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A adoção plena e a adoção aberta - Uma nova perspectiva em favor do direito fundamental à identidade, à história de vida, à continuidade das relações socioafetivas e ao pleno desenvolvimento da pessoa

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Atualizado às 09:20

A Corte Constitucional italiana decidiu recentemente, em 5 de julho de 20231, sobre a constitucionalidade do art. 27, da Legge 4 maggio 1983, n. 184, que cuida do "Diritto del minore ad una famiglia". O caso envolvia duas crianças que ficaram privadas dos seus pais depois do homicídio da mãe, causado pelo pai, e a decisão que retirou do pai a responsabilidade paterna. Essas crianças foram entregues incialmente aos tios-avós paternos, residentes no Reino Unido. No entanto, a Corte de Apelação italiana entendeu que a situação não era adequada e declarou o estado de adoção dessas crianças, conservadas, no entanto, as relações com a avó materna, e com o núcleo familiar paterno, em razão da relação já estabelecida com os menores, que não poderia ser prejudicada pelo trauma ocorrido, e em favor da reconstrução da sua história pessoal e familiar. Coube um recurso da Procuradoria Geral de Milão para a Corte de Cassação, no qual se sustentou que não poderia ser concedida a adoção nessas condições sem afrontar a lei vigente, numa modalidade de adoção moderada ou "aberta", em um regime alternativo à adoção plena, que ao mesmo tempo conservava os vínculos de origem familiar dos adotados.

Foi posta a discussão da legitimidade constitucional do disposto da Lei italiana indicado  (art. 27 da Legge 184/1983). Esse dispositivo da Lei italiana regula a adoção, e no seu parágrafo terceiro estabeleceu que "com a adoção cessam as relações do adotado com a família de origem, salvo os impedimentos matrimoniais" (em tradução livre)2.

No Brasil, a redação do art. 41, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, se aproxima muito daquela encontrada na Lei italiana, como se vê: "Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais."

Esse rompimento ("desligamento", como diz a Lei brasileira) do adotado com a sua família de origem foi o tema levado ao exame da Corte Constitucional italiana, em juízo de legitimidade constitucional em via incidental (Sentenza 183/2023). A questão em pauta na Corte dizia respeito à possibilidade de avaliação concreta pelo juiz do interesse preeminente e superior da criança em manter suas relações socioafetivas com a sua família de origem, embora concedida a adoção, no caso concreto, em razão do estado de abandono em que se encontravam as duas crianças. No caso examinado, a decisão se refere às relações dessas crianças com a avó materna e com alguns parentes do lado paterno, até o quarto grau.

A dúvida levada à Corte Constitucional sobre a legitimidade daquele dispositivo da Lei italiana foi posta em razão do confronto aparente com os artigos 2º, 3º, 30 e 117, parágrafo primeiro, da Constituição italiana, este último em relação ao art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e com os artigos 3º, 20, parágrafos 3º e 21, da Convenção sobre os Direitos da Criança (de Nova York, de 20 de novembro de 1989)3, ratificada pela Lei de 27 de maio de 1991, n. 176, bem como com o art. 24 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia4.

Essa questão oferece enorme interesse para o direito brasileiro, que dispõe de forma muito semelhante a respeito da adoção, sabido que se inclinou o Estatuto da Criança e do Adolescente a um modelo de adoção plena, aquele que se propõe a reproduzir, com a maior fidelidade possível, os efeitos da filiação natural, concedendo ao adotado, como assinalou a Corte Constitucional italiana, "uma espécie de renascimento".  

Esse modelo de adoção tem um duplo efeito: constitutivo e extintivo. A lei rompe os laços familiares de origem do adotado e constitui uma nova família, erguendo um muro divisório entre as duas famílias, de modo a encobrir em segredo a génese adotiva da filiação.5 O efeito é uma espécie de apagamento radical do passado, com o cancelamento da história de vida precedente do adotado.

A Lei italiana (lei 184/1983), desde a modificação que sofreu em 2001, com acréscimo feito ao seu art. 28, assegurou ao adotado o direito de ser informado de sua condição pelos adotantes, assim como garantiu aos adotantes obter informações sobre os pais biológicos, mediante autorização judicial.6 Este trânsito de informações relativizou o rigor com o qual se opera esta separação do passado, valorizando o direito à identidade pessoal a partir do conhecimento da origem e história parental. Foi nesse sentido que a Corte Constitucional italiana, julgando outro caso (Sentenza nº 278/2013), entendeu que a renúncia à parentalidade legal (optando a mãe natural pelo anonimato em caso de adoção) não implica em renúncia irreversível e definitiva da parentalidade natural e na proibição da relação mútua e de fato entre mãe e filho.

A Corte Constitucional italiana aponta uma tendência crescente, verificada na legislação italiana, no sentido de assegurar a continuidade das relações socioafetivas, mesmo durante período de acolhimento, como um fator importante ao desenvolvimento da personalidade da criança, vencendo-se o paradigma do sigilo impenetrável entre o núcleo parental de origem e a família adotiva, e consolidando a ideia de que a criança abandonada nem sempre exige, em favor do seu interesse, um apagamento radical do passado, por mais doloroso que tenha sido. A proteção da identidade da criança, afirma, está associada ao reconhecimento da importância, por um lado, da consciência das próprias raízes e, por outro lado, da possível continuidade das relações socioafetivas com figuras que desempenharam um papel positivo no seu processo de crescimento.

A decisão da Corte Constitucional italiana é rica no exame da evolução da adoção e de decisões dos tribunais europeus e aponta para uma evolução da jurisprudência, do direito vivente, no sentido de considerar a adoção plena um recurso extremo, porque é cada vez mais forte e profunda a consciência de que há uma variedade de situações que podem afetar a condição do menor e a necessidade de não o separar, sempre que possível, do seu núcleo familiar de origem, sabido que a divisão de uma família é uma ingerência muito grave, que deve basear-se em considerações inspiradas nos interesses da criança e justificadas solidamente.

E nessa linha, anota a Corte, os tribunais têm procurado uma proteção adequada para as crianças que considere a distinção entre a falta temporária de um ambiente familiar apropriado aos seus interesses superiores e aquele estado puro de abandono, tendo como certo que o afastamento da criança de sua família é uma medida extrema.

Em favor dessas novas percepções, assinala, começa a se formar uma jurisprudência que procura experimentar um novo modelo de adoção, uma "adoção aberta", conjugando as exigências de uma adoção plena com a necessidade de preservar as relações socioafetivas com os componentes da família biológica. Estabelece-se, assim, uma convivência entre a relação jurídica-formal de parentalidade decorrente da adoção com aquela outra relação de parentalidade natural e afetiva de origem da criança.

Diante dessas colocações, a Corte Constitucional italiana encaminha um decisão no sentido de reconhecer que a necessidade de distanciar (ou desligar, como diz a nossa lei) a criança da família de origem, e de um passado doloroso, pode representar, no caso, uma medida de proteção do adotado, mas a presunção que decorre da lei nesse sentido, ao impor rigorosamente esta solução, não pode implicar na proibição do juiz reconhecer concretamente um interesse do adotado em dar continuidade às relações socioafetivas positivas com a sua família de origem, evitando-se a ruptura dessa história de vida parental de modo a preservar a sua identidade em favor do desenvolvimento equilibrado da sua personalidade.

Afinal, diz a Corte italiana, a tutela da identidade do menor (e com ela o seu interesse em preservar relações afetivas positivas) não é compatível com modelos rigidamente abstratos e com presunções absolutas, completamente insensíveis à complexidade das situações pessoais, que podem negar concretamente a generalização que é a base da própria presunção. E há indicações muito seguras de que é relativa a presunção de que a ruptura das relações de fato com membros da família biológica seja do interesse do próprio menor.

Por todos esses motivos a Corte Constitucional italiana concluiu, sem reconhecer a inconstitucionalidade da Lei italiana, que o juiz pode verificar se existem razões concretas que levam a considerar prejudicial o rompimento de uma relação socioafetiva com alguém que no passado estabeleceu relações positivas com o menor, e que representaram um ponto de referência afetiva em seu processo de crescimento e que pertencem à sua memória.

A cessação das relações com a família biológica pertence necessária e obrigatoriamente ao nível das relações jurídicas-formais. No que diz respeito, porém, à interrupção de relações de natureza socioafetiva, a lei contém uma presunção juris tantum de que a separação de fato da família de origem é do interesse do menor. Tal presunção não exclui, na perspectiva constitucional da proteção do menor e de sua identidade, o reconhecimento de que o juiz pode apurar se a continuidade de significativas, positivas e consolidadas relações socioafetivas com membros da família de origem tem o potencial de realizar o melhor interesse do menor e, pelo contrário, a sua interrupção é tal que pode causar prejuízo a ele. Onde existem raízes afetivas profundas com familiares que não conseguem compensar o estado de abandono, é primordial o interesse do adotado em não sofrer o trauma ulterior da sua separação e em ver preservada uma linha de continuidade com o mundo do afeto, que pertence à sua memória e que constitui uma peça importante da sua identidade.

A Constituição brasileira assegura à criança e ao adolescente o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227), o que compreende, sem nenhuma dúvida, o direito à preservação da sua história parental e afetiva.

A disciplina legal da adoção de irmãos é particularmente interessante a esse respeito. O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente indica que a adoção deve ocorrer em relação a eles de forma conjunta "procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais" (art. 28, § 4º). Procura, assim, a continuidade das relações parentais entre os irmãos, reconhecendo que ela é fundamental para o desenvolvimento da personalidade da criança, mas não dedicou a mesma atenção aos demais membros da família de origem.

Essa ambiguidade da Lei brasileira entre os dois mundos (o mundo jurídico-formal e o mundo afetivo) não tem sido notada e já é hora de dar um passo importante em favor do direito fundamental à identidade. A decisão da Corte Constitucional italiana não é uma novidade. Em 2015 o Código Civil espanhol7 foi modificado pela lei 26/2015 nesse sentido e nos Estados Unidos a open adoption já é conhecida há muitos anos, no sentido de manter as relações sociais com a família de origem, embora sujeita a um modelo muito diferente do nosso, no qual se impõe um acordo entre as famílias e a sua aprovação judicial. A adoção deve ser antes de tudo um meio de realização plena dos direitos fundamentais e do desenvolvimento da pessoa e não uma causa de sua privação. Ao adotado não deve ser imposto, salvo em situação de excepcional proteção, esse rompimento entre o presente e o passado, o apagamento da sua história e da sua memória afetiva. O modelo de adoção plena absoluto, fechado, não consegue alcançar todas as situações de fato envolventes da vida. Há espaço para uma interpretação construtiva.

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1 A decisão foi "depositata in Cancelleria" em 28 de setembro de 2023 e disponibilizada no sítio eletrônico da Corte e pode ser acessada pelo link.

2 No original, com destaque nosso em negrito ao parágrafo terceiro: "ART. 27. Per effetto dell'adozione l'adottato acquista lo  stato  di  figlio nato nel matrimonio degli adottanti, dei quali assume e trasmette  il cognome. Se l'adozione e' disposta nei confronti della moglie  separata,  ai sensi dell'articolo 25,  comma 5, l'adottato assume il  cognome  della famiglia di lei. Con l'adozione cessano i rapporti dell'adottato verso  la  famiglia d'origine, salvi i divieti matrimoniali."

3 Destaco especialmente o art. 20 da Convenção sobre os Direitos da Criança: "Artigo 20. 1. Crianças temporária ou permanentemente privadas do convívio familiar ou que, em seu próprio interesse, não devem permanecer no ambiente familiar terão direito a proteção e assistência especiais do Estado. 2. Os Estados Partes devem garantir cuidados alternativos para essas crianças, de acordo com suas leis nacionais. 3. Esses cuidados podem incluir, inter alia, a colocação em orfanatos, a kafalah do direito islâmico, a adoção ou, caso necessário, a colocação em instituições adequadas de proteção da criança. Ao serem consideradas as soluções, especial atenção deve ser dada à origem étnica, religiosa, cultural e linguística da criança, bem como à conveniência da continuidade de sua educação."

4 Em português: "Artigo 24º Direitos das crianças 1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade. 2. Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. 3. Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses."(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia)

5 É assim no Brasil, visto que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina o segredo da adoção no registro, feito de modo a imitar a filiação natural: "Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. § 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes. § 2º O mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotado. § 3 o A pedido do adotante, o novo registro poderá ser lavrado no Cartório do Registro Civil do Município de sua residência. § 4º Nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro." (...)

6 A doutrina italiana aponta uma mudança do clima cultural da adoção de menores a partir desta modificação legislativa. Na Itália, à semelhança do que ocorreu no Brasil, numa primeira fase, a adoção era ordenada em favor do interesse do adotante no sentido da transmissão do seu nome e da herança, e em uma segunda fase a adoção assume um fim assistencial e solidarístico, colocando em segundo plano o interesse do adotante. Em uma terceira fase, particularmente na Itália, a partir dessa modificação legislativa de 2001, a adoção é identificada como instrumento de reação às carências demográficas e à crescente dificuldade e frustração de realização do projeto de parternidade ou parentalidade. Numa quarta fase, atual, aponta a doutrina italiana, que se verifica uma evolução e reavaliação da importância das relações do menor com a família biológica, o que ocorre também em favor da consolidação da orientação da Corte europeia dos direitos do homem no sentido de que a interrupção da relação do adotado com a família de origem deve ser vista como uma medida extrema e remota (ver por todos ALFIO GUIDO GRASSO, com amplas referências ao pensamento europeu atual, in Adozione aperta. Tra conservazione dei rapporti con la famiglia d'origine e redifinizione in nuovo núcleo familiare. Dov'è l'interesse del minore. Rivista dell'Associazione dei civilisti italiani. Numero due Maggio-Agosto 2023. Pacini Giuridica).

7 A atual redação do art. 178 do Código Civil espanhol: "1. La adopción produce la extinción de los vínculos jurídicos entre el adoptado y su familia de origen. 2. Por excepción subsistirán los vínculos jurídicos con la familia del progenitor que, según el caso, corresponda: a) Cuando el adoptado sea hijo del cónyuge o de la persona unida al adoptante por análoga relación de afectividad a la conyugal, aunque el consorte o la pareja hubiera fallecido. b) Cuando sólo uno de los progenitores haya sido legalmente determinado, siempre que tal efecto hubiera sido solicitado por el adoptante, el adoptado mayor de doce años y el progenitor cuyo vínculo haya de persistir. 3. Lo establecido en los apartados anteriores se entiende sin perjuicio de lo dispuesto sobre impedimentos matrimoniales. 4. Cuando el interés del menor así lo aconseje, en razón de su situación familiar, edad o cualquier otra circunstancia significativa valorada por la Entidad Pública, podrá acordarse el mantenimiento de alguna forma de relación o contacto a través de visitas o comunicaciones entre el menor, los miembros de la familia de origen que se considere y la adoptiva, favoreciéndose especialmente, cuando ello sea posible, la relación entre los hermanos biológicos. En estos casos el Juez, al constituir la adopción, podrá acordar el mantenimiento de dicha relación, determinando su periodicidad, duración y condiciones, a propuesta de la Entidad Pública o del Ministerio Fiscal y con el consentimiento de la familia adoptiva y del adoptando si tuviera suficiente madurez y siempre si fuere mayor de doce años. En todo caso, será oído el adoptando menor de doce años de acuerdo a su edad y madurez. Si fuere necesario, dicha relación se llevará a cabo con la intermediación de la Entidad Pública o entidades acreditadas a tal fin. El Juez podrá acordar, también, su modificación o finalización en atención al interés superior del menor. La Entidad Pública remitirá al Juez informes periódicos sobre el desarrollo de las visitas y comunicaciones, así como propuestas de mantenimiento o modificación de las mismas durante los dos primeros años, y, transcurridos estos a petición del Juez."