A posição do STJ sobre a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil na arbitragem
segunda-feira, 20 de setembro de 2021
Atualizado às 08:34
Diante dos vinte cinco anos da Lei de Arbitragem, temos o prazer de inaugurar esta coluna no Migalhas, que denominamos "Observatório da Arbitragem", com o objetivo de publicar artigos sobre o tema, visando à divulgação do instituto e comentar decisões dos Tribunais.
Tenho a honra e o prazer de coordenar esta coluna, junto do Professor Doutor Marcelo Magalhães Bonizzi (Largo do São Francisco/USP), certo que também teremos convidados, lembrando que pesquisamos sobre o tema nas Instituições em que lecionamos1.
A jurisdição arbitral é prestigiada pela interpretação do Superior Tribunal de Justiça, tanto que Ministros da Corte da Cidadania destacam o crescente papel da arbitragem como mecanismo de solução de conflitos2.
São diversos os julgados da Corte que contribuíram muito para a consolidação da arbitragem no Brasil, de modo que o objetivo destas breves linhas é tratar de três casos que se destacaram sobre a autonomia da arbitragem e sobre a inaplicabilidade subsidiária do Código de Processo Civil no âmbito da arbitragem, especificamente os recursos especiais: nº 1.903.359-RJ, nº 1.519.041/RJ; e nº 1.903.359-RJ.
Entretanto, antes é importante contextualizar a polêmica.
Hans Kelsen3 e Miguel Reale4 discorrem acerca da autonomia científica de um determinado ramo do Direito, explicando que cada subsistema detém institutos, fins, métodos e objetos próprios, inconfundíveis com outras áreas jurídicas. Nesse sentido, cada ramo do Direito possui seu objeto, já que, "para que haja ciência, é essencial a unidade epistemológica, isto é, a unidade de objeto"5.
Feitos estes esclarecimentos, podemos avançar e apontar que o processo arbitral "é autorreferente, e, por isso autônomo"6, afirmando a doutrina:
"Arbitragem é arbitragem, e isso justifica seja ela 'objeto de um tratamento autônomo', verdadeiro sistema, com características próprias, a distinguir este método de solução de litígios"7.
Eduardo de Albuquerque Parente considera que o processo arbitral é um subsistema que opera em obediência aos próprios parâmetros (operacionalmente fechado, portanto) em razão de suas claras distinções em relação ao processo judicial: se, por um lado, o rito processual judicial está previamente determinado em lei, o processo arbitral se resolve sem as nuances típicas do arcabouço judicial, dado que seu procedimento é por natureza flexível, porque decorrente da autonomia da vontade, e seu rito pode decorrer da pura criação das partes, da adoção de regras pré-existentes ou ainda da montagem de procedimento inteiramente pelo árbitro8. Desse modo, o processo arbitral opera em seus próprios termos, de modo autorreferencial e independente do processo judicial.
Portanto, podemos concluir que há autonomia científica da arbitragem9.
Verificadas essas premissas, resta saber se há a possibilidade da aplicação do Código de Processo Civil subsidiariamente na arbitragem, apesar da omissão das partes ou da Lei de Arbitragem, ou se há autonomia científica deste objeto de estudo, existindo duas correntes sobre o tema:
i) Há doutrinadores que apontam a aplicação subsidiária10 das regras da legislação processual civil, mesmo sem previsão na cláusula compromissória e no compromisso arbitral.
ii) Em sentido contrário à aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil no procedimento da arbitragem, defendem os doutrinadores11 e, em julgados do Superior Tribunal de Justiça12, que não há dispositivo legal, na Lei de Arbitragem ou no Código de Processo Civil, a autorizá-la, salvo o que trata de impedimento e suspeição dos árbitros serem os mesmos do Código de Processo Civil (artigo 14 da Lei de Arbitragem), além da expressa autorização da Lei de Arbitragem no sentido de que as partes criem as regras procedimentais (artigos 2º, §1º, 11, IV, 19, parágrafo único, e 21, caput e §§1º e 2º, todos da Lei 9307/96), cabendo ao árbitro estabelecer, em caso de omissão das partes, com fundamento no seu poder normativo supletivo (§ 1º do artigo 21 da Lei de Arbitragem) as normas procedimentais.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça adotou esta segunda tese, no REsp nº 1.903.359-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 11/05/2021, definiu:
"É de suma relevância notar, a esse propósito, que o árbitro não se encontra, de modo algum, adstrito ao procedimento estabelecido no Código de Processo Civil inexistindo regramento legal algum que determine, genericamente, sua aplicação, nem sequer subsidiária, à arbitragem. Aliás, a Lei de Arbitragem, nos específicos casos em que preceitua a aplicação do diploma processual, assim o faz de maneira expressa".
Decidiu o Tribunal da Cidadania, em outro caso, acerca da aplicação do CPC na arbitragem:
"Não autoriza o intérprete a compreender que a arbitragem - regida por princípios próprios (notadamente o da autonomia da vontade e da celeridade da prestação jurisdicional) - deva observar necessária e detidamente os regramentos disciplinadores do processo judicial, sob pena de desnaturar esse importante modo de heterocomposição. Há que se preservar, portanto, as particularidades de cada qual" (Resp nº 1.519.041/RJ).
Anteriormente a este julgado a Ministra Nancy Andrighi afirmou:
"Transplantar formalismo e tecnicismo característicos da justiça comum ao procedimento da arbitragem fere o fim ao qual a arbitragem se propõe - qual seja, o de oferecer método célere e flexível de resolução de conflito. Nesse sentido, acerta a doutrina ao afirmar que "Jogar o CPC no colo dos árbitros e exigir enormemente a utilidade da arbitragem, tornando-a excessivamente rígida, demorada e quase tão onerosa para os interessados quanto os recursos no Judiciário" (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Aspectos da Arbitragem Institucional - 12 anos da lei 9.307/1996. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 26)"13.
A tese ora defendida é reafirmada pelo fato de que quando o Legislador faz opção pela aplicação subsidiária, há previsão expressa na Lei, tal como ocorreu no artigo 24 da Lei do Mandado de Segurança (lei 12016/2009)14, no artigo 14 da Lei do Mandado de Injunção (lei 13300/2016)15, no artigo 22 da Lei da Ação Popular (lei 4717/1965)16 e artigo 19 da lei de Ação Civil Pública (lei 7347/1985)17. Na Lei de Arbitragem, inexiste qualquer previsão desse teor, salvo no artigo 14, quanto ao impedimento e suspeição dos árbitros, que será objeto de tratamento específico.
Contudo, nada impede que as partes convencionem sobre a aplicação do Código de Processo Civil18 na arbitragem19, o que não é recomendável diante das características arbitragem20.
Diante dos fundamentos acima, no sentido da autonomia da arbitragem e em virtude da inexistência de norma expressa consagrando a aplicação subsidiária, adotamos a segunda corrente, defendendo a inaplicabilidade do Código de Processo Civil à arbitragem21, salvo se a convenção de arbitragem previr expressamente a aplicação subsidiária.
Portanto, mediante um procedimento analítico de decomposição ou diferenciação da ciência do Direito22, concluímos pela independência científica do Direito Arbitral do Direito Processual Civil, em virtude de sua especificidade, a qual não se confunde com as outras áreas do Direito, possuindo normas próprias, regido por regime jurídico disciplinado em Leis diversas.
Este tópico sobre a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil é importantíssimo, pois repercutirá na solução de diversas questões a serem abordadas no presente trabalho, que constituem questões importantes no decurso das arbitragens, dentre elas, exemplificativamente, a aplicação:
i) Do instituto da estabilização da tutela (artigo 304 do CPC) ao procedimento arbitral, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo23.
ii) Da nomeação de curador especial à parte, que não apresentou defesa.
iii) Da presunção de veracidade dos fatos decorrente da revelia e efeitos da confissão no depoimento pessoal;
iv) Dos critérios para a fixação de sucumbência e litigância de má-fé;
v) Da interrupção da contagem do prazo para ação anulatória, caso os embargos arbitrais não sejam conhecidos, ou seja, não se aplica o artigo 1.026 do Código de Processo Civil, se as partes não convencionaram ou não consta no Regulamento da Câmara, conforme decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo24;
vi) Da aplicação do artigo 927 do Código de Processo Civil na arbitragem e consequente nulidade da sentença arbitral que não observa decisões com efeito vinculante;
vii) Da suspensão da arbitragem em virtude de recursos extraordinários e especiais repetitivos25, incidentes de resolução de demandas repetitivas26;
viii) Do cabimento da ação anulatória prevista no artigo 966, §4º, do Código de Processo Civil;
ix) Do cabimento da reclamação no processo arbitral;
x) Do cabimento da ação rescisória contra sentença arbitral.
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1 No Programa de doutorado e mestrado da UNAERP pesquisamos arbitragem com diversos orientandos.
2 Conforme notícia intitulada "A jurisdição arbitral prestigiada pela interpretação do STJ", extraída do site do Superior Tribunal de Justiça, disponível aqui, acesso em 08/06/2021.
3 Teoria Pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 50-54.
4 Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 75-76.
5 MACHADO NETO, Antonio Luiz, Teoria da Ciência Jurídica, São Paulo: Saraiva, 1975. p. 03.
6 MARIANI, Rômulo Greff, Precentes na arbitragem, Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 84.
7 Ibidem, p. 84.
8 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012, p. 47/60.
9 Nesse sentido FICHTNER, José Antonio, MANNHEIMER, Sergio, MONTEIRO, Nelson André Luís, Teoria geral da arbitragem. - Rio de Janeiro: Forense, 2019.
10 "No silencio de todos prevalece nas arbitragens nacionais realizadas no Brasil (LA, art. 34, par.) o disposto na Lei de Arbitragem nacional e, em grau sucessivo de subsidiariedade, o Código de Processo Civil - cujas normas só terão aplicabilidade na medida em que forem compatíveis com o sistema arbitral", DINAMARCO, Cândido Rangel. Arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 46. "Quando as regras de procedimento da arbitragem não forem suficientes e o árbitro ou árbitros, tenham que recorrer, subsidiariamente, à legislação processual, essa deverá ser a do local sede da arbitragem", BASSO, Maristela. As leis envolvidas nas arbitragens comerciais internacionais: campos de regência. Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, v. 3, n.9, p. 307-314, 2000 ELIO FAZZALARI, L'Arbitrato, cit., p. 56-57 e 68, defende, no direito italiano, que existindo omissão das regras escolhidas pelas partes ou fixadas pelo árbitro, são aplicáveis as regras processuais que regem os procedimentos judiciais. JUNIOR, Humberto Theodoro. Arbitragem e Terceiros: Litisconsórcio Fora do Pacto Arbitral: Outras Intervenções de Terceiros. In: MARTINS, Pedro A. Batista; ROSSANI GARCEZ, José Maria (Org.). Reflexões sobre arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. São Paulo: LTr, 2002. p. 246-248.
11 CARMONA, Carlos Alberto. O processo arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo, ano 1, jan./abr. 2004, n. 9, p. 28; PARENTE, Eduardo de Albuquerque, Processo arbitral e sistema, São Paulo: Atlas, 2012, p. 105; JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, A ordem das provas In: BERTASI, Maria Odete Duque; CORRÊA NETTO, Oscavo Cordeiro (Coord.), Arbitragem e desenvolvimento. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 52 ss; PINTO, José Emilio Nunes. Anotações práticas sobre a produção de prova na arbitragem. In: FINKELSTEIN, Cláudio; VITA, Jonathan B.; CASADO FILHO, Napoleão (Coord.). Arbitragem internacional: Unidroit, Cisg e direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 83; FICHTNER, José Antonio, MANNHEIMER, Sergio, MONTEIRO, Nelson André Luís.Teoria geral da arbitragem, Rio de Janeiro: Forense, 2019. Na doutrina estrangeira contrários à aplicação da regra processual estatal na arbitragem vide: BRUNO OPPETIT, Teoría del arbitraje, Bogotá: Legis, 2006, p. 42 ss, e p. 60 ss. No sentido da inconveniência de se aplicar o Código de Processo Civil na arbitragem, em prejuízo da agilidade e celeridade, vide JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, A ordem das provas, cit., p. 52 ss,; MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES, Efeitos da judicialização da arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo, ano 4, nº 4, abr./jun. 2007, p. 32-37; HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA, Doze anos da lei de arbitragem: alguns aspectos ainda relevantes. In: (Coord.). Aspectos, cit., n. 5, p. 26. SESTER, Peter Christian, Comentários à Lei de Arbitragem e à Legislação Extravagante, São Paulo, Quartier Latin, 2020, p. 90.
12 REsp nº 1.903.359-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 11/05/2021.
13 voto da Ministra Nancy Andrighi, no Resp nº 1.636.102 - SP.
14 Art. 24. Aplicam-se ao mandado de segurança os arts. 46 a 49 da lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.
15 Art. 14. Aplicam-se subsidiariamente ao mandado de injunção as normas do mandado de segurança, disciplinado pela Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, e do Código de Processo Civil, instituído pela lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e pela lei 13.105, de 16 de março de 2015, observado o disposto em seus arts. 1.045 e 1.046.
16 Art. 22. Aplicam-se à ação popular as regras do Código de Processo Civil, naquilo em que não contrariem os dispositivos desta lei, nem a natureza específica da ação.
17 Art. 19. Aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições.
18 O regulamento da Câmara de Arbitragem da FGV prevê: "Art. 49 - Caberá ao tribunal arbitral decidir as questões a respeito das quais seja omisso o presente Regulamento, podendo valer-se, subsidiariamente, das normas do Código de Processo Civil, atendidos os objetivos de celeridade e de informalidade". Todavia, o citado regulamento ressalva que a revelia não acarreta os efeitos previstos no Código de Processo Civil (art. 26, § 3º), vide aqui, acesso em 10.11.2020.
19 ELIO FAZZALARI, L'Arbitrato, Turim: UTET, 1997, p. 55.
20 TODD CARVER e ALBERT VONDRA apresentam dados empíricos que demonstram o fracasso do processo arbitral quando (i) as partes e seus advogados não têm a exata dimensão de como o processo arbitral é distinto do judicial, (ii) as partes pensam ser a total vitória contra a contraparte como a única alternativa possível e (iii) quando contratam advogados excessivamente litigiosos (Alternative dispute resolution: why it doesn't work and why it does Harvard Business Review, Boston, maio-jun. 1994 apud PARENTE, Eduardo, Ordem Jurídica arbitral, in Arbitragem: 5 anos da lei 13.129, de 26 de maio de 2015.Olavo A. V. Alves Ferreira e Paulo Henrique dos Santos Lucon (coord.). - Ribeirão Preto, SP: Migalhas, 2020, p. 368). "Uma interpretação da Lei de Arbitragem presa ao Código de Processo Civil seria contraproducente para atingir os seus objetivos, pois o modelo do Código é rígido (ou um "one-size-fits-all-approach"), o que não se harmoniza com a flexibilidade do procedimento arbitral, da qual dependem os princípios da eficácia e celeridade", SESTER, Peter Christian, Comentários à Lei de Arbitragem e à Legislação Extravagante, São Paulo, Quartier Latin, 2020, p. 90.
21 JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, com razão, aponta que "o processo arbitral não é judicial e tem pressupostos distintos. Enquanto que o último é público e decorre do direito constitucional de acesso ao Judiciário, o primeiro é privado e tem seu fundamento na vontade das partes, que podem estabelecer o rito que desejarem para a composição de suas controvérsias, respeitadas as diretrizes maiores impostas pela lei, como o contraditório e a igualdade de tratamento. Se o procedimento é fixado na convenção de arbitragem - nela se incluindo o regulamento da instituição de arbitragem, quando nela corre o processo - não há que se buscar na legislação processual pública os mecanismos para a condução do processo, salvo se a isso as partes autorizam" (Soluções rápidas e objetivas, In Revista Brasil Canadá. São Paulo: CCBC, Ano 2, n. 7, 2007, p. 45).
22 A averiguação analítica por decomposição ou diferenciação da ciência do Direito consiste "no fato de se partir de um todo, separando-o e especificando-o nas suas partes, isto é, procede por distinções, classificações e sistematizações", DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 20. ed. rev. e atual, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200.
23 Vide nosso Lei de Arbitragem Comentada, 2021, 2ª Edição, São Paulo: Juspodivm.
24 Vide nosso Lei de Arbitragem Comentada, 2021, 2ª Edição, São Paulo: Juspodivm.
25 CPC: art. 1.029, §4º; art. 1.036, § 1º ; art. 1.037, II.
26 CPC: art. 982, I.