A extensão da falência e a desconsideração da personalidade jurídica: dúvidas e certezas
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Atualizado às 08:11
A extensão da falência, ou a falência derivada, como medida que estende os efeitos da falência aos sócios, sempre foi controvertida no direito brasileiro. E as dificuldades com a extensão da falência, abolida (assim como a própria falência) no moderno processo de insolvência europeu, aumentam diante da técnica da desconsideração da personalidade jurídica, que, aplicada, muitas vezes, nos processos de falência, acabam por determinar indevidamente a extensão da falência a outra sociedade.
A origem desta ideia de extensão da falência remonta ao tempo em que não havia possibilidade de sujeitar ao processo concursal o não comerciante. A solução encontrada para a excussão dos bens dos sócios de responsabilidade ilimitada perante os credores concursais foi estender os efeitos da falência aos sócios, para trazer os seus bens ao processo concursal.1 No entanto, essa solução acabou algumas vezes desvirtuada e hoje se mostra verdadeiramente fora do seu tempo.
Na vigência do decreto-lei 7.661/45 admitia-se a extensão dos efeitos da falência somente na hipótese do seu art. 5º, contra o sócio de responsabilidade ilimitada, como se vê claramente do texto da Lei:
"Art. 5° Os sócios solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais não são atingidos pela falência da sociedade, mas ficam sujeitos aos demais efeitos jurídicos que a sentença declaratória produza em relação à sociedade falida. Aos mesmos sócios, na falta de disposição especial desta lei, são extensivos todos os direitos e, sob as mesmas penas, tôdas as obrigações que cabem ao devedor ou falido." (grifamos)
Não autorizava a Lei a decretação da falência dos sócios, mas sim a "extensão" dos seus efeitos aos sócios de responsabilidade ilimitada, e não a extensão a outra sociedade. E mesmo quando autorizada, o sócio respondia de forma subsidiária e não solidária. Explica Adriana Valéria Pugliesi que a distinção entre a falência e a "extensão" dos seus efeitos não é meramente semântica. "A sentença que decreta a falência tem natureza constitutiva deflagrando não apenas o início do procedimento concursal, mas, sobretudo, criando um novo status jurídico para o devedor: o falido é desapossado de seus bens e com isso afastado da empresa (atividade); enquanto o sócio que sofre tão somente os efeitos da falência, do ponto de vista patrimonial, passa a ser corresponsável subsidiário pelas obrigações da falida, até que se extingam. Há sensível diferença no status jurídico de um e outro. Por outro lado, nas sociedades em que existam sócios de responsabilidade limitada, como é o caso das Sociedades Limitadas (art. 1.052 e ss. Do CC) e das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), tais sócios, em princípio, não deveriam sofrer os efeitos patrimoniais da falência."2 (destacamos em negrito)
Desde a vigência da lei 11.101/2005 já não se admite a extensão da falência, porque o seu art. 81, a despeito de todas as críticas da doutrina, considera falido o sócio de responsabilidade ilimitada, tornando desnecessária a medida de "extensão" da falência antes prevista. Acolheu velha doutrina, bem representada por WALDEMAR FERREIRA, que defendia esta solução no projeto da Lei revogada.
A responsabilidade dos sócios e administradores por desvios e irregularidades na gestão da sociedade deve ser apurada na falência, à luz dos preceitos societários (art. 82)3, não sendo autorizada a extensão da falência.
A recente reforma da lei 11.101/2005, mais técnica, é expressa ao vedar a extensão da falência, reforçando o preceito, admitindo-se somente a desconsideração da personalidade jurídica, como se vê a seguir:
Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela lei 14.112, de 2020)
Esse dispositivo, que agora claramente autoriza o uso da técnica da desconsideração da personalidade jurídica na falência, deve ser bem compreendido. Há diferenças importantes entre a "extensão", a falência e a "desconsideração". Como bem assinala Adriana Valéria Pugliesi, "na desconsideração da personalidade jurídica a responsabilidade patrimonial é restrita a uma situação de benefício concreto específico (por ato isolado ou sucessão de atos, do sócio controlador ou administrador), mantendo-se hígida a personalidade jurídica e, consequentemente, a separação patrimonial de bens do sócio e da sociedade para todos os demais efeitos de direito e atos não abrangidos pelo desvio de finalidade."4
E acrescenta a autora que "a desconsideração da personalidade jurídica também não pode ser considerada (ou sequer confundida) com as medidas de reconstrução do patrimônio da falida (ação revocatória e pedido de ineficácia), previstas nos arts. 129 e 130 da LRF. Isso porque, na desconsideração da personalidade jurídica, como acima visto, deve haver um benefício daquele que é chamado a responder, exatamente em função da fraude ou confusão patrimonial perpetrada por disfunção (desvio de finalidade) da personalidade jurídica. Já nas medidas de reconstrução do patrimônio da falida (arts. 129 e 130 da LRF), ao contrário, não se perquire de benefício aos que são chamados a devolver os bens desviados da massa; mas sim do prejuízo desta última, o qual presumido diante da situação de insolvência. Portanto, o que é preciso divisar com clareza, é que desconsideração da personalidade jurídica, na falência, embora não esteja expressamente prevista no diploma concursal, poderá ser aplicada, desde que: (i) suas finalidades e suporte fático não se confundam nem com a extensão da falência ou dos efeitos desta, nem com a ação revocatória ou pedido de ineficácia (arts. 129 e 130 da LRF); e (ii) seja respeitada a disciplina de regência do instituto ..."5
Na "extensão" da falência, decretada na vigência do decreto-lei 7.661/45, determinava-se a responsabilidade subsidiária, e não a falência propriamente dos sócios ou das sociedades coligadas. Esta singular diferença, quando não percebida, representa o risco de arrastar para a falência um sócio ou uma sociedade "solvente" por atos que foram determinantes, não para a quebra, mas sim para a "desconsideração da personalidade jurídica", restrita como deve ser ao ato de desvio.
O Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito dos efeitos da "extensão" da falência afirmou, pelo voto do Eminente e saudoso Desembargador Araldo Telles, o seguinte: "A extensão dos efeitos da falência não tem natureza jurídica de sentença de quebra em desfavor de terceiros, sócios ou sociedades e empresários coligados, mas de desconsideração dos limites da responsabilidade do devedor, de levantamento do véu da sua personalidade jurídica e tem em vista desenlear trama urdida entre eles" (Ag. Instr. n. 0255977-13.2011.8.26.0000, d.j. 30.09.2013).
Em outra oportunidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo foi chamado a dizer sobre os efeitos da "extensão" da falência e decidiu, pelo voto do Eminente Desembargador Elliot Akel, com apoio em outros julgados, especialmente do Desembargador Romeu Ricupero, o seguinte: "Conforme já afirmei, em julgamento desta Corte, quando ainda integrava a então Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, "uma coisa é a desconsideração da personalidade jurídica para submissão dos bens dos sócios à satisfação de uma obrigação, em se divisando abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), vale dizer, a extensão, a essas pessoas, das repercussões patrimoniais da quebra. Outra, diversa, é a extensão da própria falência aos sócios, ao controlador, ou a outras empresas coligadas". "(...) Em qualquer hipótese de propositura de ação de responsabilização, de desconsideração da personalidade jurídica e de extensão da falência, a sua eventual procedência só pode ter conseqüências patrimoniais, ou seja, sujeitando os bens do sócio, controlador ou administrador ao pagamento das obrigações sociais, mas não o sujeitando à condição de falido" (Agravos de Instrumento nºs 521.791.4/2 e 553.068.4/2, Rel. Romeu Ricupero, j. 27.8.2008)" (Ag. Intr. n. 0029817-27.2008.8.26.0068, dj. 23.07.2013).6
Como bem esclarece mais uma vez Adriana Valéria Pugliesi, "na desconsideração da personalidade jurídica a responsabilidade patrimonial é restrita a uma situação de benefício concreto específico (por ato isolado ou sucessão de atos, do sócio controlador ou administrador), mantendo-se hígida a personalidade jurídica e, consequentemente, a separação patrimonial de bens do sócio e da sociedade para todos os demais efeitos e atos não abrangidos pelo desvio de finalidade. Bem por isso, distingue-se a desconsideração da personalidade jurídica da extensão dos efeitos da falência e também da extensão da falência ao sócio de responsabilidade ilimitada."7
Logo, havendo desconsideração da personalidade jurídica, ou a extensão dos efeitos da falência, como previsto na Lei revogada, não cabe ação revocatória ou de ineficácia dos atos praticados pelo terceiro, porque falido não é, como não cabe arrecadação de bens ou qualquer efeito da falência. A desconsideração da personalidade jurídica, não é nada mais do que uma técnica de extensão da responsabilidade, e não pode ir além disso.
Outro aspecto importante, como bem aponta a doutrina de Adriana Valéria Pugliesi, é que no caso de extensão da falência ocorre na verdade "uma segunda falência com causa originária na anterior"8, que inaugura e constitui um novo status jurídico falencial, o que altera também o marco temporal de vigência da Lei. Nesse sentido a disposição do art. 192, § 4º, da lei 11.101/2005, que estabeleceu a aplicação da Lei nova a partir do decreto de falência requerida anteriormente. Essa disposição altera por inteiro o regime jurídico aplicável a uma falência decretada, ainda que indevidamente, por extensão.
A Lei atual em vigor admite a falência (e não a extensão dos seus efeitos) ao sócio de responsabilidade ilimitada. É uma posição que deveria ser superada, porque atenta contra a personalidade jurídica, sua autonomia e separação patrimonial. Todavia, não há previsão de extensão dos efeitos da falência na Lei vigente, assim como não cabe emprestar à desconsideração da personalidade jurídica o efeito, que ela não tem, de falência ou de sua extensão. São distinções importantes.
__________
1 A respeito, destacamos Catarina Serra (Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência. Coimbra : Coimbra Editora, 1999, p. 76-79) e RUBENS REQUIÃO (Curso de Direito Falimentar. 1° vol. 8ª ed. São Paulo : Saraiva, 1983, p. 46-49).
2 A responsabilidade patrimonial do falido, a extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida. "Dez anos da Lei nº 11.101/2005: estudos sobre a Lei de Recuperação Judicial." Coord. Sheila C. Neder Cerezetti e Emanuelle Urbano Maffioletti. São Paulo : Almedina, 2015, p. 502/503.
3 Nesse sentido pode ser anotado, ainda, o entendimento de Marcelo Barbosa Sacramone (A extensão da falência e a desconsideração da personalidade jurídica. "Falência, Insolvência e Recuperação de Empresas Estudos Luso-Brasileiros." Coord. Newton De Lucca e Miguel Pestana de Vasconcelos. São Paulo : Quartier Latin, 2015, p. 201/219).
4 Op. cit., p. 510.
5 Op. cit., p. 512. A autora escreveu antes da Lei n. 14.112/2020, quando ainda não fora estabelecido no art. 82-A a possibilidade do uso da técnica da desconsideração da personalidade jurídica na falência.
6 Nesse sentido pode-se acrescentar a correta observação feita por Erik Frederico Oioli e José Afonso Leirião Filho: "Não obstante a existência de questionável aplicação pelos tribunais da construção jurisprudencial referente à extensão dos efeitos da falência, conclui-se, da análise das previsões e do histórico das decisões, que os efeitos causados pela extensão apenas podem implicar consequências de natureza patrimonial; entendimento este já presente em determinados precedentes jurisprudenciais sem força vinculante, tratando-se, portanto, de matéria cuja análise é fundamental aos Tribunais Superiores. Caso se solidifique o entendimento de que a responsabilização é meramente patrimonial, passando-se a periciar as obrigações pelas quais deve responder o destinatário da extensão, tudo nos exatos moldes do artigo 50 do Código Civil (LGL\2002\400), o ideal é que se abandone o termo "extensão dos efeitos da falência", passando-se a aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, estritamente do modo previsto pela lei. Nos demais casos, os tribunais devem utilizar-se das previsões existentes no ordenamento para apurar e responsabilizar os sócios e administradores das sociedades, caso exista suspeita do cometimento de abusos com relação à falida." (A extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro - análise de caso. Revista de Direito Recuperacional e Empresa n. 4/2017).
7 Op. cit., p. 510/511.
8 Op. cit., p. 513.