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Gol de racismo - "Separados, mas iguais": De Rosa Parks à Samantha Vitena

terça-feira, 2 de maio de 2023

Atualizado às 07:59

"Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar.
Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de
forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo
.
Estava cansada de ser tratada como uma cidadã de segunda classe"

(Rosa Parks)

1º de dezembro de 1955, Rosa Louise McCauley Parks, costureira afro-americana estava sentada dentro de um ônibus de Montgomery, em plena época de segregação racial nos EUA e foi intimada a levantar para dar lugar a um passageiro branco.

Ao recusar-se a levantar, a polícia foi acionada pelo motorista do ônibus e Rosa Parks, presa. Pioneira na luta pelos direitos civis, Rosa causou um levante contra a segregação, na Comunidade negra dos EUA. "Estamos cansados de ficar segregados e humilhados. Não temos alternativa a não ser protestar", exclamou o pastor Martin Luther King Jr.

Durante aproximadamente 381 (trezentos e oitenta e um) dias, houve boicote aos transportes coletivos. Homens e mulheres negras aliaram-se à luta e não utilizavam os ônibus. Em lugar disto, caminhavam, em protesto, das suas casas aos trabalhos e vice-versa. Caminhavam por dignidade, por reconhecimento, pelo fim da segregação. Em 1956, a Suprema Corte declarou a ilegalidade da segregação racial em locais públicos. O "não", de Rosa Parks, fez história. 

28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal. Sim, não basta que os nossos corpos negros jorrem sangue pelo chão dessa pátria mãe nada gentil para sentirmos na pele a força da brutalidade do racismo à brasileira. As ações e omissões também nos expõem e vitimizam.

No dia 29, o vídeo do escárnio contra Samantha e contra todas nós, mulheres negras, foi divulgado. Uma mulher altiva, questionava sobre o seu direito de estar, de permanecer, de merecer cruzar a ponte aérea Salvador-São Paulo, em um transporte aéreo. Tal qual Rosa Parks, em 1955, Samantha, disse "não". Não ao abuso, não à segregação, não ao racismo operado pela Companhia aérea.

Um corpo que resistiu e não se calou diante de tamanha atrocidade. Um corpo que protestou e ultrapassou todos os limites a ele impostos pelo imaginário da branquitude: sim, uma mulher preta tem que estar no lugar de subserviência, calada. A sua mala tinha que ser transportada como eles quisessem e não como mandam as normas.

No caso, ainda que o notebook estivesse dentro da bagagem de mão e a própria companhia aérea no site oficial divulgue que "Seu laptop só poderá ser transportado somente como bagagem de mão", a de Samantha, seria despachada. Como houve protesto, Samantha também foi despachada por agentes da Polícia Federal, para longe do voo 1575 da Gol, por "medida de segurança" e por ordem expressa do Comandante.

De acordo com o artigo 168 da lei 7565/1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro da Aeronáutica, "o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo".

Eu prefiro deixar que vocês, leitoras/es tirem as suas próprias conclusões sobre o comando, obedecido pela Polícia Federal, à ordem da autoridade a bordo da aeronave. Isto porque, a jornalista Elaine Hazin, que também estava no voo, relatou em entrevista a um jornal local:

Logo que eu entrei, tinha uma mulher branca em minha frente que ela 'tava com 3 (três) bagagens de mão, três! E ela acomodou as 3 (três) bagagens de mão dentro do compartimento, mesmo a tripulação falando pra ela: "senhora, por favor, bote uma bagagem embaixo do assento". E ela falou: "não vou botar, eu vou botar minha bagagem aqui em cima"! E essa senhora colocou a bagagem dela em cima, as 3 (três) bagagens e a mulher negra não colocou nenhuma.

O relato da Elaine traduziu o desespero: "Meu coração está sangrando neste momento. Presenciei agora à noite um caso extremamente violento de racismo, sofrido por uma mulher negra no voo 1575 da Gol, chamada Samantha. Eu me desespero, todas com muito medo, apreensão e os policiais ameaçam algemá-la. Não dizem a razão de levá-la presa, só que foi uma ordem do comandante".

Eu fugi o quanto pude das redes sociais, não aguentava mais assistir ao vídeo e sentir a dor de Samantha. Sobretudo, porque 90% das vezes em que viajei de avião, estava sozinha. Sobretudo, porque o medo tomou conta de mim. Sobretudo, porque os nossos corpos são invisibilizados no percurso e não nos dão o direito de existir.

Mas, conforme nos ensinou Rosa Parks, "Você nunca deve ter medo do que está fazendo quando está certo". Que a sua semente continue a florescer e que nós, mulheres negras e homens negros sejamos pontes para o boicote à toda e qualquer empresa que ganha dinheiro de preto, mas se acha no direito de vilipendiar os nossos corpos.

"Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.  Ladrão. Então peguemos de volta o que nos foi tirado, mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado". Djonga