Quero vender meus bits and bytes - Parte 3
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Atualizado às 07:09
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
"It seems passé today to speak of 'the Internet
revolution'. In some academic circles, it is positively
naive. But it should not be. The change brought about
by the networked information environment is
deep. It is structural. It goes to the very foundations of how liberal
markets and liberal democracies have coevolved for
almost two centuries"
Yochai Benkler, The Wealth of Networks
Há pouco mais de trinta anos se iniciava a revolução proporcionada pela popularização da tecnologia, com o "um PC em cada mesa1". Há quase vinte anos temos vivenciado uma estrutural mudança que a conectividade cada vez maior nos impõe2.
Sobre os impactos na esfera jurídica dessa radical transformação, encontramos um espectro de opiniões que vão desde aquelas que não lhes conferem muita importância até aqueles que entendem, como o professor Benkler, que são profundos e estruturais, espraiando-se amplamente por todos os ramos e demandando, portanto, nossa mais atenta consideração.
Precedentes jurisprudenciais decidindo conflitos surgidos a partir de atos praticados por meio da internet muitas vezes nos parecem um retrato dessa tensão conceitual. São muitas as decisões que ignoram realidades completamente novas, tentando aplicar-lhes velhas fórmulas sem a releitura que essas situações comportariam, e notamos, tanto nos julgados quanto na doutrina, um constante esforço argumentativo que torce e retorce categorias jurídicas para que abarquem situações que não lhes são típicas. Mas talvez seja esse mesmo o modus evolutivo do direito, lento e dialético, e talvez as mudanças no plano fático tenham que atingir um determinado grau (insondável a priori, evidentemente) antes que a evolução se faça sentir no plano deontológico3.
Os acertos sempre nos parecem ter mais chance de acontecerem quanto maior for a disposição do julgador para se permitir analisar a situação nova com olhos de justiça material, com ânimo de exceder a mecânica atividade de tentar encaixar fatos novos nas fôrmas antigas para, buscando exercer o papel mais importante de intérprete do ordenamento, chegar à solução justa, sem abrir mão da eficácia dos de seus provimentos.
Essas decisões de caráter mais holístico tendem justamente a ser as que, em conjunto evolutivo, terminam por se impor, seja em razão de sua própria força lógica e natural, que lhes confere um certo poder de aumentar a resignação dos jurisdicionados que atingem, seja por sua atratividade como paradigma para casos futuros. Situações novas exigem uma dimensão de raciocínio que ultrapassa o da simples subsunção, e que efetivamente se debruçam sobre os fatos (muitas vezes tecnicamente complexos) para buscar as regras que melhor se lhes aplicam sob um prisma de justiça, sem descuidar dos princípios.
Nos últimos quinze anos assistimos a uma evolução no ramo jurídico impulsionada por essas novas realidades, e ainda se impõe diuturnamente a tarefa de solucionar questões que não encontram no ordenamento nenhuma resposta pré-fabricada. Segue sendo de grande importância a tarefa do causídico na proposta de visões alternativas.
Neste derradeiro artigo sobre o tema ora explorado4, estudamos algumas decisões relacionadas ao tema da exaustão de direitos na esfera dos direitos autorais com vistas a ilustrar como têm decidido algumas cortes quanto ao assunto da aplicabilidade ou não do princípio da exaustão de direitos para os conteúdos obtidos digitalmente. No caso brasileiro, em que faltam precedentes, procuramos extrair princípios dos posicionamentos de nossas cortes sobre o tema da exaustão de direitos lato sensu, incluindo casos particulares da esfera da propriedade industrial.
(iii) Cenário das discussões que cercam a exaustão de direitos no espaço virtual
(a) O caso Capitol Records, LLC x ReDigi Inc. nos EUA
Em outubro de 2011, surgia, nos EUA, o ReDigi5, um serviço online de revenda de conteúdo digital. Oferecia a seus usuários que não mais desejavam manter suas faixas musicais adquiridas de serviços lícitos como o iTunes a possibilidade de subi-las para a nuvem do ReDigi, onde ficariam disponíveis para outros usuários que desejassem adquiri-las. Assim que a revenda se realizasse, um software permanentemente instalado no computador do usuário-revendedor garantiria que aquele arquivo específico não voltaria a ser por ele utilizado, sob pena de não poder mais acessar os serviços do ReDigi. Uma parte do valor da revenda ficaria retido pelo intermediário comissão.
Cerca de três meses depois, em janeiro de 2012, a Capitol Records, um dos mais tradicionais selos de música do mundo, ajuizou ação perante a Corte Distrital do Southern District de Nova York6 contra a ReDigi alegando que a revenda de faixas de sua titularidade lhe violava direito exclusivo de autorizar a reprodução, a distribuição e a execução pública7 dessas fixações, o que garantiria pretensão reparatória e cominação impeditiva.
ReDigi se defendeu com base em diversos argumentos mas, principalmente, com base na aplicação da doutrina ou do princípio da exaustão de direitos, a first-sale doctrine, segundo a qual "o proprietário de uma cópia ou de um registro fonográfico específico legalmente produzido nos termos deste capítulo, ou qualquer pessoa por este autorizada, terá o direito de, independentemente de autorização do titular do direito autoral, vender ou de outra forma dispor da posse daquela cópia ou registro fonográfico"8.
Em 30 de março de 2013, o juiz Richard J. Sullivan, julgando antecipadamente parte da lide que independia de comprovação fática, acolhe os pedidos da Capitol Records, com base em um raciocínio definidor de todas as demais conclusões a que o julgado9 chega após minuciosa análise: o envio de um arquivo via internet é, na verdade, uma cópia, uma reprodução desse mesmo arquivo que termina por fixar-se na memória do aparelho destinatário, e não simples transito do mesmo exemplar adquirido originariamente. Não há identidade ontológica entre o exemplar obtido na primeira venda e aquele que se destinaria ao segundo comprador, o que, no entendimento do juiz, inviabiliza a aplicação da doutrina.
Durante o julgamento do caso, a ReDigi, pressentindo a iminente dificuldade de manutenção do seu negócio, lançou uma versão 2.0 do sistema que supostamente não realizaria nenhum tipo de cópias de arquivos. O julgado em questão não se debruçou sobre essa nova versão, e esse fato é expressamente reconhecido pelo juiz, de modo que a ReDigi mantem-se viva e agora com a promessa de lançar um serviço também para a revenda de outros conteúdos digitais como ebooks e vídeos. Prometeu igualmente apelar da decisão de primeira instância.
O caso é importantíssimo não só pelo precedente concreto, mas pelas implicações das construções que faz ao longo da análise traçada pelo juiz. Ao contrário da diretiva européia, que chegou a um direito de colocar à disponibilização do público e evitou a inserção da transferência via internet como um ato de distribuição, o precedente estadounidense enxerga a transferência online como uma reprodução do conteúdo. E o é, certamente, do ponto de vista das leis da física, como bem frisou o magistrado, já que exemplar nenhum como tal trafega internet afora.
Um outro tópico explorado pelo juiz é o da violação ou não do direito exclusivo de distribuição dessas obras detido pela Capitol Records. Baseado no precedente London-Sire Records vs. John Doe10, que entende na transferência eletrônica de um arquivo o preenchimento do conceito de distribuição, ele entende que esse direito foi também violado pela ReDigi, na medida em que promove a transferência das faixas do computador do usuário-revendedor para a nuvem do ReDigi, e posteriormente para o disco rígido de que adquiri-las.
(b) Julgados brasileiros
São em número razoável os julgados brasileiros relacionados ao tema da exaustão de direitos na seara da propriedade industrial, concentrando-se especialmente no tema da importação paralela. Nenhum, entretanto, no âmbito do direito autoral, que se debruçe sobre o tema dos conteúdos digitais. Desconhecemos, igualmente, conflitos levados ao judiciário que versem sobre essa problemática.
O único caso dos tribunais superiores que nos parece poder ter alguma serventia para um futuro elaborar de conceitos que cercam a distribuição de conteúdos digitais pela internet é um Recurso Especial, relatado pela Min. Maria Isabel Gallotti11, em que a julgadora entende (embora pouca dúvida houvesse) a divulgação da obra em formato eletrônico como ação que implica necessariamente o perfazimento de uma publicação. No contexto do caso, o conceito foi utilizado para demonstrar que a veiculação pela internet da obra sem autorização pelo autor violava seu direito moral de manter sua obra inédita, causando-lhe danos morais.
Entre os tribunais estaduais, um caso que tangencialmente se aproxima da questão é uma apelação já vintenária julgada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro12 que, debruçando-se sobre a possibilidade de importarem-se paralelamente exemplares de um software distribuído no Brasil com exclusividade, conclui, no voto vencedor, pela legalidade dessa conduta13, posicionamento que não nos pareceria adequado à luz de nossos diplomas atuais, já que o item se adquirira externamente sem autorização para internação no país.
Na ausência de casos específicos do nosso tema e com vistas a eventual transposição dos conceitos para uma disciplina genérica da exaustão de direitos no ordenamento brasileiro, importa notar, ainda que apenas no ramo contíguo ao autoral, quais posicionamentos as decisões14 analisadas refletem no campo das marcas e patentes.
Verifica-se, em geral, nas decisões sobre exaustão de direitos de propriedade industrial, uma reafirmação da opção legislativa brasileira de adotar o princípio do esgotamento nacional de direitos. A introdução no mercado do bem que materializa o direito marcário ou patentário tem que se dar no Brasil com autorização do titular, não bastando que tenha sido legitimamente adquirido no exterior. Variam as decisões acerca do momento dessa autorização e da necessidade de ser direta ou indireta, sendo que a maioria entende que um distribuidor estrangeiro que esteja autorizado (ou não expressamente proibido contratualmente) a remeter bens para o Brasil serve satisfatoriamente para cumprir essa exigência.
Outra preocupação bastante clara da maioria dos julgadores é a preservação da higidez concorrencial e a prevenção de potenciais abusos que podem advir do exercício amplificado do instrumento do contrato de exclusividade.
Há um conjunto de decisões que entendem que o compromisso de exclusividade de distribuição se encontra circunscrito à realidade inter partes, não servindo como instrumento apto a impedir importação legítima advinda de terceiro que, embora sediado no exterior, tenha autorização para exportar para o Brasil ou não esteja impedido de fazê-lo. Ou seja, no sopesamento entre distribuição exclusiva e exaustão de direitos, prevaleceria este último como corolário da livre circulação de bens.
Exsurge do conjunto de julgados outra questão, esta relacionada à eventual manutenção das marcas apostas a produtos introduzidos em mercados de segunda mão. Reconhece-se a insegurança que essa realidade gera do ponto de vista consumerista, considerando a expectativa do consumidor de obter prestações típicas da relação de consumo diretamente do titular da marca, e não do revendedor de segunda mão, situação agravada ainda mais quando esses bens passam por algum processo de remanufatura, sem garantia de controle de qualidade.
Esgotamento nacional, higidez concorrencial e proteção aos consumidores e às expectativas que lhes desperta a reputação que as marcas carregam: eis o que se extrai como tendências gerais desse conjunto razoavelmente amplo de decisões estudadas. São linhas suficientemente abstratas para comportarem eventual tradução para a seara dos direitos autorais em eventual esforço interpretativo.
Com esse brevíssimo panorama, encerramos essa tríade de artigos sobre o tema da exaustão de direitos para conteúdos digitais. Não havia, desde o início, pretensão de, com o perdão do trocadilho, esgotar a questão, mas apenas de oferecer um certo olhar sobre as questões que permeiam essa importante discussão na seara autoral. Continuamos sem saber ao certo se podemos vender nossos bit and bytes. Não há dúvidas de que um futuro próximo nos oferecerá a resposta. Até breve!
__________
1The Telegraph
2Em 2011, a penetração média de linhas de telefonia móvel no mundo era de 85/100 habitantes, segundo informações do Banco Mundial. Essa distribuição, evidentemente, não é equânime, e variava, à época, de 3/100 em Mianmar a 243/100 na China. No Brasil, a penetração era de 124 linhas por 100 habitantes. A ITU, International Telecommunications Union, agência da ONU especializada em TICs, estima que 90% da população tenha acesso a internet 2G em seus celulares, segundo estudo de 2011. Ambos os sítios mencionados nesta nota foram acessados em 18 de julho de 2013.
4As partes 1 e 2 deste conjunto de três artigos se encontram, respectivamente.
6Apesar do nome, trata-se de uma corte pertencente ao sistema de justiça federal estadounidense, submetido à jurisdição, em segunda instância, do Second Circuit. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, há uma mistura de competências para diferentes "justiças", sendo que uma das competências ratione materiae das cortes federais é a de julgar violações ao estatudo de direitos autorais (copyright, em verdade).
7O julgado não explora a classificação de public performance (execução pública) como uma espécie do gênero comunicação ao público. Parece-nos não existir identidade entre execução pública e streaming de música.
8Tradução livre do trecho ".the owner of a particular copy or phonorecord lawfully made under this title, or any person authorized by such owner, is entitled, without the authority of the copyright owner, to sell or otherwise dispose of the possession of that copy or phonorecord." - 17 U.S.C. § 109.
9United States district court southern district of New York
10São comuns no direito americano as ações ajuizadas contra parte ainda incerta no momento do ajuizamento da ação. Quem advoga em assuntos relacionados à internet concordará que um expediente desse gênero faz falta no nosso ordenamento jurídico.
11Resp 1.201.340-DF
12Ação, na origem, número 0045347-35.1992.8.19.0001, comarca da capital.
13"...de um lado, não há proibição legal alguma de que um interessado adquira no exterior um equipamento, só porque esse equipamento seja de distribuição exclusiva no brasil. De outro lado, os direitos autorais referentes aos "softwares" das autoras foram a estas devida e comprovadamente remunerados".
14Buscas realizadas nos sítios do STF, STJ, TJRJ, TJSP e TJRS. A única menção ao tema em decisões do STF se encontra em um AREsto de lavra da Min. Carmen Lúcia que, entretanto, nega seguimento a um agravo por inidência da súmula 279 do STF. No STJ e nos tribunais mencionados há um conjunto decisório razoavelmente rico em conceituações.