Enfrentamento à violência obstétrica: Uma questão de direitos humanos e autodeterminação
segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
Atualizado às 07:03
Nas últimas semanas veio à tona a notícia/denúncia de uma modelo e Influencer que fora vitimada por um conhecido médico por práticas de violência obstétrica no nascimento do seu bebê. O caso promoveu nas redes sociais uma certa comoção, revolta e também espanto, já que o agressor seria bastante reconhecido no meio obstétrico como médico de excelência, sendo notório por falar em programas de televisão e também por prestar assistência médica a personalidades famosas. A classe social privilegiada da vítima não a poupou de sofrer umas das tradicionais práticas abusivas de violência de gênero que estão enraizadas e nosso sistema de saúde.
Trata-se, no entanto, de uma violência pouco denunciada e até dificilmente reconhecida como tal, por que tradicionalmente nos hospitais os agentes de saúde habituaram-se a empregar tratamentos invasivos, ofensivos e violentos contra a mulher no momento do parto. UMA em cada QUATRO mulheres é vítima de violência obstétrica, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo.
Por violência obstétrica podemos entender pela "apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização de processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.1"
Trata-se de uma modalidade de violência de gênero, eis que seus componentes guardam traços de misoginia, sexismo, controle e opressão do feminino, além do racismo institucional quando a prática é dirigida contra mulheres negras e periféricas.
È importante ressaltar, ainda, que são as mulheres negras que mais sofrem violência obstétrica, pois são as que mais peregrinam na hora do parto, pois estudos relatam que este público acaba ficando mais tempo na fila de espera para serem atendidas, têm menos tempo de consulta, estão submetidas a procedimentos dolorosos sem analgesia, em razão da crença racista de que mulheres negras são fortes e sentem menos dor, consequentemente são elas que estão em maior risco de morte materna, segundo a pesquisadora baiana, Dra. Emanuelle Goes.2
Recentemente tivemos notícia da grave violência sofrida uma jovem negra recém saída da situação de rua, a qual fora submetida à violência psicológica, física e tortura enquanto ainda estava em pleno trabalho de parto, tendo-lhe sido negado o direito ao aleitamento materno, de livre demanda, que se relaciona a fatores de proteção à saúde física, emocional e neonatal. Além de perder o poder familiar, tão somente pela sua condição de mulher em situação de sua, foi negado o direito de acesso à Declaração de Nascido Vivo de sua filha recém-nascida, impossibilitando o registro da criança.3
Os Universos do gestar e parir estão ligados à dimensão da sexualidade da mulher e tudo aquilo que controla a sexualidade faz parte do controle social mais amplo que existe sobre os corpos das mulheres como um fator para a manutenção destas em posição de subordinação.
O movimento de humanização do parto vem na contramão desse tipo de prática. Mas o que se entende por parto humanizado? È um modelo de assistência ao parto que preconiza um novo ponto de vista sobre a relação médico-paciente, com a observância do cuidado humanizado, individualizado, levando-se em conta os direitos humanos da mulher, com a adoção de intervenções apenas em casos de necessidade justificada de acordo com a atual medicina baseada em evidências , bem como na observância dos direitos humanos da gestante, priorizando-se, ainda, a vontade e protagonismo da mulher no parto.4
Historicamente, desde que o mundo é mundo, as mulheres sabem parir, eis que o corpo possui a fisiologia natural para essa manifestação da natureza. O parto é um fenômeno natural da vida reprodutiva e familiar e tradicionalmente ocorria em ambiente familiar e comunitário, com a assistência mútua de mulheres nesse momento tão especial. Porém, em determinado período recente da história, desenvolveu-se o pensamento de que haveria inabilidade do corpo da mulher para essa tarefa, fazendo-se necessária a intervenção da medicina, seja por instrumentos interventivos, seja por práticas invasivas e violentas.
Estudos relatam que já houve práticas médicas que amarravam as mulheres no momento do parto ou aplicavam sedativos que afetavam, inclusive, a sua memória do ocorrido, havendo assim uma completa alienação traumática da mulher nesse processo.5
O medo das intervenções dolorosas e a instauração de uma cultura de agressividade e passividade da mulher no parto, levou algumas mulheres a optarem por evitar esse sofrimento com a realização de cesáreas eletivas, o que, de certo modo, colocou a hospitalização em protagonismo, cabendo ao medico escolher data, hora e lugar para que a mulher tivesse um filho.
A grande questão é saber até que ponto a escolha pela cirurgia é realmente uma indicação médica baseada em evidências cientificas ou uma conveniência para a equipe médica? Estaria a mulher livre de ser vítima da violência em uma cesárea eletiva?
Piadas, palavrões, humilhações, intervenções físicas, mutilações são realizadas cotidianamente nos centros obstétricos do Brasil. Poucas vítimas conseguem perceber o que está ocorrendo, não por que a violência seja sutil, mas sim em razão do estado de vulnerabilidade que acomete a mulher no momento do parto ser tamanha, que a situação acaba guardando contornos traumáticos e muitas preferem silenciar sobre o assunto.
Nesse contexto, os agentes de saúde possuem o poder de controlar e vulnerabilizar esses direitos humanos dessas mulheres com um modus operandi que beira a habitualidade.
No Brasil, ainda não dispomos de uma legislação nacional específica sobre este tipo de violação. Alguns diplomas legais de âmbito estaduais tratam do tema, a exemplo das leis 15.759/2015 de São Paulo, a lei 17.097/2017 em Santa Catarina e a lei 23.175/2018, do Estado de Minas Gerais, as quais definem exemplos de condutas consideradas violência obstétrica. Tratam-se de normas não apenas programáticas, mas que ensejam a responsabilidade no âmbito civil e administrativo.
A Lei Federal nº 11.108, de 07 de abril de 2005, mais conhecida como a Lei do Acompanhante, determina que os serviços de saúde do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto. A Lei determina que este acompanhante será indicado pela gestante, podendo ser o pai do bebê, o parceiro atual, a mãe, um(a) amigo(a), ou outra pessoa de sua escolha.
Outros diplomas legais trazem princípios e orientações que, de certo modo, podem ser aplicados no enfrentamento desse tipo de violência, como por exemplo a lei 13.257/2016 , a qual modificou a redação do artigo 8 º do ECA (lei 8069/90): "A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos".
A Lei Maria da Penha ( 11.340/2006), por sua vez, entende como violência sexual, dentre outras condutas, a ocorrência de ato que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Nesse contexto, o direito fundamental à autodeterminação possui como decorrência o exercício da liberdade, tanto em aspecto positivo, quanto negativo6, isto é, quando existem alternativas e opções quanto a realização ou não de determinada ato. Desse modo, qualquer limitação a esse exercício de opção não deve ser exercida pelo Estado tampouco por instituições particulares e agentes de saúde, à revelia do interesse das titulares desse direito.
Os direitos reprodutivos hodiernamente decorrem do sistema especial de proteção de Direitos Humanos, em virtude do caráter indivisível. Nesse sentido, as declarações e plataformas de Cairo (1994) e de Beijing (1995) representaram um grande avanço na conceituação de direitos sexuais e reprodutivos. É bem de ver que, muito embora não possuam a força normativa de tratados internacionais, tais documentos constituem-se em importante fonte principiológica do ordenamento jurídico internacional dos direitos humanos da mulher. Observe-se que os princípios7 4 e 88 da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994 tras fundamentos importantíssimos nesse sentido.
A Declaração de Beijing (1995) informa que "na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos." (Declaração de Pequim/1995).
Nesse contexto, os direitos sexuais e reprodutivos implicam tanto o exercício da liberdade e autodeterminação quanto às decisões relativas corpo da mulher, número de filhos, exercício do papel social da maternidade, como o direito a obter, por parte do Estado, o implemento de políticas públicas relativas à saúde, concernentes, ainda, ao acesso a informações e educação reprodutiva e sexual. A não garantia desses direitos tem implicado a morte de milhões de mulheres por conta da submissão a procedimentos inadequados, além de doenças e impedimentos evitáveis por medidas de educação e saúde preventiva.
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1 SOUSA, Valeria. Nota Técnica Violência Obstétrica: considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres no parto, puerpério e abortamento. Editora Artemis, 2015.
2 Goes, Emanuelle. Violência obstétrica e o viés racial. Disponível em: https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/pensamentos/147153503857b5d7be5878b/
3 Disponível aqui.
4 Diniz, Carmen Simone Grilo.Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva;10(3):627-637, jul.-set. 2005.
5 Wertz D 1993. Twilight sleep, pp. 403-405. In The Encyclopedia of Chilbearing. Oryx Press. Nova York
6 FERRAJOLI, Luiji. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid. Trotta,2010.
7 Princípio 4: "Promover a eqüidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional."
8 Princípio 8: "Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo têm o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer."