Reprodução Parcial e Usos Livres
segunda-feira, 10 de março de 2014
Atualizado às 07:10
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
O direito de reprodução, uma das faculdades concedidas ao autor de obra intelectual, é o mais proeminente dos direitos patrimoniais de autoria.
Por reprodução entende o legislador nacional a cópia em exemplares tangíveis de obra literária, artística, cientifica, ou de fonograma, "inclusive qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos" (art. 5º, VI da lei 9.610/98, a lei que regula os direitos autorais - LDA), ou em qualquer outro modo de fixação a ser inventado1.
Sobre reproduções, que dependem de prévia e expressa autorização do autor ou titular de obra protegida, seja ela integral ou parcial, exerce o titular controle total, cabendo a quem reproduzi-la a responsabilidade de manter os registros que lhe permitam "a fiscalização do aproveitamento econômico da exploração". (art. 30, §2º, LDA).
Há exceções à regra? Sim.
As reproduções integrais poderão ocorrer, licitamente, sem a necessidade de autorização prévia: se objeto das licenças compulsórias previstas em Berna (art. 11 bis, alínea 2, e art. 13, alínea 1); quando forem temporariamente convertidas para o meio digital ou "quando for de natureza transitória e incidental, desde que ocorra no curso do uso devidamente autorizado da obra, pelo titular" (§ 1º, art. 30, LDA); para uso exclusivo de deficientes, visuais (art. 46, I, d); quando utilizadas, em estabelecimentos comerciais para demonstração à clientela (art. 46, V); no caso dos discursos pronunciados em público (art. 46, I, b); quando ocorridas no ambiente familiar, ou para fins exclusivamente didáticos, ou para servir de prova judiciária ou administrativa (art. 46, VI e VII); e, no caso especifico da obra de arte plástica, desde que situadas em logradouros públicos e que a reprodução em si não seja o objetivo principal normal da obra reproduzida, nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (art. 46, VIII). Esta última, a famosa regra dos três passos, que na linguagem mais sucinta de TRIPs e Berna ficou reduzida a dois (art. 13 no TRIPs, e art. 9.2 em Berna).
Dúvidas, inexistem, portanto, em relação aos usos livres das reproduções integrais, uma vez que a lei claramente os especifica. Mas surgem várias no cenário jurídico no caso das reproduções parciais, mais especificamente quando estas tangenciam os usos isentos de autorização prévia: quando uma reprodução parcial pode ser considerada lícita diante das derrogações ao principio da autorização prévia em nome do interesse público, neste embutidos a informação, o conhecimento, a liberdade de expressão? Pois é em nome destas garantias, afinal, que se limitam os direitos exclusivos dos autores. Na atual LDA, deles tratam os incisos II, III e parte do VIII, do art. 46.
Como o legislador não quantifica a extensão da citação ou do pequeno trecho - que pode variar caso a caso para que esse tipo de reprodução parcial cumpra a sua função, a de agregar conhecimento ao usuário - o titular do direito não raro ameaça vetá-lo, alegando violação de seus direitos exclusivos, quando a considera, a seu talante, extensa.
Com efeito, o legislador autoriza a livre reprodução, sem intuito de lucro (art. 46, II), de pequenos trechos para uso privado do copista. E, no caso da citação, na medida justa, de "passagens" de qualquer obra para fins de estudo, crítica ou polêmica. Tampouco o delimitam as normas técnicas (NBR10520/2002, da ABNT), ou os códigos éticos de associações profissionais.
Associação criada para defender os direitos dos editores gráficos sugeriu a máxima de uma página de uso livre em qualquer tipo de publicação, incluindo as didáticas, enquanto que universidades (USP e PUC) autorizam, na prática, o uso livre das obras existentes, em domínio público ou ainda dentro dos prazos de proteção, mas esgotadas, integrantes de suas bibliotecas, com a reprodução de até um capítulo. Preocupam-se estes com acesso ao conhecimento, que não pode ser calculado por uma página, enquanto aqueles medem apenas quantitativamente o uso, dentro de um raciocínio unicamente econômico: para ter acesso a mais páginas livres, o usuário deve adquirir a obra completa.
O problema, portanto, repousa especialmente sobre o traçado de um limite que marcaria onde termina o uso que deve ser livre, independente autorização, e onde começa o uso que, sem autorização do autor, configuraria violação. A medida justa da reprodução só pode, no nosso sistema legal, ser fruto de análise casuística, e regras gerais de uso como as propostas em âmbito administrativo e privado estão fadadas ou a, em certos casos, serem por demais restritivas, ou em outros serem insuficientes à proteção do autor, além de não valerem como lei.
Vejam-se, apenas como exemplos, alguns extratos de decisões que se debruçaram sobre casos em que o tema da reprodução não autorizada estava em pauta. Os arestos citados foram extraídos de casos em que se discutia a existência ou não de plágio. O plágio, para configurar-se, pressupõe apropriação parcial ou integral de obra alheia por omissão na identificação de sua autoria, e difere-se, portanto, substancialmente, do direito de citação, que é objeto do presente artigo. Mesmo assim, como a natural defesa do plagiário é recorrer justamente ao direito de citação, essas decisões terminam por tentar traçar limites.
"Ora, são apenas sete trechos que motivam este longo feito, com quatro volumes e quatro apensos, contra uma obra em três volumes e 2365 páginas..." (STJ, 2013 - AgRg no AgRESP 198.310, citando trecho da sentença de primeira instância)
"Não se pode olvidar, porém, que não constitui ofensa aos direitos autorais nos termos do artigo 46, inciso VIII, da lei 9.610/98: a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores." - destaquei em negrito.
Assim, é permitida a utilização de fragmentos de criações preexistentes, contanto que não sejam substanciais e não ocasionem prejuízo à obra original." (TJSP, 2013 - Apelação 9157027.78.2009.8.26.0000)
"Ao contrário do que sustenta o réu, não se trata de mera reprodução de conjunto de ideias, pois houve plágio também da forma e das palavras utilizadas para expressá-las. Da comparação entre os documentos de fls. 18/20 e fls. 49/52 verifica-se que toda a obra do requerente foi transcrita no livro do réu. Não houve cópia de um trecho ou outro, mas de todo o texto, apresentando, inclusive, a mesma disposição dos parágrafos e os mesmos destaques em negrito.
Frise-se que o artigo 7º, inciso I da lei 9.610/98 protege de forma expressa os textos de obras literárias, artísticas e científicas.
Por esse motivo, não há que se falar em pequena dimensão da violação. A reprodução foi integral, configurando contrafação, nos termos do artigo 5º, inciso VII do supracitado diploma legal." (TJSP, 2013 - Apelação 9000187-79.2006.8.26.0506)
"No mérito, nega o suposto plágio. Aduz que o texto reproduziu apenas 08 (oito) parágrafos do artigo do autor, parcela que, nos termos do inciso VIII do artigo 46 da Lei 9610/98, não constitui ofensa a direito autoral.
[...]
Ademais, inova indevidamente o apelante quando, no recurso, sustenta licitude da publicação nos termos do inciso VIII, do artigo 46, da lei 9610/98, vez que em contestação, limitou-se a defender que se tratava de mera citação. De qualquer forma, a exceção trazida pelo artigo evocado pelo apelante, permite a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Contudo, não é essa a hipótese dos autos, porque clara a violação de direito autoral com apropriação indevida de vários trechos da obra original, sem qualquer citação da fonte." (TJSP, 2013 - Apelação 0316909-80.2009.8.26.0000)
O caso brasileiro é de legislação que traz rol não-exaustivo2 de hipóteses de limites aos direitos de autor. Estão ali definidos, com alguma margem interna de interpretação, casos que se encontram para além do exclusivo concedido ao criador da obra intelectual. É esse o sistema geral em território latino-americano3.
O sistema de fair use vigente nos EUA é fonte riquíssima de complexidades nessa seara pelo fato de não haver, ao contrário do sistema brasileiro, definição estatutária de casos de uso autorizado, mas apenas de critérios abertos4. Serão considerados para definir-se se o uso é permitido e lícito, independentemente de autorização do titular, quatro critérios: (1) o propósito e a natureza do uso, inclusive se o uso é de natureza comercial ou se destina a fins educacionais não-lucrativos; (2) a natureza da obra protegida; (3) a quantidade e representatividade da porção utilizada em relação à obra protegida como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial da obra e sobre o seu valor de mercado.
A interpretação desses critérios é deixada nas mãos do usuário que tem, ele mesmo, de fazer uma análise de risco para decidir se a utilização depende de autorização e potencial remuneração ou não. Veja-se que, portanto, não havendo rol taxativo nem exemplificativo de casos, os limites são ainda mais nublados, tornando ainda mais difícil a tarefa de identificar o uso justo, ou a localização do traçado do limite. Se, no caso brasileiro, a dificuldade vem do fato de não haver delimitações claras dentro dos casos permitidos, nos EUA sequer os casos permitidos são identificados, aumentando-se a insegurança jurídica quanto ao permitido5.
Há de um lado, quem argumente que o sistema de fair use é mais adequado a uma realidade de evolução constante das práticas de uso, reprodução e distribuição6, e que sua constituição aberta permitirá ao intérprete subsumir-lhe qualquer casos concreto com possibilidade conclusiva. A prática judicial estadounidense, malgrado a suposição, tem mostrado o contrário. Há, de outro, quem defenda que o sistema de numerus clausus é mais seguro, e que a evolução legislativa (dever-ser) virá, bem ou mal, a reboque da revolução fática (ser) nesses usos de material protegido. A prática legislativa latino-americana é exemplo que infirma essa suposição. Não temos, até agora, a fórmula balanceada de regramento desses temas, nem jurisprudência sólida que nos oriente.
*Artigo escrito em parceria com a dra. Eliane Y. Abrão
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2Denis Borges Barbosa, exemplificativamente, entende-o não-taxativo. José Oliveira Ascenção, fazendo crítica à terminologia "limites", delineia fronteiras extrínsecas ao exclusivo, decorrentes do obrigatório sopesamento constitucional de garantias.
3México, Uruguai, Colômbia, Brasil e Peru, exemplificativamente.
4A lei autoral americana traz casos específicos como os das bibliotecas, mas mantem essa cláusula geral aplicável a todos os casos não expressamente mencionados no texto legislativo.
5Mesmo a interpretação judicial dos casos naquele país é indecisa. Em artigo publicado em 2003, o professor David Nimmer, um dos maiores autoralistas estadounidenses, publicou estudo chamado "Fairest of them All" And Other Fairy Tales of Fair Use, em que analisa objetivamente todas as decisões da suprema corte americana até aquele momento em matéria de fair use. Sua conclusão foi pela permanência da imprevisibilidade como regra.
6Entenda-se como distribuição a disseminação genérica, por ausência de termo técnico mais adequado.