Deve a defensoria pública atuar em arbitragens?
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Atualizado em 16 de dezembro de 2024 14:35
Conforme reconhecido pelo CNJ, por meio da resolução 125, de 29/11/10, o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da CF/88, além da sua vertente formal, perante os tribunais, compreende o acesso à ordem jurídica justa e a soluções efetivas, abrangendo não apenas os serviços judiciais, bem como outros mecanismos de solução de conflitos, configurando a existência de uma justiça denominada "multiportas". Uma dessas portas de acesso à Justiça é a arbitragem, produzindo a sentença arbitral coisa julgada material, com a formação de um título executivo judicial, na forma do art. 515, inciso VII, do CPC/15.
Nos últimos anos, tem-se verificado um grande crescimento na utilização da arbitragem para a resolução de disputas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis nas mais diversas áreas jurídicas, surgindo uma consistente doutrina que defende a existência de uma "arbitragem temática", por exemplo, quanto a conflitos na área consumerista, de direitos coletivos, de família, sucessões, trabalhistas, envolvendo a Administração Pública e até mesmo aqueles referentes ao meio ambiente (Ferreira; Rocha; Ferreira, 2019), contando inclusive com o respaldo da jurisprudência do STJ e dos Tribunais estaduais.
Nessa perspectiva, indaga-se se caberia à defensoria pública atuar, no exercício de suas atribuições, na representação dos interesses de pessoas hipossuficientes do ponto de vista financeiro que desejarem se valer dessa via para resolverem suas disputas patrimoniais.
Destaca-se que, nessas situações, é possível que a adoção da via arbitral implique vantagens para as partes, mesmo para aquela que está arcando com os custos iniciais do procedimento. Importante ressaltar que, em analogia à Justiça gratuita na jurisdição estatal, como garantia fundamental ao acesso à devida prestação jurisdicional (art. 5º, LXXIV, da CF/88), na arbitragem o Estado, por meio da defensoria pública, poderá também custear, em sua parte, o processo arbitral, quando o referido meio se mostrar mais adequado e célere na resolução do conflito envolvendo os hipossuficientes.
Cumpre, então, analisar se a defensoria pública deve atuar em favor do hipossuficiente na arbitragem individual ou coletiva, considerando que apesar de a representação das partes por advogado no procedimento arbitral não ser obrigatória, nos termos do art. 21, § 3º, da lei de arbitragem, é de todo aconselhável esse auxílio profissional, que implicará no pagamento de honorários (Cabral, 2019).
De forma semelhante ao que dispõe o art. 134 da CF/88, o art. 1º, da LC 80, de 12/1/94, que organiza a defensoria pública da União e estabelece normas gerais para a organização das estaduais, determina que cabe às defensorias a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88.
O art. 4º, II, do mesmo diploma legal, com a redação conferida pela LC 132, de 7/10/09, dispõe que constitui função institucional da defensoria pública, dentre outras, "promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos".
Em reforço, o art. 108, da LC 80/94, com a redação conferida pela LC 132, de 7/10/09, prevê que incumbe aos membros da defensoria pública, sem prejuízo de outras atribuições, a orientação jurídica e a defesa dos assistidos no âmbito judicial, extrajudicial e administrativo.
Como se observa, a CF/88 e a LC 80/94, não deixam dúvidas ao assegurar o acesso efetivo à Justiça, por qualquer das suas portas de acesso, inclusive a arbitragem, como um verdadeiro direito social básico, visando a efetividade ideal da justiça, que somente pode ser obtida com a completa paridade de armas, devendo ser assegurado aos mais pobres a assistência integral da defensoria pública, quando participarem de um procedimento arbitral.
Importante registrar relevante atuação da defensoria pública de São Paulo, no conhecido acidente aéreo com uma aeronave da companhia TAM, em 2007, em um programa de mediação extrajudicial, denominado "Câmara de Indenização 3054", que também contou com a participação do MP/SP e da Fundação Procon do Estado de São Paulo, bem como Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, abrindo aos familiares das vítimas a possibilidade de uma opção diversa da Justiça estatal, que costuma demorar muitos anos para a decisão desse tipo de conflito (Michel, 2011).
Em 14 meses, o programa realizou cerca de 15 mil atendimentos a beneficiários e aos seus advogados, com a formalização de acordos em 92% dos casos atendidos, envolvendo 207 familiares e 45 vítimas do acidente (Michel, 2011).
No acidente aéreo ocorrido em 31/5/09, envolvendo o voo 447 da companhia Air France, que decolou do Rio de Janeiro com destino a Paris e caiu em pleno oceano Atlântico, o MP/RJ lançou o PI 447 - Programa de Indenização 447, com a participação do Procon do Rio de Janeiro e da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (Michel, 2011).
Se é verdade que as diferenças existentes entre os litigantes nunca serão completamente eliminadas (Cappelletti; Garth, 1988), compete à defensoria pública afastar, dentro do possível, qualquer obstáculo que possa comprometer o efetivo acesso à Justiça, por qualquer das suas portas de acesso, pelos mais pobres.
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CABRAL, Thiago Dias Delfino. Impecuniosidade e arbitragem: uma análise da ausência de recursos financeiros para instauração do procedimento arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2019.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei de Arbitragem: comentada artigo por artigo. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Juspodivm, 2019.
MICHEL, Andressa. Programas de mediação e acidentes de consumo: um estudo prático de métodos alternativos de resolução de conflitos. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 80, out./dez., 2011, p. 237-273.