Notas sobre os mecanismos de responsabilização de terceiros na falência
quarta-feira, 13 de julho de 2022
Atualizado em 12 de julho de 2022 17:35
Antes de tudo é preciso pontuar que, desde a vigência da lei 11.101/05 (LRE), a falência deixou de ser um sistema liquidatório dirigido à extinção da empresa: é fundamental que o instituto possa ser reconhecido como método de pagamento dos credores e de preservação da empresa (pela venda de ativos organizados, art. 140 da LRE). E os operadores do direito devem buscar mecanismos para incrementar esses dois atributos da falência, a benefício dos credores, do devedor, e dos demais stakeholders afetados pela crise da empresa.
O exercício da atividade econômica implica assunção de risco pelo empreendedor e a insolvência modifica, compulsoriamente, o sistema de alocação dos riscos empresariais para, em alguma medida, na recuperação judicial, compartilhá-los com os credores.
Porém, se a empresa deixa de ter aptidão para gerar valor, a solução a ser adotada será a falência, como medida necessária de profilaxia do mercado.
O atual objetivo da falência é maximizar os ativos para melhorar a performance no pagamento dos credores. Para esse fim busca-se, também na quebra, a preservação da atividade --- com a finalidade principal de tentar manter o sobrevalor que os ativos organizados possuem, para que dele se beneficiem os credores.
Mas não se deve confundir, sob pena de subverter os fundamentos da falência, a busca de maior eficiência no pagamento dos credores (a ser alcançada com a elaboração de um plano de falência para venda dos ativos organizados, conforme art. 99, § 3º c/c art. 140, da LRE); com os mecanismos legais de responsabilização de terceiros (arts. 82 e 82-A da LRE).
A responsabilização de terceiros no processo falimentar não pode ser vista como um método "Robin Hood" destinado a "melhorar" o resultado para os credores. A segurança jurídica que resulta da aplicação concreta do sistema de insolvência deve ter regras claras que incentivem o empreendedorismo --- pois, como já anotou Ellen Gracie, "impor confusão entre patrimônios da pessoa jurídica e da pessoa física no bojo de sociedade em que, por definição, a responsabilidade dos sócios é limitada compromete um dos fundamentos do Direito de Empresa, consubstanciado na garantia constitucional da livre-iniciativa." (RE n. 562.276).
Na falência, a possível responsabilização de sócios de responsabilidade limitada e dos administradores é restrita a duas modalidades: (i) ação de responsabilidade (art. 82 da LRE) contra acionistas, controladores e administradores, com base nas regras de Direito Societário (arts. 117 e 158 da LSA), e (ii) a desconsideração da personalidade jurídica (art. 82-A, parte final da LRE, combinado com art. 50 do CC).
Mas deixe-se bem vincado que tais mecanismos têm a função econômica de recomposição de ativos que deveriam integrar a massa falida (ou porque foram ilicitamente desviados ou porque a sociedade, antes da quebra, experimentou dano, a ser reparado). Por isso, seus efeitos são os mesmos que da ação de ineficácia (art. 129 da LRE) e revocatória (art. 130 da LRE).
Antes de tudo, deve-se dizer que nosso ordenamento jurídico não admite a extensão dos efeitos da falência. No DL 7.661/45 o instituto era aplicado exclusivamente aos sócios de responsabilidade ilimitada (art. 5º) --- nunca aos sócios de responsabilidade limitada --- porque, nos termos da lei societária, os primeiros respondem subsidiariamente pelo passivo da sociedade (art. 1.024 do CC/02); mas a resposta dada pela lei 11.101/05 é que tais sócios têm a falência decretada (art. 81 da LRE).
Portanto, o instituto da extensão dos efeitos da falência foi revogado quando entrou em vigor a lei 11.101/05, mas a equivocada interpretação do instituto exigiu que a regra fosse explicitada na parte inicial do art. 82-A introduzido pela reforma pela lei 14.112/20: "É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos...".
A ação de responsabilidade prevista no art. 82 da LRE reflete regra de natureza processual que determina a competência (ratione materiae) de ajuizamento dessa lide, após a falência, como efeito da indivisibilidade do juízo falimentar (art. 76 da LRE).
Note-se que a leitura atenta da referida norma (art. 82 da LRE) indica claramente que o direito material aplicável é a lei societária, que disciplina a responsabilidade dos sócios e administradores de sociedade limitada ou sociedade por ações. Trata-se de ação que visa a reparar dano (natureza indenizatória) decorrente de ato ilícito eventualmente praticado por sócio ou administrador, para repor perdas experimentadas pela sociedade como efeito daquele.
Trata-se, portanto, de responsabilizar o sócio ou o administrador pelo descumprimento de seus deveres fiduciários para com a sociedade (antes da falência) com base, por exemplo, em abuso de poder de controle (art. 117 da LSA), infração ao dever de diligência (art. 153 da LSA ou art. 1011 do CC/02), recebimento indevido de lucros (art. 1059 do CC/02 ou art. 201, §1º da LSA), e assim por diante. Repita-se: a base material para a ação de responsabilidade é a Lei Societária, ou seja, o Código Civil ou lei das S/A.
E a medida de tal responsabilidade limita-se à extensão do dano, conforme art. 944 e seu parágrafo único do Código Civil, pois a responsabilidade é aquiliana, e exige prova de ato ilícito, dano e nexo causal, com reparação circunscrita ao prejuízo comprovado.
O outro mecanismo de responsabilização de terceiro, previsto na parte final do art. 82-A da LRE, é a desconsideração da personalidade jurídica, instituto pelo qual se autoriza penetrar no âmago da personalidade jurídica permitindo-se responsabilizar administradores ou sócios por atos que, embora praticados pela pessoa jurídica, beneficiaram o terceiro cujo patrimônio estaria protegido pela personalidade jurídica da sociedade.
Exige-se, todavia, prova de abuso de personalidade jurídica, por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, e a LRE remete ao art. 50 do CC/02 que os define com precisão.
É indispensável, para a caracterização do abuso da personalidade jurídica, que exista um ganho efetivo (na mesma medida da perda experimentada pela pessoa jurídica) pelo sócio ou pelo administrador a ser responsabilizado. O desvio de finalidade ou confusão patrimonial correspondem a abuso cometido por intermédio da pessoa jurídica para benefício pessoal, e por isso o instituto da desconsideração autoriza que quem os cometeu (sócio ou administrador) por eles responda, sem que possa esconder-se sob o véu da separação de personalidade.
Nesse sentido, "Os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio majoritário ou controlador." (STJ, ministra Nancy Andrighi Resp 1.325.663, j.11/6/13).
Em suma, na desconsideração, se a pessoa jurídica é utilizada ilicitamente (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) para beneficiar um terceiro (sócio ou administrador) autoriza-se que quem os cometeu por eles responda (e somente a pessoa que se beneficiou), sem que possa esconder-se sob o véu da separação de personalidade.
Em conclusão, e o que é mais relevante aqui destacar é que os institutos de responsabilização de terceiros na falência, previstos nos arts. 82 e 82-A da LRE, não geram, em hipótese alguma, responsabilidade pela totalidade do passivo falimentar. O art. 82-A da LRE é categórico: "É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos [...]".
Assim, a eventual responsabilização de terceiros na falência exige prova do exato valor do dano à pessoa jurídica (no caso do art. 82 da LRE), ou do efetivo quantum desviado em prejuízo da empresa e a benefício do terceiro pelo uso indevido da personalidade (no caso da desconsideração, art. 82-A, parte final).
Com efeito, em ambos as hipóteses --- responsabilidade do administrador ou sócio; ou desconsideração da personalidade jurídica, --- a recomposição da perda experimentada pela massa falida deve equivaler à extensão do dano ou do desvio de valor praticados; e nada mais além disso, com aplicação do art. 944 e seu parágrafo único do CC/02.