O artigo 20-C da lei 14.532/23 como instrumento de enfrentamento da mitologia de negação do racismo
terça-feira, 6 de fevereiro de 2024
Atualizado às 10:24
Em oportunidade anterior nesta coluna1, assentamos que a sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o racismo sem racistas, a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas.
Assim, a discussão sobre as questões raciais no Brasil é sempre atravancada por um escudo social de ignorância, e pela crença em mitos instituídos de longa data supera a racionalidade e a experiência da realidade concreta. Prova disso é a vigência do conceito de democracia racial como ideologia amplamente defendida no Brasil. De acordo com Abdias do Nascimento, devemos compreender "democracia racial" como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país.2
A consequência direta da institucionalização desse mito é a popularização de teses como a existência do "racismo reverso", ou de um "identitarismo radical", que promoveria uma "discriminação contra as maiorias"3. Os discursos alarmistas de que o debate sobre as questões raciais promoveria um separatismo e avivaria ressentimentos, impedindo uma pacificação social, é um subterfúgio para impedir o adequado enfrentamento dos problemas causados pelo racismo, em um país em que os crimes raciais seguem em ampla ascensão4. O combate ao racismo carece, portanto, de atenção máxima do poder público. Nesse contexto, a lei 14.532/2023 concretizou um grande avanço ao acrescer à lei 7.716/89 o artigo 20-C, que dispõe:
Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
O dispositivo vem em estrita consonância com o artigo 7º da Convenção Interamericana de Combate ao Racismo, ratificando o compromisso no Brasil de adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado. Leva também em consideração a obrigação por parte do Estado de adotar medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos que sejam vítimas da discriminação racial em qualquer esfera de atividade, seja pública ou privada, com vistas a promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, bem como combater a discriminação racial em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais. Assim sendo, esse dispositivo legislativo oferta ferramentas para a compreensão do fenômeno de discriminação racial, étnica, religiosa ou de procedência nacional, e constitui um grande avanço na luta antirracista.
Contudo, posicionamentos contrários a este importante marco legislativo suscitam, inclusive, a inconstitucionalidade do artigo 20-C na lei 7716/89, entre eles, destacam:
1) violação à independência funcional do juiz;
2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e
3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).5
Ora, tal posicionamento apresenta problemas em algumas dimensões, tanto por ignorar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, quanto pela escolha política de não enfrentar o conceito de igualdade material. A respeito da violação à independência funcional do juiz, o absurdo está posto na medida em que é compreensível no artigo 20-C, o alinhamento ao compromisso constitucional de combate ao racismo, também alicerce do exercício jurisdicional, e que prescreve um conteúdo normativo consonante a outros exemplos vigentes, como o artigo 4º da Lei Maria da Penha6, e o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ.
O referido Protocolo do CNJ, inclusive traz um capítulo específico para tratar da interpretação e aplicação do Direito nos conflitos de gênero, em que é possível inferir que a independência jurisdicional não se contrapõe ao reconhecimento de que conceitos, valores e princípios são, muitas vezes, definidos a partir da perspectiva daqueles que detêm o poder e, por serem alheios ao contexto no qual vivem pessoas subordinadas, acabam as excluindo de sua proteção ou perpetuando subordinações.7
No tangente a uma suposta violação do princípio de igualdade material pelo artigo 20-C aqui analisado, nunca é demais relembrar que segundo o STF, o Constituinte de 1988 estabeleceu precedência da igualdade material sobre a formal, permitindo ao Estado intervir para corrigir as distorções oriundas de aspectos históricos que desembocaram em diferenças de índole econômica, social e cultural entre os grupos8. Uma norma que visa corrigir a discriminação racial nacionalmente ser compreendida como atentatória à igualdade material, é, portanto, um contrassenso ululante. Igualmente estarrecedor é caracterizar uma medida de proteção aos sujeitos vulneráveis visando a equidade assegurada pela Constituição como sendo um tratamento discriminatório entre grupos. Coisas que a agnotologia pode explicar9.
Indo além, rememoramos que a lei 7.716/89 visa coibir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que é salutar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, que não são a mesma coisa, atingem diversos grupos sociais, mas são igualmente albergados na lei de combate ao racismo. Em um país onde vigora a política de negação das questões raciais, emaranhar conceitos distintos para deslegitimar um dispositivo legal que reconhece as consequências danosas do racismo, é um vilipêndio ao conceito de igualdade material, e um retrocesso na luta pela promoção de igualdade racial.
Por todas essas razões, no Brasil a cruzada em defesa das maiorias é mais um moinho de vento na missão quixotesca que visa banalizar sérias discussões sobre questões raciais. Os profissionais do Direito interpretam as normas a partir de conteúdos cognitivos internalizados no processo de socialização, além dos interesses dos grupos sociais que eles representam, atuando assim, muitas vezes, com o intuito de reproduzir as relações de poder que estruturam a sociedade na qual vivem10. Daí a necessidade de estabelecermos e defendermos critérios de interpretação que considerem expressamente a existência de assimetria de tratamento entre os grupos minorizados e as ditas maiorias.
É preciso atenção às escolhas e posicionamentos que contribuem para a manutenção das estruturas de poder e hierarquias raciais ainda existentes na sociedade. O reconhecimento das diferenças é primordial para a materialização da igualdade.
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1 WILIAM, Jonata. A neurose cultural brasileira e o julgamento do habeas corpus 208.240 no STF. Disponível aqui.
2 NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo (SP): Perspectivas, 2016, p.111.
3 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.
4 Registros de racismo crescem 68% no Brasil em 2022.
5 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.
6 Art. 4º, Lei 11.340/06 Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, p.51. Disponível aqui.
8 BADIN, Luiz Armando; PROL, Flávio Marques. O princípio da igualdade na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal. Revista do Advogado - AASP, São Paulo, ano XXXII, n. 17, p. 135-143, out. 2012, p. 140.
9 A agnotologia foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância.
10 MOREIRA. Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019, pp. 134-135.