e fonogramas, considerando a importância da execução pública na atividade do usuário;

(iii) banco de dados público contendo contratos, comprovação de titularidade e participações individuais em obras e fonogramas geridos, além de mecanismos para que o titular possa verificar o aproveitamento econômico da obra;

(iv) taxa de administração proporcional ao custo operacional, sendo que a efetiva distribuição para os titulares não poderá ser inferior a 85% do valor arrecadado6;

(v) mandatos de três anos aos dirigentes das associações, com direito a uma única recondução;

(vi) voto unitário, independente da representatividade do catálogo na arrecadação da associação;

(vii) habilitação prévia pela Administração Pública Federal para que a associação possa exercer a atividade de cobrança;

(viii) atuação da Administração Pública Federal para a resolução de conflitos entre titulares e usuários por meio mediação e arbitragem;

(ix) criação de uma comissão permanente no Ministério da Cultura para o aperfeiçoamento da gestão coletiva no país.

Essas principais determinações da nova lei podem ser agrupadas em quatro categorias: (1) regras sobre o funcionamento interno das associações (regras operacionais), (2) regras de composição de preços e tetos de cobrança pelo serviço (regras econômicas), (3) obrigações mínimas de infra-estrutura e (4) implementação de um controle externo.

Defendendo o remédio, Marcos Alves de Souza, Diretor de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura, abordou, três pontos: a natureza pública do serviço prestado pelas associações coletivas, a necessidade de habilitação prévia por via governamental para o funcionamento dessas entidades e a questão da proporcionalidade entre custos de arrecadação e taxas de administração.

Quanto ao primeiro ponto, destacou que o ECAD é entidade privada exercendo monopólio legal, e que sua atividade afeta fortemente a coletividade como um todo, sendo sentida quase que como um imposto. Além disso, defendeu que a administração, pelas associações, de bens de terceiros, ressalta o munus publicum dessas entidades, demandando a necessidade de visibilidade do quanto se lhes passa internamente. Quanto à necessidade de habilitação prévia junto ao Ministério da Cultura, mencionou que, entre os diversos diplomas legais que conhece, o Brasil é o único país em que qualquer grupo de titulares pode unir-se livremente para exercer a atividade de arrecadação sem qualquer tipo de habilitação governamental. Já no terceiro ponto relativo à proporcionalidade entre custos e taxas de administração, afirmou que o custo operacional não acompanha linearmente o aumento de arrecadação, de modo que mais arrecadação não implica necessariamente aumento de despesas, o que destaca a necessidade de supervisão desse ponto.

Defendeu também que a presença ou ausência de supervisão estatal das associações é opção legislativa. A existência pretérita do CNDA até 1998 é comprovação disso.

O mal do remédio

Constituição Federal, artigo 5º, inciso XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

O fundamento mais saliente das ADIs7 ajuizadas em face do Supremo Tribunal Federal é o da incompatibilidade da intervenção estatal com a gestão privada das entidades de gestão coletiva. Princípios como o da livre iniciativa e da liberdade de associação são explorados pelas autoras dos pleitos. Os grupos de regras que mencionamos infringiriam ora um, ora outro, eivando a lei de inconstitucionalidade.

As manifestações do grupo que combate a constitucionalidade da nova norma exploraram de maneira bastante ampla o receio de que a proposta de supervisão e regulamentação se degeneraria em intervenção, subraindo dos particulares a autonomia na gestão dos próprios direitos, que interessariam, sobretudo, aos titulares, muito mais que ao governo, aos usuários ou a qualquer outro órgão. Combateram também as acusações de ineficiência ou de falta de transparência, trazendo à audiência pública informações de caráter técnico para apoiar seus posicionamentos. Houve, inclusive, uma notável apresentação de Luiz Sá Lucas, do IBOPE, corroborando os critérios utilizados pelo ECAD para conduzir seus cálculos de arrecadação e distribuição.

Fernando Brant, presidente da UBC, atacou de maneira bastante veemente o movimento legislativo que redundou na edição da lei 12.853/13, imputando aos grandes meios de comunicação uma articulação política para que as associações não recebam o que acham justo pela utilização das obras que representam. Afirmou que o Ministério da Cultura está tomado por um grupo opositor dos direitos autorais, e que a norma foi, de maneira suspeita, aprovada em uma semana, já que o projeto que deu origem à lei não era igual ao que resultou da CPI do ECAD.

Criticou, também, o descompasso entre a amplitude temporal do debate que levara à edição da lei 9.610/98 (dez anos) e a celeridade com que se aprovou a recente alteração. Brant afirmou que o modelo de gestão coletiva implementado no país opera segundo os mais altos padrões internacionais, motivo pelo qual a UBC ocupa a vice-presidência da CISAC8. A lei demonstraria, em sua opinião, um completo desconhecimento por parte de seus redatores sobre o complexo sistema de gestão coletiva.

Glória Braga, Superintendente Executiva do ECAD, depois de atacar a condução da CPI, revelando que o acesso aos documentos do inquérito parlamentar só foi franqueado aos advogados do ECAD depois de liminar concedida pelo Min. Celso de Mello, fez uma defesa técnica da eficiência do ECAD no desempenho de seu papel de arrecadação.

Marcelo Falcão, presidente da Universal Music Publishing do Brasil, concentrou-se na exclusão dos editores da direção das associações, regra trazida pela nova lei. Afirmou que os editores são o maior alimentador do banco de dados utilizado pelas associações para a distribuição de valores relativos à execução musical, atestando que cerca de 90% das obras musicais, nacionais e estrangeiras, registradas no ECAD, são editadas, de modo que o resultado prático da operação será a retirada da gestão das associações justamente dos maiores titulares (originários ou derivados) de direitos legitimamente adquiridos no ramo musical.

O pronunciador da epígrafe que dá estrutura a este escrito, Dr. Sylvio Capanema, afirmou que, embutida na idéia de controle estatal da arrecadação e distribuição de direitos, está a noção equivocada de que a gestão será mais eficiente ou mais transparente se dirigida pelo governo, defendendo que é justamente o contrário que se verifica na prática.

Outras personalidades contrárias à regulamentação como Roberto Mello, ex-presidente da Abramus, uma das entidades que compõem o ECAD, Juca Novaes, músico, Luis Cobos, maestro e presidente da FILAIE e Lobão exploraram, em resumo, os mesmos argumentos.

Lobão, com sua tradicional contundência, encarnando o politicamente incorreto, afirmou que a nova lei entrega o galinheiro às raposas, já que o Governo Federal, em razão da afirmada existência de uma dívida de 2,5 bilhões de reais da Radiobrás, é a maior devedora de direitos do país. Disse também que a gestão de direitos ficaria a cargo do governo mais corrupto da história, posicionando-se contrariamente à manutenção da norma.

Alguma ponderação

Mais importante que as características particulares de um sistema de gestão coletiva de direitos é que ele efetivamente funcione o mais perfeitamente possível. Eis o inaudito santo graal que não habita senão a melhor intenção de todos os envolvidos na discussão do tema em questão.

Movimentos pendulares que emprestam um caráter mais ou menos estatizado ao desempenho de atividades econômicas em qualquer país do mundo são, muitas vezes, mais um produto da conjuntura política do que propriamente da busca da melhor solução. Talvez assim seja porque a agigantada complexidade de determinados temas faz com que seus problemas comportem a materialização dessas conjunturas na forma de diferentes possíveis soluções, todas potencialmente eficazes desde que certos limites (quais seriam é o desafio) sejam respeitados.

Na infeliz inexistência do Emplasto Brás Cubas, "destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade", lembremos que os abusos sempre existirão, e sempre gerarão insatisfações tendentes a promover mudanças. É a eterna busca do cão por sua própria cauda. O desafio, aqui, é tentar ponderar até que ponto o abuso é só abuso, e a partir de onde revela-se sintoma de um sistema estruturalmente ineficaz. Essa pergunta, por hora, continua sem resposta. Acompanhemos de perto o desenrolar dessa nova fase de gestão de direitos no país.

__________

1Ajuizadas, uma, pelo ECAD e diversas das associações que o compõem, e, outra, pela UBC, que também compõe o ECAD.

2Relatório final da CPI.

3Sociedade Brasileira de Autores Teatrais

4Lei 12.853, de 14 de agosto, de 2013.

5Conselho Nacional de Direitos Autorais

6A lei determina que, inicialmente, o mínimo será de 77,5%, devendo chegar a 85% em 4 anos.

7ADI 5062 e ADI 5065

8Confederação Internacional das Sociedade de Autores e Compositores, que congrega mais de três milhões de compositores e editores do mundo todo, bem como 227 associações, que distribuíram, em 2011, mais de 7.6 bilhões de euros a seus associados em 2011.