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A suspensão das execuções contra os fiadores do devedor em recuperação judicial: Reflexões sobre a necessária revisão da súmula 581 do STJ

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Atualizado em 4 de junho de 2024 14:02

Desde a edição da lei 11.101/05, doutrina e jurisprudência vêm rejeitando a suspensão das execuções contra o fiador do devedor em recuperação judicial. Esse entendimento restou rapidamente solidificado na súmula 581 do STJ, que determina o prosseguimento das execuções contra todos os garantidores, independentemente da natureza da garantia (cambial, real ou fidejussória).

Entretanto, nem a doutrina nem os tribunais se debruçaram sobre as profundas diferenças entre as várias modalidades de garantia, notadamente sobre as particularidades do regime jurídico da fiança.

Embora a orientação vigente baseie-se no art. 49, § 1º, da LRF, esse dispositivo não determina o prosseguimento das execuções contra os garantidores; apenas estabelece que os credores conservam os seus direitos contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, o que não implica que esses direitos possam ser exercidos como se a recuperação judicial não existisse, ou não produzisse efeito algum.

Daí a importância de questionar se a suspensão da exigibilidade da dívida afiançada, durante o stay period decorrente da recuperação judicial do devedor, poderá ser oposta pelo fiador.

A resposta à pergunta é afirmativa. 

Por ausência de vedação legal, é lícita a contratação de garantia que não possa ser exigida do garantidor enquanto não puder ser exigida do devedor principal, ainda que por conta da recuperação judicial deste. E é justamente isso que as partes contratam quando celebram uma fiança segundo o direito brasileiro.

Desde o direito romano, a partir de Justiniano, a característica mais marcante da fiança é a sua acessoriedade (material) em relação à obrigação afiançada. Dela decorrem três consequências fundamentais:

  1. A sujeição da fiança ao destino do negócio principal;
  2. A impossibilidade de a obrigação do fiador ser mais onerosa do que a do afiançado;
  3. A oponibilidade, pelo fiador, das mesmas defesas que o afiançado possui contra o credor.

O direito brasileiro consagra o direito do fiador opor contra o credor todas as exceções extintivas que assistem ao devedor, ressalvadas apenas e tão somente aquelas decorrentes da incapacidade deste, desde que não se trate de mútuo a menor de idade (CC/02, art. 837 e CC/1916, art. 1.502). 

Parte da doutrina, no entanto, sustenta que o fiador somente poderia opor ao credor exceções reais, ligadas à própria dívida, mas não exceções ligadas à pessoa do devedor, tal como dispunha o art. 2.036 do Código Civil francês de 1.804. Nesse mesmo sentido, alguns chegam a argumentar que a menção à incapacidade do devedor, constante do art. 837 do Código Civil brasileiro, apenas enuncia um princípio, que pode ser extrapolado para compreender qualquer outra exceção pessoal do devedor.

Ocorre que o referido dispositivo francês - que, diferentemente do equivalente nacional, expressamente negava ao fiador a oposição das exceções "puramente pessoais do devedor" - decorria de uma opção política do ordenamento daquele país, sem expressar uma característica inerente ao instituto da fiança (ao contrário, dele se afastava, por impor ao fiador dívida mais onerosa que a do próprio afiançado). 

Prova esta afirmação a circunstância de tal norma ter sido recentemente revogada e substituída por outra que, em sentido oposto, expressamente autoriza o fiador a invocar exceções pessoais do devedor. Fato que a doutrina francesa tem aplaudido, por restituir à fiança a acessoriedade que lhe é própria.

No Brasil, embora a lei não seja tão clara quanto o novo diploma francês (leia-se: Não autoriza expressamente a invocação de todas as exceções pessoais do devedor), não é possível ampliar a ressalva feita apenas à incapacidade do devedor (que segue uma lógica particular, fundada na vedação do venire contra factum proprium) para compreender outras exceções ligadas à pessoa do devedor. Afinal, limitar as defesas do devedor para além do que está previsto na norma importaria conferir interpretação extensiva à fiança (expressamente vedada pelo art. 819 do Código Civil), já que, por via oblíqua, acabaria por ampliar a dívida ao reduzir as hipóteses de exoneração do fiador. 

As exceções oponíveis pelo fiador compreendem não apenas aquelas extintivas da obrigação, mas também as que implicam a inexigibilidade da dívida. Conforme a doutrina, os legisladores raramente distinguem, na redação das leis, o que é extintivo da dívida, o que é extintivo da obrigação e o que apenas lhe encobre a eficácia. Exemplo máximo disso é a prescrição, que, conquanto não extinga a obrigação nem a dívida, importa a sua inexigibilidade, ainda assim podendo ser invocada pelo fiador. O mesmo se passa em relação a outras exceções que ensejam a inexigibilidade da dívida, como a que decorre do processamento da recuperação judicial do devedor, durante o stay period.

A suspensão das execuções contra o devedor em recuperação judicial aproveita até mesmo ao fiador que renunciou ao benefício de ordem, ainda que tenha se obrigado como principal pagador ou devedor solidário. Mesmo nesses casos, quando chamado a honrar a fiança, o fiador não paga a dívida do afiançado; paga a própria dívida, que é diversa daquela assumida pelo afiançado. O fiador não se compromete a adimplir a mesma prestação do afiançado, tampouco se obriga a pagar no lugar do afiançado; compromete-se ao pagamento pelo afiançado, sem se colocar no mesmo polo obrigacional do negócio por este concluído. 

Como os vínculos obrigacionais são distintos, fiador e afiançado não são devedores na mesma prestação, ainda que o conteúdo de ambas (i.e., a conduta a ser praticada) seja idêntico. Por isso, a fiança em caráter solidário não se confunde com a obrigação solidária (a solidariedade aqui é atípica), de modo que o fiador não tem o dever de honrar a sua prestação se o próprio devedor estiver dispensado de fazê-lo, ainda que por causa temporária.

Todas essas razões de ordem dogmática conduzem à conclusão de que a suspensão prevista no art. 6º, § 4º, da LRF se estende aos fiadores do devedor, não obstante o disposto no art. 49, § 1º, da LRF. A mesma solução, ademais, justifica-se por razões de ordem econômica, amplamente debatidas noutros países, sobretudo nos Estados Unidos, mas que a nossa doutrina tem majoritariamente ignorado.

A proibição da extensão do stay period aos garantidores, em particular aos sócios do devedor, somada à virtual inexistência de instrumentos de reestruturação das dívidas destes conduzem a um grave problema de agência, na medida em que desincentivam a empresa em crise a pleitear a recuperação judicial até estar à beira do precipício (o que compromete a efetividade do mecanismo).

Além disso, em hipóteses excepcionais, faz sentido estender o stay period aos garantidores em geral, e não apenas aos fiadores. Sob a perspectiva de uma possível teoria geral da insolvência, o ordenamento deve prestigiar a autonomia das garantias (desde que dotadas dessa característica), mas não se podem desconsiderar os casos em que a identidade entre o devedor e seus garantidores é tanta que as ações contra estes são, na prática, ações contra o próprio devedor. 

Por vezes, a manutenção das execuções contra os sócios-garantidores poderá inviabilizar o investimento que fariam na empresa devedora para permitir-lhe o soerguimento. Em outros casos, a excussão das garantias, por conta de cláusulas penais ou indenizatórias, pode aumentar o passivo do devedor, em prejuízo dele próprio e de todos os demais credores, que poderiam até mesmo consentir em pagar um prêmio ao titular da garantia se ele deixasse de executá-la (o que só seria negociável em um ambiente estruturado, com restrição às ações individuais).  

Em todas essas situações, a falta do stay period impede ou dificulta tremendamente o estabelecimento das condições necessárias para que as garantias possam ser renegociadas com os credores sem a interferência dos conhecidos problemas de ação coletiva descoordenada, que acabam inviabilizando uma solução economicamente mais eficiente e socialmente mais justa.

Parece haver razões bastantes, portanto, para justificar que a doutrina e os tribunais reflitam sobre a orientação atualmente dominante, se não para modificá-la completamente, ao menos  para examinar as particularidades do regime jurídico da fiança e ponderar sobre o tratamento dispensado aos garantidores em geral, sobretudo nos casos versando sobre garantias prestadas pelos próprios sócios ou administradores do devedor. Quiçá isso leve à necessária revisão da súmula 581 do STJ.

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BORTOLINI, Pedro Rebello. Nadando contra a corrente: em defesa da suspensão das execuções contra os fiadores do devedor em recuperação judicial (In: MAIA DA CUNHA, Fernando Antonio; LAZZARESCHI NETO, Alfredo Sérgio. Direito Empresarial Aplicado. São Paulo: Contracorrente, 2024, v. 4, p.737-786).