A possibilidade dos litígios entre acionistas e S/As abertas serem dirimidos na via judicial e não exclusivamente na via arbitral
terça-feira, 29 de novembro de 2022
Atualizado às 08:38
Os filtros constitucionais e legais permissivos base do entendimento do stj, dos tribunais e da doutrina
Todos os estatutos das sociedades anônimas abertas com ações listadas na bolsa de valores brasileira possuem cláusula a disciplinar que: "A Companhia, seus acionistas (...) obrigam-se a resolver, por meio de arbitragem, perante a Câmara de Arbitragem do Mercado da B3, na forma de seu regulamento, qualquer controvérsia que possa surgir entre eles, relacionada com ou oriunda, da sua condição de emissor, acionistas".
E, assim, em tese, qualquer pedido de reparação de danos causados pelas Cias. aos acionistas deve ser formulado na via arbitral, através da Câmara de Arbitragem do Mercado da B3, Câmara que responsável pelo sistema arbitral que tem como objeto todo o mercado de ações no país.
De início, vê-se que tal fato viola os princípios do livre mercado, da livre iniciativa, da livre concorrência, da liberdade econômica, e faz com que exista um indesejável monopólio, que vai de encontro, ainda, com os princípios do acesso à justiça e da inafastabilidade do Poder Judiciário. Os acionistas minoritários, que são aqueles apenas entram no home broker através de alguma corretora de valores e compram suas ações, sem concordar expressamente com os termos do estatuto, muito menos especificamente com a arbitragem imposta via estatuto, são os mais prejudicados. Nesse contexto, os referidos acionistas não podem acessar o Poder Judiciário, e também não podem acessar a Câmara de Arbitragem do Mercado da B3, em razão da tabela de custas ser impeditiva para causas que não sejam de valores elevados.
Os artigos constantes dos estatutos das S/A`s abertas que estabelecem que as controvérsias entre acionista e Companhia devem ser resolvidos na via arbitral não passam pelos filtros constitucionais citados, violam, além disso, os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da igualdade, e, ainda, ferem o art. 3 da lei de arbitragem 9307/1996 ("As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral"), indicativo de que a arbitragem não pode ser compulsória e imposta sem haver concordância expressa do afetado por ela.
Destaque-se que, a Lei 6.404/1976, "lei da S/A", dispõe em seu art. 109 § 3º, que o estatuto pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, poderão ser solucionadas mediante arbitragem. E, há complementação pelo art. 136-A, que disciplina que a aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações.
Nesse sentido, resta evidente que o estatuto poderá ter essa previsão, mas que quando da sua inclusão, o acionista, se não concordar, poderá até exercer o direito de retirada, fato que demonstra que a concordância ou não do acionista é elemento decisivo. Do mesmo modo, ao acionista que ingressa posteriormente na Cia. com a simples compra de uma ou mais ações via home broker, deve ser alertado sobre tal fato, para, então, ele poder apresentar o seu aceite ou não. Essa não oportunização de uma escolha informada e esclarecida, e, ao mesmo tempo, essa compulsoriedade dissociada da concordância, jamais poderá ser linha a ser seguida.
A matéria já foi objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça em 11/02/2020, no caso emblemático de litígio entre a União Federal e a Petrobras.
A União Federal alegou que não poderia se submeter à arbitragem constante do estatuto da Petrobras, pois ela-União não apresentou concordância com essa disposição de submissão dos conflitos à arbitragem. E, a União se sagrou vencedora, tendo o STJ concluído que a ação deveria tramitar no Judiciário e não na via arbitral.
Eis a célebre decisão do Superior Tribunal de Justiça:
"CC n. 151.130/SP, (...) relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 27/11/2019, DJe de 11/2/2020 (...) O primeiro ponto que merece detida análise, a meu juízo, envolve a anuência/adesão ou não da União à cláusula compromissória prevista no artigo 58 do Estatuto da Petrobras (...) não autoriza a utilização e extensão do procedimento arbitral à União (...) em razão do próprio conteúdo da norma estatutária, a partir da qual não se pode inferir a referida autorização. (...) embora as questões societárias sejam suscetíveis de solução via arbitral, e isto a partir da exegese relacionada à afetação de questões decididas no âmbito interno da companhia, não se pode concluir pelo alcance irrestrito a direitos de terceiros que não estejam - por fundamentos estritamente relacionados ao âmbito societário - vinculados à cláusula compromissória estatutária (...) ausência de anuência expressa de submissão do ente ao pacto (...) no caso, há alegação de falta de condição de existência da cláusula compromissória a que se as suscitantes fundamentam sua pretensão e, nesse sentido, novamente rogando as mais respeitosas vênias, a matéria deve ser submetida à deliberação da Jurisdição estatal (...) conheço do conflito para declarar a competência do Juízo Federal suscitado".
Nessa linha, os mestres Ana Caroline Okazaki e Henrique Afonso Pipolo:
"Há, com efeito, um requisito necessariamente de forma para a validade e eficácia da cláusula compromissória estatutária que dependente de sua específica e formal adoção por parte de todos os compromissados. Sem essa expressa aprovação, a cláusula compromissória é nula por ferir o direito essencial do acionista de socorrer-se ao Poder Judiciário. E essa aprovação vincula os fundadores na constituição e os acionistas que, nas alterações estatuárias posteriores, tiverem expressamente renunciado ao direito essencial prescrito no § 2º do art. 109 da Lei n. 6.404/1976, para a inclusão desse pacto parassocial no estatuto". (Carvalhosa; Eizirik, 2002, p. 183- 184)
Do mesmo modo, o Professor Dinamarco:
"Favorecer obcecadamente a arbitragem, sem que haja sido manifestada uma vontade assim acima de dúvidas ao menos razoáveis, equivaleria erigir o extraordinário em ordinário, a dano da garantia constitucional da inafastabilidade da apreciação judiciária dos litígios (Const., art. 5.º, inc. XXXV)". (Dinamarco apud Viviane Rosolia Teodoro Revista de Mediação e arbitragem, v. 51, out.-dez. 2016, e-book).
A 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, também já teve a oportunidade de se debruçar sobre a temática:
"Entretanto, tal cláusula (arbitragem) não se aplica aos acionistas que não anuíram expressamente à sua introdução. A cláusula de arbitragem, como forma de limitação voluntária ao constitucional direito de ação, somente é oponível a quem inequivocamente abriu mão de seu direito, ou seja, é possível que a sociedade estabeleça a cláusula de arbitragem para suas relações, mas somente poderá ser invocada caso a parte contrária também tenha concordado previamente". (AI 1.0035.09.169452-7/001. 10ª Câmara Cível. Relator: Des. Gutemberg da Mota e Silva. Julgado em: 13 abr. 2010).
Assim, considerando presente a inconstitucionalidade e a ilegalidade nos artigos estatutários que preveem a compulsoriedade da arbitragem sem concordância prévia do acionista, gera-se a nulidade das mesmas e ainda a invalidade ou ineficácia delas perante os acionistas, principalmente, os minoritários. Consequentemente, é medida que se impõe que, todos os acionistas que em algum momento da relação firmada com a Cia. se sentiram lesados, possam ingressar com ações individuais indenizatórias perante o Poder Judiciário.