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A década internacional de afrodescendentes: ações de enfrentamento ao racismo e a visita da comissão da ONU ao Brasil

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Atualizado às 07:33

Em consonância com o calendário aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), foi proclamado o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes, pela resolução 68/237, com o lema "reconhecimento, justiça e desenvolvimento", importante referência da comunidade internacional à representatividade dos povos e pessoas que possuam raízes originárias em África, que ali residem ou que povoam o mundo inteiro a partir da diáspora africana, cujos direitos humanos precisam ser afirmados, promovidos e protegidos, especialmente diante da histórica discriminação sistêmica e das desigualdades econômicas e sociais decorrentes do legado do tráfico de pessoas, da escravidão e do colonialismo.

Segundo estimativas das Nações Unidas, cerca de 200 milhões de pessoas autoidentificadas como afrodescendentes residam nas Américas, e outros muitos milhões em outras partes do planeta, e nesse cenário da década comemorativa a ONU disponibilizou o site no qual podem ser acessados vários materiais pela comunidade em geral, podendo ser utilizados por instituições públicas e privadas dando visibilidade à abordagem desta importante temática, representando um compromisso importante no enfrentamento ao racismo.

A Década Internacional de Afrodescententes tem os seguintes objetivos estratégicos: a) promover o respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos; b) promover um maior conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a contribuição de afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades; c) adotar e reforçar os quadros jurídicos nacionais, regionais e internacionais de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como assegurar a sua plena e efetiva implementação.

No Brasil, conforme dados do Censo do IBGE 2022, a população negra corresponde a 56% da população brasileira, integralizando aproximadamente 113 milhões de pessoas. Nesse cenário, é importante refletirmos e identificarmos que o enfrentamento ao racismo, como instrumento para a concretização do direito à igualdade e à não-discriminação, é fundamental para o desenvolvimento econômico e social em nosso país.

A título de exemplo, conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, em 2022 o Brasil tinha 67,8 milhões de pessoas em situação de pobreza, destas 71% são pessoas negras (pretas e pardas). 40% dos negros vivem em situação de pobreza (45 milhões de pessoas) e 7,7% dos negros em situação de extrema pobreza (8,7 milhões); cerca de 1 a cada 5 famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas sofrem com fome no Brasil, proporção que cai para 1 a cada 10 naquelas comandadas por pessoas autodeclaradas brancas. Quanto aos indicadores de empregabilidade, os negros correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%), e a taxa de desemprego entre a população branca é de 5,9%, ao passo que atinge 8,9% entre pretos e 8,5% entre pardos.

Para além das recomendações e exortações da Resolução 68/237, proclamatória da Década Internacional de Afrodescendentes, a ONU designou a especialista Ashwini K.P. (Índia) como a Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, que veio ao Brasil em missão oficial no período de 05 a 16 de agosto de 2024 para avaliar o progresso e os desafios para alcançar a igualdade racial e eliminar a discriminação racial, realizando reuniões em seis cidades brasileiras (Brasília, Salvador, São Luís, São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis), em diálogos com a participação de autoridades federais e estaduais, inclusive do Sistema de Justiça, representantes de grupos étnicos e raciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos.

Tive a oportunidade de participar da reunião com a Relatora Ashwini K. P., realizada em São Luís/MA, no dia 10 de agosto de 2024, como representante do Poder Judiciário do Maranhão, na companhia da juíza Elaile Silva Carvalho1, evento coordenado pelo Procurador-chefe da Procuradoria Regional do MPF no Maranhão, Alexandre Silva Soares, e juntamente com representantes do Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública Estadual, momento histórico para as instituições do Sistema de Justiça do Maranhão, que possui a 3ª maior população negra, a 2ª maior população quilombola e a 8ª população indígena do Brasil.

Na ocasião, foram apresentadas as ações institucionais voltadas ao enfrentamento ao racismo e as boas práticas adotadas, inclusive com ações interinstitucionais bem sucedidas, evidenciando caminhos para o combate ao racismo estrutural e institucional. Os representantes do Sistema de Justiça também manifestaram a preocupação das instituições com os índices de violência nos conflitos agrários, contra lideranças indígenas, quilombolas e de religiões de matriz africana, e a exploração de mão-de-obra em condições análogas à escravidão, sendo o Maranhão um dos maiores exportadores de pessoas que são submetidas a esta forma moderna de escravidão no Brasil.

Ao final da missão oficial, a Relatora Especial apresentou suas conclusões preliminares, em entrevista coletiva, manifestando preocupação com as formas contemporâneas de manifestação do racismo sistêmico no Brasil, a baixa representação política dos grupos étnicos vulnerabilizados, os altos índices de violência e letalidade em face da população negra, indígena e quilombola e as discriminações interseccionais com base em deficiência, gênero, orientação sexual e em face de pessoas migrantes e refugiadas. A relatora destacou, também, boas práticas que foram catalogadas, entre elas programas de ações afirmativas em instituições de ensino superior e outras instituições públicas, e iniciativas para garantir o reconhecimento cultural e a memória sobre as experiências coletivas de pessoas de grupos raciais e étnicos marginalizados.

A íntegra da apresentação está disponível na página do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e os resultados finais serão apresentados na 59ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho de 2025.

Por fim, importante registrar que esta visita oficial da ONU converge para o calendário da UNESCO, com o Dia Internacional de Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição, comemorado em 23 de agosto, em referência à noite de 22 para 23 de agosto de 1791, data em que negros escravizados e ex-escravizados de São Domingos, então colônia francesa, atual Haiti, se revoltaram contra o sistema de escravidão e de desigualdades.

Os estudiosos deste evento histórico afirmam que os líderes e participantes do levante foram fortemente influenciados pelas ideias iluministas da Revolução Francesa, em que se afirmava a igualdade entre os homens, e assim se impulsionaram a lutar pela liberdade e por seus direitos, a partir das reflexões decorrentes da manifesta contradição entre aquilo que os franceses pregavam na Europa e o que aplicavam naquela colônia.

Em decorrência desse movimento foi proclamada a independência haitiana em 1804, sendo o primeiro território das Américas a abolir a escravidão, um marco histórico na afirmação dos Direitos Humanos.

Portanto, reforça-se a necessidade de convergência dos compromissos e esforços institucionais, em uma postura assertiva e colaborativa para a implementação e efetividade de políticas públicas voltadas aos grupos étnicos vulnerabilizados e historicamente discriminados, com uma perspectiva interseccional, a partir da construção coletiva e dialogada que atenda às diretrizes dos tratados internacionais, em especial, a partir da escuta ativa e de protocolos que observem a consulta livre, prévia e informada preconizada pela Convenção 169 da OIT.

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1 Matéria do evento disponível aqui.