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A face oculta do ódio: A inclusão como disfarce

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Atualizado em 6 de dezembro de 2024 13:30

"Parece um macaco!", "Você tem que morrer; você é um monstro", "Parece um ET". Essas foram algumas mensagens deixadas nas redes sociais de uma criança de três anos, com Síndrome de Down, conforme foi apresentado na reportagem exibida em 2022 no Fantástico.

"O diabo está visitando o ventre das desprotegidas", disse um pastor da Assembleia de Deus da cidade de Tucuruí, no Pará, em julho de 2024, quando "explicava" sobre o aumento do nascimento de crianças com TEA - Transtorno do Espectro Autista.

Esses são apenas alguns exemplos de discurso de ódio praticado contra pessoas com deficiência. O discurso de ódio é a manifestação de pensamento cujo objetivo é incitar a discriminação, violência, exclusão, hostilização, repulsa e indiferença contra um indivíduo ou grupo, a partir da sua condição, como a raça, etnia, gênero, orientação sexual, deficiência, entre outros atributos. Essas manifestações visam desumanizar e inferiorizar o outro, gerando um ambiente nocivo de intolerância, medo e exclusão social. Por que a intolerância e a discriminação contra as pessoas com deficiência se intensificaram?

A resposta a essa questão é complexa e envolve uma intrincada rede de fatores históricos, ideológicos, sociais e culturais. Desigualdade social, discriminação estrutural, barreiras atitudinais, falta de inclusão nos sistemas sociais comuns e a corponormatividade são fatores que criam um ambiente propício à disseminação do ódio. A vulnerabilidade das pessoas com deficiência torna-as alvos fáceis nas redes sociais, principal instrumento para propagação de discurso de ódio.

As redes sociais transformaram-se em um terreno fértil para a difusão do discurso de ódio a partir da ideia de estigma, tornando-se uma ferramenta importante para expansão e o fortalecimento de ideologias extremistas e excludentes contra minorias na forma de capacitismo, misoginia, racismo, xenofobia, homofobia, intolerância religiosa, entre outros. O anonimato, a facilidade de compartilhar informações, a baixa civilidade e a formação de bolhas ideológicas amplificam os efeitos negativos das plataformas. Os algoritmos das redes sociais, projetados para aumentar o engajamento, tendem a apresentar conteúdos que "confirmam" as crenças preexistentes dos usuários, que recebem as informações como verdades, reforçando preconceitos, validando o ódio, radicalizando opiniões.

Em relação às pessoas com deficiência, o capacitismo - termo pautado na arquitetura social de um corpo padrão, sem deficiência - é uma forma de discriminação que se funda na crença de que as pessoas com deficiência são sujeitos sociais inferiores, subestimando a capacidade e aptidão das pessoas, decorrente da funcionalidade dos seus corpos. Essa ideologia, profundamente enraizada na sociedade, é reforçada por representações negativas e estereotipadas nos sistemas sociais comuns, especialmente no sistema educacional, nos meios de comunicação e na cultura popular.

As representações negativas do discurso de ódio geram impactos psicológicos sobre as pessoas com deficiência e seus familiares, como ansiedade, depressão, baixa autoestima, traumas e isolamento social. O Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de fevereiro de 2024, que trata do panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas no Brasil de 2010 a 2021, fez uma análise descritiva dos dados coletados, sendo apurado um predomínio elevado de violência autoprovocada, por diversos fatores, entre negros (45,4%) e pessoas com deficiência (29,6%).

O discurso de ódio não pode ser confundido com liberdade de expressão, eis que incita a violência e a discriminação, representando uma clara violação à concepção jurídica multinível de Direitos Humanos, fundada na ética e na alteridade. Segundo Flávia Piovesan, a ética dos Direitos Humanos "vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano" (CDPD. Novos Comentários. 3ª edição, revisada e atualizada. SDH: 2014).

Vale ressaltar que a liberdade de expressão é fundamental para o Estado Democrático de Direito (CF, art. 5º, IV), permitindo o debate de ideais e a crítica ao próprio sistema. Porém, quando essa liberdade é utilizada para violar a ética dos Direitos Humanos, para discriminar, segregar, desumanizar grupos vulnerabilizados, ela se transforma em instrumento de opressão e violência. A convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência apresenta normas protetivas às pessoas com diversidade funcional, a partir do princípio universal da igualdade e não-discriminação (CDPD, art. 3, b e art. 5), os quais devem ser tratados, em qualquer ambiente, com a mesma consideração e respeito.

A proteção em favor das pessoas com deficiência contra discurso de ódio está prevista no art. 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), o qual tipifica como crime a discriminação contra pessoa com deficiência, qualificando o crime quando cometido por intermédio de meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza (§ 2º).

O combate ao discurso de ódio pressupõe uma ação conjunta e concreta de diversos atores sociais: 1) do governo, através da implementação de políticas públicas de promoção de direitos humanos e conscientização do respeito às diferenças; 2) A aplicação de práticas de ESG - Ambiental, Social e Governança, (em português), com foco na dimensão social, em instituições, públicas e privadas, promovendo o respeito à diversidade, o combate ao preconceito e inclusão de minorias; 3) Regulação mais clara e específica das redes sociais por meio de normas, para prevenir crimes e combater o discurso de ódio; 4) A responsabilização das plataformas digitais por omissão na prevenção e combate ao discurso de ódio; 5). A responsabilização criminal dos autores dos crimes pelo Poder Judiciário e 6) Educação inclusiva, como instrumento democrático de respeito à diversidade humana, equidade e valorização das diferenças, em todos os níveis de ensino e em diversos espaços, criando uma base sólida para uma sociedade mais humana.

O discurso de ódio corrói os fundamentos da própria democracia. Ao desumanizar o outro, alimentamos um ciclo vicioso de violência e exclusão que ameaça a coexistência pacífica, colocando em risco a sociedade. A concretização dos valores de direitos humanos e o combate ao discurso de ódio são imperativos para o fortalecimento da democracia. É preciso que os poderes da república, empresas, escolas, famílias e indivíduos se unam para construir uma sociedade mais justa e inclusiva.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.