Pacto regulatório de dissolução societária
quarta-feira, 2 de outubro de 2024
Atualizado em 9 de dezembro de 2024 12:30
A pergunta veio por meio de uma rede social: que outro produto vocês acham que advogados e escritórios não estão oferecendo a seus clientes? A questão é interessante e pode conduzir há certos tipos de contribuições advocatícias para as quais andam dessabidos o mercado empresarial e os profissionais de advocacia.
Vamos começar dando contexto à pergunta. Ela partiu de um artigo intitulado "Por que advogados não oferecem o contrato de sociedade em comum?". Naquele ensaio, como já havíamos feito em "Estruturação Jurídica de Empresas" (Editora Atlas, 2024), chamamos a atenção para a importância do período formativo de uma sociedade empresária, ou seja, para os momentos anteriores ao registro. Os investidores acordaram a formação de uma sociedade, já fazem desembolsos e tomam providências, tocam a coisa em direção ao registro. Lamentávamos o fato de que, mesmo havendo muito dinheiro envolvido, raramente há um instrumento para definir direitos e obrigações, inclusive para a hipótese de malogro da sociedade. Isso é a renúncia a oferecer um serviço a mais pelo escritório. O leitor interpretou isso como um produto a ser oferecido a clientes. Perguntava se há outros.
Há! Mas vamos "colocar os pingos nos is" antes de avançarmos. Não nos sentimos muito confortáveis com essa compreensão mercantilista da advocacia, ainda mais quando pretende colocar em caixinhas certos atos advocatícios. Preferimos a compreensão do agir advocatício como prestação de um serviço jurídico essencial, expresso em atos como representação, assessoria, consultoria, direção e afins, o que não se assemelha muito à prateleira com suas caixinhas expostas, naquela linha de escolha e leve ao caixa. Tivemos o cuidado de tratar disso noutro ensaio publicado aqui pelo Migalhas, "Sintomatologia jurídico-patrimonial da família", em sintonia com o livro "Holding Familiar de Suas Vantagens" (16.ed. Editora Atlas, 2024). Essa moda de produtos de advocacia faz clientes entrarem no escritório querendo "comprar" uma holding familiar, quando tal mecanismo jurídico não lhe é adequado. O agir advocatício é um mister, funda-se em tecnologia jurídica e, assim, não se amolda aos pacotes de produtos.
Dito isso, vamos falar sobre o pacto regulatório de dissolução societária. Nunca ouviu falar? Não se avexe, não. É uma criação nossa, algo oferecido a clientes e bem recebido por muito deles. O que é? Um acordo de sócios, firmado por todos os sócios, disciplinando eventual dissolução societária, total ou parcial, judicial e/ou extrajudicialmente. Uma plataforma normativa secundária - ou acessória, como demonstramos em "Estruturação Jurídica de Empresas" (Editora Atlas, 2024) - que pode poupar todos os sócios de grandes dores de cabeça, facilitando a vida de todos e trabalhando inclusive pela preservação da empresa, na hipótese de dissolução parcial. Facilmente se percebem duas coisas: (1) é algo importantíssimo que toda sociedade deveria ter; (2) é algo assustadoramente incomum, não havendo notícia de muitas sociedades que o tenham. Outro serviço que as bancas de advocacia deixam de oferecer a seus clientes e ao mercado em geral.
Mas vamos devagar com o andor e, mais do que isso, vamos colocar ordem na casa para compreender adequadamente qual é a tecnologia jurídica que dá sustentação ao pacto regulatório de dissolução societária. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a dissolução (total ou parcial) é uma situação tormentosa e, não-raro, marcada por conflito, mágoa, desconfiança, irracionalidade. Ajustarem-se os sócios sobre o tema, quando estão em pleno gozo da affectio societatis, é uma vantagem: estabelecer estruturas jurídicas úteis em tempo propício. Se a tempestade cai sobre a corporação, a matéria está regulada (aliás, autorregulada, o que é melhor) e pode ser resolvida com maior facilidade e eficácia. Cuidar do tema no plano do ato constitutivo (contrato ou estatuto social) é um exagero: iria alongá-lo por demais. Mas as plataformas normativas acessórias cumprem essa função: o pacto social disciplina o exercício das faculdades societárias e, assim, cria um regramento acessório.
Para a hipótese, propomos o uso de um acordo de sócios firmado por todos eles, disciplinando a matéria para a eventualidade de se fazer necessário, o que não é tão raro assim. Levadas ao registro mercantil, serão públicas, com ciência ficta por terceiros. O arquivamento não é um requisito formal, contudo. O acordo será válido e eficaz entre os signatários mesmo não havendo divulgação (disclosure). É uma decisão estratégica; uma sutileza da tecnologia jurídica que, como temos destacado, oferece ao advogado um instrumental rico de alternativas para melhor atender às expectativas legítimas de seus clientes. E um fator que impulsiona a demanda pela consultoria e assessoria advocatícias é justamente a percepção desses benefícios pelo cliente, o que já ocorre, por exemplo, com grandes corporações que, sabe-se, não prescindem de departamentos jurídicos atuantes, presentes, opinativos.
Na redação das plataformas normativas (o acordo, suas cláusulas ou artigos), Constituição e leis definem limites positivo (o que consideram obrigatório) e negativo (o que consideram proibido). Essa base pode avançar pela plataforma normativa primária (contrato ou estatuto social) e vai aí uma dica: é possível colocar alguns lastros ali: cláusulas ou artigos que definam lastros para o pacto parassocial. Mais uma vez, uma decisão estratégica. No "Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios" (8ed. Editora Atlas, 2024) colocamos alguns modelos de previsões nesse sentido, entre as quais podemos citar: "Na liquidação de quotas, o titular das quotas liquidandas, seja sócio, seja terceiro, será notificado extrajudicialmente pela sociedade para que, querendo, indique um auxiliar técnico para acompanhar o levantamento de balanço especial para liquidação de sua participação societária." Isso poderia ser disposto no pacto regulatório de dissolução societária.
Partindo do geral para o específico, a primeira coisa a se disciplinar é o pedido, tomando cuidado para distinguir as hipóteses não-litigiosas (como o direito de recesso imotivado nas sociedades contratadas por tempo indeterminado), das litigiosas, sendo que para esse segundo caso, deve-se considerar a hipótese de recorrer à arbitragem, ou seja, de haver previsão de cláusula compromissória no ato constitutivo (plataforma normativa primária); isso para não falar dos benefícios mais e mais reconhecidos de cláusulas sobre conciliação e/ou mediação, como os modelos que encartamos no mesmo "Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios" (8ed. Editora Atlas, 2024). Não são poucas coletividades sociais que conseguiram superar diferenças entre seus membros a partir da intervenção de conciliadores e ou mediadores, o que eventualmente culmina no reconhecimento da necessidade de manutenção jurídica (alteração do ato constitutivo; estabelecimento ou reforma de acordo de sócios), quando não se alterem as rotinas de administração societária ou gerenciamento empresarial.
Neste plano inicial, serão dispostas regras sobre o recebimento do pedido (que, para o recesso imotivado, é tratado como notificação pelo art. 1.029, parte final do caput, do Código Civil), seu processamento e deliberação societária (parágrafo único do mesmo dispositivo). Mesmo quando se trate de litígio, é lícito contratar uma instância societária prévia que, como dissemos, pode incluir submissão obrigatória à conciliação e/ou mediação. Ademais, as partes podem contratar que a manifestação dos demais sócios, em prazo determinado (não abusivo) é requisito para a instauração do processo arbitral ou judicial. Em outras palavras, prever (contratar) uma fase conciliatória obrigatória; afinal, ainda que a pretensão seja litigiosa e se funde em justa causa, os demais sócios podem concordar com a pretensão de recesso; isso mesmo para companhias, destaque-se. São direitos disponíveis.
Aliás, não se pode olvidar, a esta altura, da disposição anotada no art. 190 do Código de Processo Civil: "Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo." A norma dá eficácia à previsão, se posta em termos razoáveis, sem abuso (sob pena de atrair a aplicação do parágrafo único do mesmo art. 190, a prever um controle de validade das convenções pelo Judiciário), permite não apenas prever o procedimento administrativo privado (o prévio pedido no âmbito corporativo), quanto a submissão prévia à conciliação e/ou mediação. Isso sem perder de vista que tais previsões não prejudicam o direito da parte de recorrer ao Judiciário em busca de tutela cautelar, se presentes os elementos para tanto. Ainda que seja resultado de previsão legal, a previsão de acesso às vias judiciárias para medidas de urgência pode constar do pacto regulatório de dissolução societária. É de boa técnica e estilo.
Outra parte fundamental de tais acordos é o regramento do processo de liquidação da participação societária, para as hipóteses de retirada do sócio, e do patrimônio societário, para as hipóteses de dissolução total da pessoa jurídica. São dois caminhos diversos. Na retirada, faz-se a apuração de haveres que nada mais é do que uma estimação do valor global da empresa; muitos chamam isso de valuation; poderiam chamar de évaluation (francês) ou valutazione (italiano) ou, até, de avaliação de empresa. Detalhe: se as partes acordarem, essa avaliação pode fazer-se arbitralmente, com os efeitos daí decorrentes, nomeadamente evitar a morosidade judiciária. E pode, mesmo, incluir cláusula de sigilo, hipótese que cai no gosto de muitas coletividades corporativas. Veja-se que, no plano judiciário, há uma discussão constante sobre os critérios que devem ser empregados para a apuração de haveres, com indas e vindas jurisprudenciais. O pacto regulatório de dissolução societária é uma oportunidade para afastar tais dúvidas, estabelecendo, de comum acordo, critérios objetivos a serem respeitados para a definição do valor devido ao sócio que sai. E é possível ainda prever o parcelamento do valor devido, evitando o baque da descapitalização, havendo que ter atenção para correção monetária e juros.
O processo de liquidação da azienda empresária, nas hipóteses de dissolução total da pessoa jurídica, deve ter regência diversa. Aqui, não se avalia, mas se realiza o ativo para, enfim, solver o passivo, distribuir o acervo restante entre os sócios, na proporção de sua participação, concluindo-se com a baixa no registro mercantil. Assim, o pacto regulatório de dissolução societária deverá definir as regras para todo esse processo, vale dizer, normas que disciplinem a forma e o tempo dos atos e termos do processo liquidatório, as funções a serem desempenhadas etc. Tanto no "Manual de Direito Empresarial" (18.ed. Editora Atlas, 2024), quanto em Direito Empresarial Brasileiro - Direito Societário (14.ed. Editora Atlas, 2022), há informações que permitem compor um regulamento para inventário dos bens, realização do ativo, pagamento de credores, com final distribuição do acervo entre os sócios, na proporção de sua participação no capital social. Mas é preciso destacar uma particularidade: se ao longo do processo de dissolução total, o liquidante perceber que o ativo não é suficiente para fazer frente ao passivo, tem o deve de pedir a declaração da falência para, assim, submeter a azienda aos ditames da lei 11.101/05. Por outro lado, é recomendável questionar os sócios sobre a eventualidade de desejarem normas sobre a preferência na aquisição de bens (imóveis, maquinário, marcas, patentes entre outros ativos), em lugar de sua alienação, ao longo do processo de realização. Alfim, para que o trabalho seja completo, deve haver normas sobre prestação de contas e encerramento do processo.
Eis um produto, se assim quiserem compreendê-lo. Mais do que isso, eis uma plataforma normativa acessória (ou secundária) de grande importância para a adequada estruturação jurídica de empresas. Aliás, carecemos de escritórios de advocacia e contabilidade especializados em dissolução e baixa de sociedades empresárias. O grande número de casos de dissolução irregular, com consequências as mais diversas, a começar por riscos tributários e alcançando informações disponíveis em cadastros negativadores (e/ou avaliadores) de crédito. É uma sofisticação jurídica indispensável que, infelizmente, a cultura empresarial brasileira ainda não alcançou, com efeitos nocivos sobre todos, inclusive o mercado em si. Uma evolução nesse sentido, afastando o passivo de dissoluções irregulares, oferece uma perspectiva positiva pois aponta para um cenário de reinserção de atores empresariais no mercado (sem precisarem fazer uso do nome de esposas, filhos, irmãos, cunhados, laranjas).
A dificuldade é a baixa cultura jurídica de nosso mercado. Como já falamos, há uma demanda colossal por inclusão jurídica. E são os advogados que devem trabalhar para aumentar a experiência jurídica de empresários, administradores, investidores em geral. A evolução econômica decorrente será facilmente observada, acelerando o desenvolvimento nacional com qualidade, isso é, com melhor fruição das próprias faculdades e correto atendimento às respectivas obrigações. Não há empresa de qualidade sem boa assessoria advocatícia. Advogado não é custo, é investimento.