Disposições especiais levadas ao registro público: possibilidades e implicações
quarta-feira, 29 de março de 2023
Atualizado às 07:45
Há um dispositivo no Código Civil para o qual é preciso destinar um olhar mais atento: o artigo 1.154. Diz a norma:
"Art. 1.154. O ato sujeito a registro, ressalvadas disposições especiais da lei, não pode, antes do cumprimento das respectivas formalidades, ser oposto a terceiro, salvo prova de que este o conhecia.
Parágrafo único. O terceiro não pode alegar ignorância, desde que cumpridas as referidas formalidades."
O alcance que se pode dar à interpretação e aplicação da norma é largo e relevante. O que deve estar no centro do debate são os efeitos da eficácia erga omnes, aspecto que tem sido pouco explorado na prática do Direito Societário, com perda para todos os envolvidos: do mercado em geral a cada corporação em concreto. Não é nosso intento exaurir o tema neste breve ensaio, mas colocar algumas questões para a reflexão dos que estudam com o Direito Empresarial e, com mais ênfase, para as Juntas Comerciais e para aqueles que trabalham na assessoria de sociedades empresariais (quiçá sociedades de natureza simples, com atos constitutivos arquivados em Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas).
A entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) consolidou entre nós a posição, que já era defendida por uma parcela da doutrina, de que os sócios têm liberdade para, respeitando a Constituição, leis e princípios jurídicos, estabelecer cláusulas que vençam o que está disposto e implicado pelas normas do Código Civil sobre as sociedades simples e empresárias. Já não se compreende que possam ser objeto de disposição contratual as normas sobre nome, sócios, capital e quotas, objeto social, direitos e obrigações dos sócios, administração societária, resolução (total ou parcial) da sociedade, deliberação dos sócios. É possível ir adiante e, em função do registro, tais previsões não apenas obrigarão sócio(s), administrador(es) e sociedade (a pessoa jurídica que, nunca é demais recordar, distingue-se da pessoa de sócios e administradores), mas terceiros, recobrando a referência da eficácia erga omnes que, como de sabença geral, resulta da ciência ficta proporcionada pelo registro público.
A fronteira mais próxima desse fenômeno está na disposição de regras ASG (ambientais, sociais e de boa-governança) ou, preferindo-se idioma alienígena, ESG (environmental, social and corporate governance). Colocadas no contrato social, disposições dessa natureza passam a compor a essência da corporação e, sim, devem pautar a atuação da empresa. Não só podem ser invocadas pelos sócios, entre si e em relação à sociedade, como podem ser invocadas por terceiros em pretensões contra ou sobre a sociedade. A contribuição de uma sociedade empresária para um movimento político ou partidário constituirá ato ilícito se o seu contrato social dispõe, como exemplo:
A sociedade não realizará contribuições financeiras para movimentos políticos, partidos políticos ou campanhas políticas.
Mas o alcance dessa mecânica é ainda maior quando consideramos a faculdade de as sociedades, não importa sua natureza contratual (sociedades por quotas) ou estatutária (sociedades por ações) de arquivarem na Junta Comercial os mais variados tipos de documentos. A título exemplificativo: Código de Ética e Conduta, Termos de Ajustamento de Conduta, Acordo de Quotista, entre outros. No âmbito da Junta Comercial do Rio de Janeiro - JUCERJA, por exemplo, as sociedades limitadas utilizam o código "310 - outros documentos de interesse da empresa", para fazê-lo. Isso é extremamente salutar e enriquecedor. Por amor a clareza das informações, cumpre salientar que a codificação adotada pela JUCERJA é a determinada para todas as juntas comerciais do país pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI.
A bem da precisão, há uma política pública atualmente em fase de implantação pelas juntas comerciais, liderada pelo DREI, que busca ampliar a lista dos chamados códigos de "atos e eventos". Novos códigos estão em fase de criação, referentes a arquivamentos de "acordos de quotistas ou acionistas", "contratos de subscrição, opção ou conversão de créditos envolvendo quotas ou ações", "contrato de participação de investimento-anjo", "instrumento de alienação/cessão fiduciária em garantia", "instrumento de penhor", além de diversos outros. Dentre os objetivos dessa política, destacam-se o de tornar as juntas comerciais um amplo repositório público e digital para consulta, por quaisquer interessados, de negócios jurídicos que envolvam participações societárias ou a gestão de sociedades, bem como incentivar os usuários a evitar o uso de códigos genéricos, do que é exemplo o ato 310 supramencionado.
É quanto basta para chamar atenção para uma discussão que já vai acesa na doutrina do Direito Societário: a eficácia vinculativa das normas ditas éticas (ou compliance, como preferem os anglicistas), entre outras, como regimento de trabalho, ambientais e mesmo acordos de sócios. Se é possível ainda discutir sobre o efeito de auto obrigação para códigos e regimentos corporativos não levados ao registro público, o arquivamento do ato muda a questão por completo. Sociedade, administrador(es) e sócio(s) estarão obrigados a respeitar as disposições que, de resto, alcançarão terceiros, por força da cabeça e do parágrafo único do artigo 1.154, acima transcrito, embora com uma observação indispensável: sempre considerando o indispensável respeito à Constituição, às leis e aos princípios jurídicos. Justo por isso, não é possível dispor, no ato constitutivo ou em regulamento corporativo algo como:
A sociedade não poderá ser considerada civilmente responsável pelos danos que causar, decorram de dolo, culpa ou de abuso de direito. (sic)
A liberdade das normas privadas - no caso, normas corporativas - está limitada pelo artigo 5º, II, da Constituição da República, ou seja, limita-se ao que não é proibido, de um lado, e ao que não é determinado, de outro. Ainda assim, resta um espaço amplo entre ambas. O passo que falta é a digitação e disponibilização de todas essas informações na rede mundial de computadores. Essa ampla publicação dos atos corporativos arquivados (alias dicta: disclosure) terá efeitos diversos. Antes de mais nada, dará ao Direito Societário uma vitalidade que já é experimentada com as companhias abertas, obrigadas que estão a manter todas essas normas à disposição do mercado e, enfim, da comunidade em geral.
Mas é preciso atentar para o anverso da questão. Os efeitos do arquivamento sobre a própria corporação e seus membros. Trata-se de arquivamento voluntário (a sociedade não está obrigada de levar tais documentos ao registro público; fá-lo por mera liberalidade e com o intuito de publicizar essas questões perante todos), trata-se de arquivamento obrigatório (determinado em lei), a força erga omnes é ampla. Essa é a vinculação que está sendo muito debatida. O arquivamento na junta de código de ética e conduta, código (ou regimento) de sustentabilidade, regulamento (código, cartilha) de trabalho e prevenção ao assédio, entre outros, permitem seu manejo contra a sociedade pelo terceiro: Ministério Público, consumidor, fornecedor, vizinhos, trabalhadores etc. Reiteramos: é o outro lado da força erga omnes.
A sociedade tem o direito de proceder ou não ao arquivamento desses documentos; se o faz é no intuito de se vincular aos seus efeitos e garantir que terceiros tenham acesso à informação que reputa relevante. Afinal, o Registro Público de Empresas Mercantis, que é executado pelas juntas comerciais, tem por escopo assegurar a publicidade e a eficácia dos atos jurídicos das empresas. Os parâmetros enunciados e registrados devem pautar a existência, funcionamento e atuação das sociedades empresárias ou seria incongruente.
Próximo do que estamos afirmando há um caso concreto, muito interessante: o processo TJSP - 1078357-36.2021.8.26.0100. Cuida-se de ação movida por Avante Distribuidora de Bebidas Ltda. contra Checon Distribuidora e Transportadora Ltda, Heineken N.V., Heineken Brazil B.V. e Bavaria S.A. O objeto da demanda era um contrato de distribuição de produtos Heineken que foi encerrado. A autora alegou que o comportamento da ré, renovando sucessivamente o contrato ao longo de 24 anos, gerou nela legítimas expectativas. O fundamento da inicial é que haveria violação da boa-fé objetiva pela ré, quando declara em seu código de ética preocupações com as práticas da ASG e, ao mesmo tempo, denuncia o contrato a fim de atender interesses exclusivos dos seus acionistas. Seria um venire contra factum próprium.
Observe-se que, no caso, apesar das declarações constarem em documento de natureza diversa da do contrato, traz-se ao exame do Judiciário sua adesão à imbróglio entre as partes. Afinal, o código de ética é uma declaração unilateral de vontade e, assim, da contorno à definição do que a empresa deve ser. Daí colocar-se a investigação sobre sua incidência para a solução do conflito, podendo vincular a sociedade para com terceiros, inclusive ao ponto de mitigar o princípio da relatividade dos contratos.
Eis a provocação que desejávamos propor com este pequeno ensaio. Sabemos de suas implicações junto ao Registo Público de Empresas, realizado pelas Juntas Comerciais, para não falar do mercado em geral, da comunidade e do Estado. É fundamental explorar as possiblidades oferecidas pelo Direito Societário ou, indo além, criar uma cultura societarista que nos nivele com sistemas estrangeiros e, assim, contribua para nossa capacidade de concorrência em contextos mercantis há muito mundializados.