Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
Atualizado em 17 de dezembro de 2018 14:09
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa
Um dos maiores obstáculos à recuperação judicial de empresas, no Brasil, é a chamada "trava bancária" que permite ao credor financeiro, em razão da natureza fiduciária de sua garantia, bloquear o acesso da devedora aos depósitos bancários realizados por seus clientes em razão dos negócios desenvolvidos pela própria empresa.
É preciso, inicialmente, entender o problema.
Pois bem, no modelo brasileiro de recuperação judicial, o legislador optou por excluir os credores titulares de garantias fiduciárias dos efeitos da recuperação judicial. Nesse sentido, conforme dispõe o art. 49, §3º da lei 11.101/05, "tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva (...)".
As alienações fiduciárias são aquelas em que a garantia fiduciária é representada por bem imóvel ou móvel infungível. As cessões fiduciárias, por sua vez, são aquelas em que a garantia é composta por títulos de crédito ou direitos, presentes ou futuros.
Tratando-se, portanto, de cessão fiduciária de recebíveis futuros, a devedora deverá abrir uma conta bancária na instituição financiadora, onde deverão ser depositados esses recebíveis, constituindo-se a garantia do financiamento. Caso a empresa descumpra sua obrigação de pagar as parcelas do financiamento, a instituição financeira bloqueia seu acesso à referida conta bancária e passa a retirar os valores lá depositados para quitação do financiamento. Essa é a conhecida trava bancária.
Atento à sinalização legislativa, o mercado financeiro se adaptou ao benefício, de modo que quase a totalidade dos financiamentos empresariais oferecidos por instituições financeiras são, atualmente, garantidos por alienação ou cessão fiduciária.
Assim o fazendo, a legislação brasileira excluiu dos efeitos da recuperação judicial um dos principais credores de uma empresa em crise, considerando que é função dos bancos, financiar a atividade empresarial.
Uma empresa, ao necessitar de investimentos para o desenvolvimento de sua atividade, normalmente busca os bancos para obtenção de financiamentos que serão, naturalmente, garantidos fiduciariamente.
Ocorre que, havendo a necessidade de utilização da ferramenta da recuperação judicial para superação de eventual crise, a empresa não terá a possibilidade de renegociar as dívidas bancárias, que certamente representarão parcela importante de seu endividamento total.
Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas.
Esse cenário revela, na verdade, um problema estrutural do sistema brasileiro de recuperação judicial.
O modelo brasileiro de recuperação judicial inspirou-se no modelo moderno criado nos Estados Unidos da América, no final do século passado.
O modelo norte-americano propõe que a recuperação judicial deve ser realizada através da aplicação de uma solução de mercado para a crise da empresa, o que somente pode ser obtido através da negociação entre credores e devedora.
Entretanto, para que exista de fato uma negociação efetiva entre credores e devedora, é preciso criar um ambiente que neutralize a ação dos chamados credores hold outs (credores resistentes à negociação e que pretendem prosseguir com a realização individual de seus créditos, sem consideração à existência dos demais credores).
O professor Thomas H. Jackson1, ao escrever sobre o tema em seu livro The logic and limits of Bankruptcy Law, explica as dificuldades que enfrente uma empresa em crise, mesmo sendo viável, para conseguir criar um ambiente de negociação global capaz de conduzir à sua reestruturação efetiva.
Thomas H. Jackson traz o exemplo do dilema do prisioneiro, da teoria dos jogos, para explicar o problema a ser neutralizado pelo sistema de recuperação judicial de empresas. Imagine uma empresa cujo valor de liquidação seja de 50 mil dólares, mas que esteja devendo a cada um de seus quatro credores o valor de 50 mil dólares. A empresa tem 50, mas deve 200 e, portanto, encontra-se insolvente. Nesse raciocínio, havendo a liquidação da empresa, cada credor receberia potencialmente 12.5 mil dólares. Entretanto, se mantida em funcionamento, a empresa poderia gerar um valor de going concern capaz de garantir o pagamento de 25 mil dólares para cada credor.
Racionalmente, seria vantagem para os credores aceitar uma proposta de renegociação no montante de 25 mil dólares, ao invés de assistir a liquidação da atividade, que geraria apenas 12.5 mil dólares para cada credor.
Entretanto, a teoria dos jogos demonstra que os credores não agem dessa forma racional e com espírito coletivo. A tendência é que o credor se comporte de forma egoísta e tente individualmente a realização do seu crédito na máxima extensão. Nesse sentido, imagine que os credores 1, 2 e 3 concordem com a proposta de negociação. Se o credor 4 não concorda com a proposta de 12.5 e dispara uma execução individual contra a devedora para tentar penhorar (e garantir prioridade na execução do ativo) os 50 mil de ativos da devedora (pagando-se integralmente), tal comportamento influenciará os demais credores, que diante disso, também dispararão suas execuções individuais contra a devedora. O resultado será o abandono da negociação coletiva e a liquidação da atividade e, ao final, todos receberão menos na liquidação do que teriam recebido na hipótese de aceitação do plano de recuperação apresentado pela devedora.
Diante disso, os americanos criaram um modelo de recuperação pensado para neutralizar esse credor resistente (hold out), que é fundado em dois pilares fundamentais: a suspensão das ações individuais contra a devedora durante o período de negociação (stay period) e a regra de que a decisão da maioria dos credores vincula a todos os credores, inclusive os credores dissidentes.
Segundo o modelo norte-americano, não deve haver hold outs, como pressuposto de criação de um ambiente capaz de conduzir à solução de mercado, em benefício da preservação da empresa e dos interesses dos próprios credores.
Entretanto, embora o modelo brasileiro tenha se inspirado no modelo norte-americano, a lei 11.101/05, como já visto, preservou como hold out um dos principais credores de uma empresa em crise, qual seja, os bancos (titulares de garantias fiduciárias)2.
Percebe-se, portanto, que a exclusão dos credores garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial é providência que viola a própria lógica/essência do modelo recuperacional adotado pelo Brasil.
Como será possível garantir uma negociação coletiva, se o principal credor da empresa em crise poderá prosseguir com suas execuções individuais e o resultado da negociação com os demais credores não vai atingir os seus créditos?
E mais.
Se a garantia fiduciária consistir em ativo essencial ao desenvolvimento da atividade da devedora, sem o qual restará prejudicada a continuidade da empresa?
Conforme já explicado por Thomas H. Jackson, esse credor bancário (hold out) será responsável pela liquidação da atividade e todos os credores acabarão recebendo menos na liquidação do que receberiam na hipótese de recuperação.
E mais grave ainda.
O desaparecimento da atividade empresarial viável, fará desaparecer os empregos, os tributos, as riquezas, os produtos e serviços que eram importantes para o desenvolvimento da sociedade e da economia.
Deve-se lembrar que segundo o art. 47 da lei 11.101/05, a preservação da função social da empresa é o vetor principal de interpretação e de aplicação de seus institutos.
Como resolver esse dilema?
A resposta passa necessariamente pela correta interpretação do art. 49, §3º da lei 11.101/05 e, principalmente, pela adequada aplicação da exceção trazida nesse mesmo dispositivo legal, mas em sua parte final.
Senão, vejamos.
A interpretação e a aplicação dos dispositivos legais, no modelo brasileiro de recuperação de empresas, deve obedecer ao previsto na teoria da superação do dualismo pendular.
Segundo a teoria da superação do dualismo pendular3, a melhor interpretação da lei não será aquela que prestigiar o interesse de credores ou da devedora, mas sim aquela que viabilizar de maneira mais intensa o atingimento dos objetivos maiores do sistema, revelados pela preservação da função social da empresa.
Vale destacar que a aplicação dessa teoria já foi, inclusive, reconhecia pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo de instrumento no Resp 1308957/SP. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, "com o advento da lei 11.101/05, o ordenamento jurídico pátrio supera o dualismo pendular, havendo um consenso na doutrina que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se escolher aquelas que busca conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial".
Da mesma forma, deve-se ter em vista a aplicação da teoria da divisão equilibrada de ônus4, segundo a qual credores e devedores devem assumir ônus no processo recuperacional de modo que prevaleça o interesse social ao interesse particular de credores ou devedores. Cabe ao juiz fazer o controle da posição processual das partes a fim de garantir que o processo atinja a sua finalidade social, prevenindo-se condutas tendentes a transformar interesses parciais dos titulares de direitos envolvidos na recuperação judicial em verdadeiras barreiras intransponíveis ao atingimento do objetivo social do sistema.
Assim, art. 49, §3º da lei 11.101/05 deve ser interpretado de forma compatível com a realização das finalidades do sistema recuperacional, em sintonia com a preservação da função social da empresa.
Muito embora a lei exclua os créditos garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial, não se pode permitir que o credor bancário execute sua garantia em prejuízo da coletividade de credores, colocando em risco o atingimento de uma solução de mercado que permita o prosseguimento da atividade empresarial viável e geradora de benefícios econômicos e sociais.
O direito brasileiro prestigia de maneira intensa a função social dos institutos do direito privado, sendo inegáveis as limitações ao exercício da propriedade privada, em função da sua função social. Da mesma forma, a função social dos contratos limita a autonomia privada da vontade. No mesmo sentido atua a função social da empresa ao exigir que os credores, num ambiente de recuperação judicial, exerçam seus direitos em consonância com a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade viável.
Vale destacar que, segundo o Código Civil (conhecido como Código Reale), somente se considera regular o exercício de um direito, desde que observada a sua função social. Conforme dispõe o art. 187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O direito civil brasileiro adotou como princípios a eticidade e a sociabilidade, de modo a refletir uma nova perspectiva de exigências de condutas legítimas pelo cidadão, em abandono ao ideal individualista que regia o Código Civil de 1916.
Nesse diapasão, é correto afirmar que a legislação de regência concede aos credores garantidos fiduciariamente o direito de não se sujeitar ao processo de recuperação judicial. Entretanto, como já dito, o exercício desse direito deve observar a função social da empresa, uma vez que tal direito está sendo analisado no contexto do processo de recuperação judicial.
O segredo para compatibilizar esse dispositivo com as finalidades do sistema recuperacional está na interpretação adequada da ressalva constante na parte final do art. 49, §3º da lei 11.101/05, segundo a qual não se permite ao credor titular da garantia fiduciária, durante o prazo de suspensão de 180 dias (stay period), a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Alberto Caminã Moreira, em artigo publicado nessa mesma coluna5, já abordou com muita precisão as discussões que gravitam em torno da interpretação aplicada pelos Tribunais a esse dispositivo legal.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por exemplo, que não é cabível a aplicação da ressalva nos casos em que a garantia fiduciária recai sobre dinheiro ou recebíveis futuros, pois o contrato de cessão fiduciária de crédito transfere ao credor a propriedade dos créditos até liquidação da dívida. Segundo decidido pela Min. Maria Isabel Gallotti, "nem haveria mesmo que se dizer que tais bens incorpóreos não poderiam ser retirados do estabelecimento do devedor porquanto esses títulos, de regra, estão na posse do credor para que ele possa receber diretamente do devedor os créditos cedidos fiduciariamente" (Recurso Especial 1.263.500-ES, j. em 5/2/2013).
Recentemente, ao analisar o conceito de bem de capital, o Ministro Marco Aurélio Bellizze conferiu interpretação bastante restritiva e destacou que, para ser caracterizado como bem de capital, o bem precisa ser corpóreo (móvel ou imóvel), deve ser utilizado no processo produtivo e deve se encontrar na posse da empresa. Disse, ainda, que a exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo bem de capital. Explicou que a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade, "além de desvirtuar a própria finalidade dos 'bens de capital', fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial".
Novamente remeto o leitor ao excelente artigo de Alberto Caminã publicado nessa mesma coluna6 para observação da discussão acerca das interpretações sobre o que seria um bem de capital essencial que justifique a aplicação da exceção legal.
Embora os argumentos acima expostos sejam judiciosos e bem fundamentados, tendem a interpretar o dispositivo legal de modo a prestigiar o interesse do credor e em prejuízo do objetivo do próprio sistema, na medida em que a retirada da empresa de ativos essenciais ao desenvolvimento de sua atividade impossibilitará a preservação de sua atividade e de todos os benefícios econômicos e sociais dela decorrentes.
Conforme já afirmado, deve-se aplicar ao sistema recuperacional a interpretação conforme as teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus.
Assim, relembre-se, a melhor interpretação que se deve dar aos institutos da recuperação judicial é aquela que permita o aplicador da lei atingir de maneira mais eficaz os resultados de interesse social tutelados pelo sistema recuperacional e não os interesses parciais de credores ou devedores.
A viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas.
Os interesses maiores, garantidos pelo sucesso da recuperação da empresa, devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial.
O interesse parcial de credor ou devedor nunca poderá se transformar em barreira intransponível à realização do interesse maior, de natureza pública/social, decorrente da preservação dos benefícios oriundos da atividade empresarial saudável.
Não me parece que a interpretação restritiva, que permite que o credor realize sua garantia sobre bem ou ativo sem o qual a empresa reste impossibilidade de prosseguir (embora viável) seja a mais adequada às finalidades do sistema. Permitir que o credor financeiro retire os recebíveis essenciais da recuperanda, mesmo durante o prazo de negociação do plano (stay period), viola a lógica do sistema e transforma o direito do credor numa barreira intransponível à realização do interesse social, em detrimento dos próprios objetivos do sistema recuperacional.
E mais.
Segundo a teoria da divisão equilibrada de ônus, conforme já visto, todos os credores e devedores devem assumir ônus no processo de recuperação judicial, de modo que suas condutas viabilizem o atingimento do resultado maior do processo recuperacional.
Mesmo o credor não sujeito à recuperação judicial, por ser titular da posição de credor fiduciário, deverá suportar ônus de não retirar do estabelecimento comercial um bem de capital essencial ao desenvolvimento da empresa, com o fim de se garantir o sucesso da recuperação judicial da devedora. É essa a essência desse dispositivo legal: impor limitação ao credor não sujeito em função da preservação da função social da empresa.
Se assim é, não se pode admitir que outras interpretações, mais restritivas, liberem os credores para realizar suas garantias em detrimento da função social da empresa.
Tendo em vista tudo o que já foi dito, resulta cristalino que a expressão legal "retirada" deve ser lida como "realizada" ou "fruída em detrimento da devedora". Não se deve permitir que a credora titular da garantia fiduciária "execute", "frua", "realize" o bem objeto da garantia em detrimento do funcionamento da devedora.
Da mesma forma, a expressão "bem de capital essencial à atividade da devedora" deve ser interpretada como sendo qualquer bem, objeto da garantia fiduciária, cuja retirada, fruição imediata, excussão ou realização de qualquer forma coloque em risco a manutenção das atividades empresariais.
E não é só.
O período de duração em que o credor fiduciário não pode realizar sua garantia deve coincidir com o prazo de proteção conferido à devedora para negociação do plano. Conforme já definido pelo STJ, o prazo de 180 dias poderá ser prorrogado judicialmente, desde que o atraso na realização da Assembleia Geral de Credores não seja atribuído à conduta da devedora.
Portanto, conclui-se que o credor fiduciário, muito embora conserve seus direitos de propriedade sobre a coisa, não poderá realizar, executar, fruir, retirar ou de qualquer forma excutir o bem objeto da garantia, durante o período de proteção da devedora (stay period) - 180 dias ou mais, desde que haja prorrogação judicial - na medida em que tal pretensão implique em risco de encerramento das atividades empresariais da devedora.
Aliás, a interpretação literal aplicada pelo STJ à ressalva legal certamente levaria à criação de situações violadoras do princípio da isonomia entre os credores titulares da mesma posição jurídica. Isso porque, o credor titular de uma alienação fiduciária sobre a máquina industrial não poderia vender a máquina para realização de seu crédito, ao passo que o credor titular da cessão fiduciária de recebíveis, poderia fazê-lo sem qualquer restrição.
Ora, à luz do art. 49, §3º da lei 11.101/05, os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis estão sujeitos ao mesmo regime jurídico, não sendo razoável que o interprete os coloque em situações diametralmente opostas em relação ao exercício do direito de propriedade sobre a coisa objeto da garantia.
E nem se diga que a liberação da trava bancária na cessão fiduciária equivale a esvaziar a garantia, o que não aconteceria no caso da máquina industrial, que lá permaneceria existindo. A garantia não é o dinheiro e sim os recebíveis, e esses continuarão existindo na medida em que as atividades da empresa sejam preservadas.
Vale destacar que o STJ já definiu, com toda a razão, que o juízo da recuperação judicial deve fazer o controle de essencialidade de bens a fim de autorizar ou não a realização de penhoras ou de qualquer ato de excussão judicial proveniente de outros juízos e relativos aos créditos extraconcursais/não sujeitos, inclusive créditos fiscais ou mesmo com origem posterior ao ajuizamento da recuperação judicial.
Portanto, se o STJ entende que mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos, não se pode admitir que a realização do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial, por qual razão se daria interpretação mais favorável aos credores com cessão fiduciária títulos ou recebíveis (tendo em conta que credores fiduciários são relativamente impactados pela recuperação judicial como explicado acima)?
Tudo isso fundamenta a conclusão de que a melhor interpretação que se deve dar ao art. 49, §3º da lei 11.101/05 é aquela que equilibra o exercício do direito do credor fiduciário com a preservação da empresa e a tutela de sua função social. Qualquer ativo que seja essencial à restruturação da empresa viável - seja bem de capital ou não - deverá ser preservado durante o período em que a devedora negocia um plano de superação da crise com seus credores.
Poderá o magistrado, no exercício da divisão equilibrada de ônus, estipular uma indenização adicional em razão da retenção da garantia pelo devedor, conforme bem observado por Alberto Camiña, mas nunca será adequado permitir ao credor fruir da garantia em detrimento dos objetivos maiores do processo recuperacional.
__________
2 Além do fisco, cuja discussão fica reservada para outra oportunidade, mas que tem gerado problemas equivalentes.
3 COSTA, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. In: Bernardo Bicalho de Alvarenga Mendes (Org). Aspectos Polêmicos e Atuais da Lei de Recuperação de Empresas. 1 ed. Belo Horizonte. D'Plácido, 2016. V. 01, pág. 71/101
4 Vide nota 1, supra.
6 Nota 5, supra.