Os primórdios da proteção da obra cinematográfica
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
Atualizado às 07:17
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
Foi a revisão de Berlim, de 1908, da Convenção de Berna1, que mencionou o cinema pela primeira vez. Treze anos já se contavam desde que os irmãos Lumière haviam feito a famosa exibição considerada simbolicamente como o nascimento do cinema, em 28 de dezembro de 1895, e o desenvolvimento da cinematografia começava a apresentar alguns desafios para os detentores de direitor autorais.
Especialmente após 19032, ganha relevância a narrativa e perde espaço a mera experimentação técnica característica da primeira fase da história do cinema, de modo que os diretores passam a dar maior importância para a história contada. Nesse momento, começam a se servir de romances e peças teatrais já escritas como mote de seus filmes, além de criarem histórias próprias.
Entre 1903 e 1918, Hamlet, de Shakespeare, teve nada menos do que vinte adaptações cinematográficas, e Oliver Twist, de Dickens, oito versões3. Estima-se que na primeira década do século, cerca de 60% de tudo o que foi filmado pertence a esse gênero de adaptação, o que demonstra sua importância para o cinema.
Nesse cenário, era de se esperar que os autores das obras originais que eram adaptadas para o cinema tenham ficado insatisfeitos com o fato de que essas adaptações eram feitas sem sua autorização, e sem que recebessem nenhuma remuneração por isso.
Na França dessa época, algumas ações civis com base nessa questão acabaram chegando aos tribunais, o que fez com que a delegação francesa que participou da revisão da Convenção de Berna de 1908, em Berlim, levasse uma proposta de texto que protegesse os autores das obras primígenas. Uma ação específica, julgada pelo Tribunal Civil de la Seine, 1er Chambre, teve sua decisão reproduzida nos anais da conferência de Berlim, e resolvia um caso de adaptação cinematográfica sem autorização do Fausto de Gounoud.
Havia, entre as delegações, participantes da conferência um entedimento de que, independentemente de uma nova norma específica relacionada ao cinema, a prática de adaptar uma obra protegida por direitos autorais sem autorização constituía "apropriação indireta", já considerada ilícita nos termos do artigo 10 do texto original da convenção. Mesmo assim, entendeu-se que haveria benefício na previsão expressa. Surgia, assim, o artigo 14 da Convenção de Berna, com o seguinte texto:
Artigo 14
Autores de criações literárias, científicas ou artísticas terão o direito exclusivo de autorizar a reprodução e a apresentação pública de suas obras por meio de cinematografia.
Produções cinematográficas serão rotegidas como obras artísticas ou literárias, se, pelo arranjo da forma de atuação ou pelas combinações dos incidentes representados, o autor conferiu à obra um caráter original e pessoal.
Sem prejuízo dos direitos do autor da obra original, a reprodução por meio de cinematografia de uma obra literária, artística ou científica será protegida como obra original.
As disposições acima se aplicam às produções ou reproduções efetuadas por quaisquer outros processos análogos ao da cinematografia.
Nessa mesma conferência, como se vê, reconheceu-se, pela primeira vez, de maneira explícita, que a filmagem cinematográfica comporta elementos de criação e de produção intelectual, relacionadas com a elaboração das cenas, criação do tema e com a direção dos atores, entendendo-se que esse direito era independente daquele direito garantido ao autor da obra em que se baseou o filme, confirmando-se proteção a ambas.
Percebe-se, na revisão de 1908, entretanto, que os regramentos relacionados ao cinema como arte autônoma buscavam muito mais uma proteção contra a pirataria do que propriamente conferir ao cinema uma categoria equiparada à das outras artes.
De qualquer forma, esse reconhecimento seminal abriu espaço para que a proteção da obra cinematográfica se robustecesse mais a cada nova revisão da convenção.
Complemento: A construção da uma linguagem cinematográfica
O cinema nasceu para o mundo como não mais que uma curiosidade técnica. A famigerada exibição ofertada pelos irmãos Lumière na Paris de 18954, apesar da enorme repercussão, era absolutamente incapaz de permitir antecipar a grande arte autônoma que acabaria surgindo daquela milagrosa máquina que parecia reproduzir a realidade.
Não é por outro motivo que o primeiro artigo sobre cinema publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 17 de agosto de 1896, vinha-nos sob a rubrica "Um Pouco de Sciencia - A photographia animada - Kinetoscopio e Cinematographo".
Nesse artigo, Jorge Viloux contava, com riqueza de detalhes, sua experiência ao assistir à exibição dos Lumiére.
"Graças a esse novo aparelho, a synthese do movimento acha-se desta vez realizada e da maneira mais absoluta, de modo que não há scena, por mais complicada, cuja reprodução não possa ser obtida e apresentada simultaneamente a numerosos espectadores.
Na verdade, não é possível sonhar espetáculo que mais impressione".
São diversos parágrafos dedicados à explanação técnica da maravilha cinematográfica para, apenas ao final, vislumbrar-se uma influência do cinema sobre o teatro, sem, entretanto, imaginá-lo como arte específica:
"À arte theatral, sem dúvida alguma, fornecerá os elementos de uma verdadeira renovação".
De fato, os primeiros registros cinematográficos, em sua maior parte, não são mais do que simples capturas de cenas do quotidiano, e não inspiram nenhuma apreciação artística. Lutas de boxe5, um homem espirrando6, a chegada de um trem, crianças dando remédio a um gato7, trabalhadores saindo de uma fábrica, um cavalo galopando8, um bombeiro realizando um salvamento9, um cavalo atravessando a ponte - nada que se assemelhe ao que conhecemos hoje como cinema.
Apesar disso, foi justamente nessa primeira fase do cinema, na sua primeira década de existência, que uma linguagem cinematográfica se desenvolveu e tomou corpo por meio de técnicas ainda indispensáveis nos dias de hoje. Foi nessa primeira fase rudimentar que os diretores aprenderam a contar histórias por meio de seus cinematógrafos.
Perceber essa evolução na narrativa cinematográfica é, antes de tudo um exercício de desconstrução para quem não viveu em uma época em que a narrativa audiovisual fixada simplesmente não existia. Os fluentes nessa linguagem cinematográfica (que é, hoje, igualmente, a televisiva), precisam despojar-se do entendimento já construído para perceberem a dificuldade que a vanguarda dessa arte enfrentou para desenvolvê-la.
Sem explicar textualmente, como se faz para que o espectador entenda que duas cenas distintas estão acontecendo ao mesmo tempo ou uma depois da outra? Ou que duas filmagens em espaços diferentes representam uma sequência de eventos? A simples junção de uma tomada em close com uma tomada aberta permite que o espectador compreenda que o diretor quis mostrar um detalhe do que estava acontecendo ou isso precisa ser explicado?
Alguns diretores tiveram especial importância no desenvolvimento desse idioma visual do cinema: R. W. Paul, criador da técnica conhecida como travelling, em 1899, em que se coloca a câmera em movimento enquanto se filma; G. A. Smith, que não só criou a sequência de tomadas para representar dois eventos acontecendo ao mesmo tempo mas foi também o primeiro a utilizar os primeiros planos de forma fluente, em 1903, técnica em que se enfoca de perto, preenchendo a tela inteira ou boa parte dela, o objeto que se quer destacar, para depois (ou antes) filmar a cena desde uma perspectiva aberta; Georges Méliès, que foi possivelmente o mais fantasioso diretor dos primeiros anos do cinema, contribuindo com a coragem ficcional, e Edwin Porter, com sua segmentação espacial no filme The life of an American Fireman, de 1903, em que filma um bombeiro resgatando duas pessoas de dentro de uma casa em chamas, justapondo tomadas sequenciais de dentro e de fora da casa.
Esta última inovação de Porter, concretizada em 1905, é um marco importante, juntamente com the Horse that Bolted de Charles Pathé. Percebeu-se a possibilidade de agregar tomadas sequenciais feitas em espaços diferentes, sem que o público deixasse de entender que se tratava de eventos simultâneos ou sequenciais.
Esse ferramental narrativo, criado na primeira fase de experimentação do cinema, foi o que permitiu, ao final, que a grande tela fosse capaz de contar histórias. E, ao contar histórias, os filmes ganharam, segundo a estética da época, relevância artística para além da mera experimentação técnica que lhe marcou a fase inicial, permitindo-lhe avançar como arte no século XX.
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1A Convenção de Berna, cuja primeira versão é de 1886, é a primeira e mais importante convenção internacional a tratar de um piso mínimo de proteção autoral entre os países signatários. Teve diversas versões que se lhe sobrepuseram após a inicial, inclusive esta que se comenta.
2Mark Cousins, em sua divisão dos períodos históricos do cinema, aponta a fase compreendida entre 1903 e 1918 como aquela em que o cinema deixou a mera experimentação técnica para se debruçar sobre a narrativa, dando maior importância à história contada que ao efeito técnico. Evidentemente, não há unanimidade entre os teóricos quanto aos períodos (em contrário, por exemplo, Robert Stam), e há filmes bastante narrativos antes de 1903, como o Le voyage dans la lune, de Georges Méliès, que é de 1902.
3COUSINS, Mark. Historia del Cine. Blume, 2011, p.45.
4Aos geniais irmãos Lumière, responsáveis pela divulgação do cinema mundo afora, pode-se atribuir apenas um de muitos passos dados no desenvolvimento da tecnologia incorporada no cinematógrafo. Thomas Edison, por exemplo, desempenhara um importante papel com o seu Kinetograph, de 1884, e depois com o patenteamento da tecnologia de perfuração das bordas da película fílmica para que a captura e reprodução das imagens acontecesse de maneira mais firme, sem que a película se movimentasse lateralmente sobre o rolo. George Eastman, por sua vez, inventou o rolo de película fílmica em 1884 que tornaria o Kinetograph de Edison possível. Otway e Gray Latham, como outro exemplo, resolveram um problema técnico de rompimento das películas fílmicas, enrolando-as, no interior da câmera, de maneira que ficassem frouxas, e não esticadas. Foram diversas, portanto, as contribuições sequenciais que nos levaram àquela que ficaria marcada como a data de nascimento do cinema para o mundo.
5The Corbett-Fitzsimmons Fight, 1897, de Enoch Rector
6Fred Ott's Sneeze, 1894, de W.K.L. Dickson
7The Sick Kitten, 1903, G. A. Smith
8The horse that bolted, 1907, de Charles Pathé
9The Life of an American Fireman, 1903-1905, de Edwin S. Porter