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Direito do Trabalho e interseccionalidade? Alguma relação?

segunda-feira, 24 de março de 2025

Atualizado às 09:24

Toda sociedade precisa justificar suas desigualdades. Apesar de existir quem defenda que a economia é um ramo da ciência cujo objeto seria a escassez ou que, na verdade, se destinaria a estudar o conjunto das relações de produção, o que se quer saber efetivamente é como se dá a divisão do trabalho. Afinal, a quais grupos compete a realização de determinadas tarefas? Quais são os critérios usados para se definir o valor dos salários?

A sociedade contemporânea justifica sua organização e suas desigualdades a partir da narrativa proprietarista, empreendorista e meritocrática, como afirma Thomas Piketty no livro Capital e Ideologia. Essa narrativa, no entanto, se torna cada vez mais frágil porque é distante do que se vive efetivamente no cotidiano. Quantas pessoas que vendem picolé na praia, depois se tornam um empresário considerado bem-sucedido? Os raros exemplos apenas demonstram sua notável excepcionalidade. Além disso, a desigualdade moderna se caracteriza por um conjunto de práticas discriminatórias que não são abarcadas pelo discurso meritocrático. A dificuldade de contratação ou precarização por que passa a pessoa negra, por exemplo, não entra nessa conta.

Mas entra na conta da pobreza e do desemprego. Conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais, divulgados pelo IBGE em 2022, o Brasil possui 67,8 milhões de pessoas em situação de pobreza, sendo que 71% dessas pessoas seriam negras (pretas e pardas).  Quarenta por cento da população negra vive em situação de pobreza (45 milhões de pessoas) e 7,7% se encontram em extrema pobreza (8,7 milhões de pessoas). No mercado de trabalho, 65,1% das pessoas desocupadas são negras. A taxa de desemprego atinge 5,9% de pessoas brancas, enquanto 8,9% de pessoas pretas e 8,5% de pardas. Dados do CEBRAP demonstram que 62% dos motoristas de aplicativos e 68% dos entregadores são pretos e pardos. A renda mensal de 40% dos motoristas de aplicativos e de 39% de entregadores é de três a seis salários-mínimos.

Marcelo Manzano e André Krein, no artigo "A Pandemia e o Trabalho de Motoristas e de Entregadores por Aplicativos no Brasil", observam que após a crise econômica provocada pela política de austeridade, a partir de 2015, com a radicalização da agenda neoliberal e a efetivação das reformas fiscal, trabalhista e previdenciária, o número de condutores de motocicletas, automóveis, taxis, caminhonetes cresceu de forma expressiva, bem como houve aumento da taxa de informalidade entre essa categoria de trabalhadores.

O aumento da informalidade ou sua manutenção em altos índices significa que as pessoas que estão nessa situação ficam à margem da proteção social. Se ficarem doentes, por exemplo, e, por isso, não puderem trabalhar, nada receberão pelo período. Uma mulher que engravide, não terá acesso à licença maternidade. A pessoa estará, portanto, em situação de desamparo por parte do Estado.

O Direito do Trabalho é importante sobretudo nesses contextos de crise e desigualdades sociais. Isso porque uma de suas principais funções é justamente garantir a existência de condições mínimas de contratação, evitando, assim, que pessoas em situação de vulnerabilidade se submetam a qualquer tipo de pactuação para ter uma renda mínima naquele mês, ou seja, para garantir tão somente a sua sobrevivência. Este ramo do Direito proporciona não apenas proteção social para os trabalhadores que estão sob seu escopo, mas é capaz de promover distribuição de renda, o que diminui a desigualdade social. Thomas Piketty comprova que entre 1980 e 2018 (sendo este último ano o corte realizado pelo autor), houve crescimento econômico, mas não ocorreu distribuição de renda de forma proporcional para todas as classes, ou seja, identificou-se o aumento da desigualdade social em grande parte do mundo.     

É nesse contexto dramático que inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal são prolatadas no sentido de retirar categorias de trabalhadores do espectro da proteção social. Na ADI 3.961 e na ADC nº 48, a Corte considerou constitucional a lei 11.442/07, cuja redação afasta a possibilidade de reconhecimento do vínculo de emprego do motorista profissional, ainda que a atividade se realize com subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade (artigos 2º e 3º da CLT).

No mesmo sentido, a decisão proferida na ADI 5.625, em que se considerou constitucional que manicures e cabeleireiros tenham com o salão de beleza uma relação de salão-parceiro, ou seja, podem ser MEI e não terão vínculo de emprego. Desconsidera-se, portanto, mais uma vez, os elementos fáticos daquele caso concreto. Não importa que aquela manicure coloque sua força de trabalho em prol de outrem, que respeite as regras do local, tenha compromisso com os clientes agendados pelo próprio salão sem sua expressa anuência, chegue na hora, atenda bem às clientes, não mande outra manicure em seu lugar, tampouco falte sem justificativa. Arcará com todos os ônus de sua vida pessoal, mesmo recebendo um salário que talvez dê conta de pagar as contas do mês.

Os dados do IBGE, adicionados à percepção da vida cotidiana, demonstram que a maioria dos trabalhadores abrangidos por essas leis e decisões judiciais são pessoas negras. São estas que, em sua maioria, se ficarem doentes não receberão, que se engravidarem, não terão direito à licença maternidade, que se morrerem e deixarem um filho ou uma filha menor de idade ficarão estas crianças sem qualquer garantia para a proteção da infância.

Considerando-se que o racismo atua como um dispositivo de poder que estrutura a sociedade, como defende Sueli Carneiro, a manutenção do modo "normal" com que as relações sociais se desenvolvem gerarão resultados que reproduzem a continuidade das pessoas negras em situação de pobreza e de subalternidade. Não se trata de uma patologia, mas simplesmente do "natural andar da carruagem". As leis e decisões que retiram do escopo da proteção social do Estado uma população invisibilizada, mantém o status quo, permanece, portanto, a estrutura racista que existe, deixando a população negra em condições precarizadas e de maior desigualdade social.  

Bibliografia

ALMEIRA, Silvio Luiz de. Racimos Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro. Pólen, 2019. Feminismos Plurais/ Coordenação de Djamila Ribeiro.

CARNEIRO, Sueli. Dispositivos de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Editora Zahar, 2023.

PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. Capital e Ideologia. Tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto, Dorothée de Bruchard. 1 ed. Rio de Janeiro: Intríseca, 2020.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. Revista Internacional de Direitos Humanos, nº 06. Ano 4. 2007

https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2023/05/Estudo-Cebrap-Amobitec.pdf acessado em 02.03.2025

https://journals.openedition.org/cs/5004 acessado em 02.03.2025

https://www.migalhas.com.br/coluna/olhares-interseccionais/424366/a-dinamica-socio-politica-do-racismo-e-reflexos-na-contemporaneidade acessado em 02.03.2025

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5094239 acessado em 02.03.2025

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur425978/false acessado em 02.03.2025