O STF não é lugar de negro: uma crítica sobre o ranço do histórico escravista e do pacto narcísico da branquitude na colonização dos espaços públicos e privados de poder no país
segunda-feira, 3 de abril de 2023
Atualizado às 09:49
No livro Lugar de Negro1, Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, além de desmascarar a falácia da democracia racial, há mais de quatro décadas, já denunciavam as opressões e discriminações de todo gênero sofridas pela população negra, as quais constituíam e ainda constituem a epigênese da hierarquia das relações sociais e profissionais atribuídos às mulheres negras e aos homens negros no país.
A genialidade do título da obra escancara qual o lugar social e hierárquico em que é permitida a presença da mulher negra e do homem negro na sociedade brasileira, quer no que diz respeito à posição social e profissional propriamente dita, quer no que se refere ao espaço imaginário que nos é reservado quando a branquitude2 se depara com uma pessoa negra, não raro, vinculados a esteriótipos demarcados por elementos de inferioridade e vulnerabilidade.
Partindo desse lugar ou não lugar de negro construído histórica e culturalmente, nos últimos meses, as rodas de conversas tem sido tomadas por expectativas e especulações a respeito de quem serão as(os) próximas(os) ministras(os) a serem indicadas(os) pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, para a ocupar as vagas decorrentes da aposentadoria dos Ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.
Centenas de movimentos sociais e associativos tem encampado inúmeras articulações visando a demonstrar a necessidade de que a mais alta corte do país espelhe nessas duas vagas o reflexo da população brasileira, composta majoritariamente por mulheres e pessoas negras, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2021 (PNAD contínua), atualmente composta por 56,1% dos brasileiros que se identificam como pretos e pardos3 e 51,1%, são mulheres.
A Suprema Corte Brasileira, criada por meio do decreto 510, de 22 de junho de 1890, nos 133 anos de sua existência, contou até então com a presença de somente 3 mulheres (2 ainda em atividade), todas brancas, e apenas três ministros negros4 , o último, foi o ministro Joaquim Barbosa que exerceu o cargo no período de 2003 até 2014. Hoje já passados quase 10 anos, a composição do Supremo Tribunal Federal é integrada por 11 ministros, sendo duas mulheres, que compartilham a mesma identidade racial: são todas(os) brancas (os).
Ao se deparar com esse quadro, o professor de Direito da UNB Benedito Cerezzo Pereira Filho, nos lançou uma provocação para reflexão de como seria se a composição da mais alta corte fosse inversa, ao questionar: "Imaginem, só imaginem, um STF formado integralmente, os Onze, por negros e negras. A ideia choca?".
Essa inversão imaginária das posições do lugar de negro na cúpula do Poder Judiciário, poderia ser estendida aos demais centros de poder e de decisão, quer na iniciativa privada, quer nos Poderes Executivos e Legislativo, onde igualmente caberia essa reflexão. E a resposta não poderia ser a menos esperada: sim, imaginar o cenário proposto, chocaria, sim. Chocaria, sim, porque tradicionalmente todos esses locais não são lugar de negro(a).
A colonização racial e de gênero dos centros de poder, baseada no pacto narcísico que impera entre a branquitude no país5 , que desprestigia tanto a mulher como a pessoa negra, revela a estruturação da sociedade, que preterindo a população negra, sempre empregou os melhores esforços com vistas a empreender o branqueamento racial da população, projeto estatal que contemplou inclusive o fomento e financiamento da imigração de europeus, a quem foi concebido acesso facilitado à terra, bem como assegurou-se trabalho, meios esses indispensáveis para assegurar dignidade e cidadania aos despossuídos, tudo em detrimento da população negra escravizada por séculos e ora, encontrava-se recém-liberta, largada à própria sorte e ao infortúnio da cor.
Tecidas essas considerações, então se indaga: mas, afinal, qual o lugar do negro no país?
Sem dúvidas, é no sistema carcerário, em que 67,4% é composto por pessoas negras, conforme revela o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 20226; é como vítima de violência policial, em que a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta no país7, o que correspondente ao percentual de 79,1% de vítimas letais pretas e pardas8 em decorrência da chancelada necropolótica9 que massacra 2,6 vezes mais corpos pretos e pardos.
O lugar de negro é como corpo referente nas abordagens policiais, em que de "forma aleatória", só Rio de Janeiro, 63% das pessoas pretas e pardas já relatam terem passado por revista, além de 66% terem afirmado já ter sofrido abordagem policial mais de 10 vezes10.
O lugar de negro se encontra nos maiores índices de analfabetos do país: em que no ano de 2019, pessoas da cor preta e parda na faixa etária de 15 anos compunham 8,9% da massa de analfabetos do país, enquanto 3,6% eram pessoas brancas. No grupo etário de 60 anos ou mais, entre os pretos e pardos a taxa de analfabetismo era de 27,1%, enquanto entre os brancos o percentual era de 9,5%11 .
O lugar de negro é como trabalhador vulnerável e subalterno, em que a população negra titulariza as maiores taxas de desemprego, que atingiu 13, 9% de mulheres negras, enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3%; é como integrantes da maior parcela das (os) trabalhadores empenhados em trabalhos desprotegidos, em que 47,5% se destina às mulheres negras e 46,9% a homens negros, enquanto o índice geral entre a população branca é de 34,7%.
O lugar de negro é no trabalho doméstico, em que a proporção de mulheres negras (16,8%) é quase o dobro do quantitativo das mulheres brancas que se empenham na mesma atividade (8,8%), números esses extraídos do triênio de 2019 a 2022, conforme pesquisa do Dieese12.
O lugar de negro é como vítima de "trabalho escravo moderno" em que, do total de 2.575 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, no ano de 2022, 92% eram homens e 83% se autodeclaram como pretos ou pardos13.
Por fim, é lugar de negro o trabalho infantil, cujos dados apontam que 62,7% da mão de obra precoce do país é exercida por pessoas negras, e, quando se trata de trabalho infantil doméstico esse número sobe para 73,5%, dos quais 94% de meninas negras14.
Por tudo isso, é que sabemos que esses todos são o lugar de negro, e por óbvio, o Supremo Tribunal Federal, não o é.
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1 GONZALEZ,Leila. HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
2 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
3 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
4 Ao longo de toda sua história, o Supremo teve apenas 3 ministros negros: Pedro Lessa, o primeiro ministro negro do STF (1907 a 1921), Hermenegildo de Barros (1917 a 1931) e mais recentemente Joaquim Barbosa (2003 a 2014). CRUZ, Fabiano. GARFINKEL, Leo. SOARES, Sarah. A falta de representatividade negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
5 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
6 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
7 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
8 TEIXEIRA, Evandro.Violência policial no Brasil: fatores socioeconômicos associados à probabilidade de vitimização. Acesso em 28 mar 2023.
9 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
10 ANDRADE, Tainá. Estudo mostra que a cor da pele influencia abordagens policiais. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023.
11 BERMÚDEZ, Ana Carla.Analfabetismo entre negros é quase o triplo que entre brancos. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023.
12 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
13 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.
14 DIAS, Guilherme.TTrabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.