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A evolução do Direito Comercial e o contrato - da antiga à nova lex mercatoria

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Atualizado em 23 de dezembro de 2021 10:01

Ao encerrar o ano desejo trazer ao leitor um pouco de história e a reflexão que tem ocupado o nosso pensamento a respeito das mudanças do porvir.

Para compreender o nascimento e a evolução do Direito Comercial é importante fazer o registro de que no Direito Romano não se cuidou de sistematizar normas aplicáveis ao comércio, distinguindo-as do Direito Civil, devido à sua organização social voltada precipuamente para a propriedade e a atividade rural, daí o pouco desenvolvimento do Direito Comercial entre os romanos. É certo que, na era cristã, Roma viveu transformações econômicas e um intenso capitalismo mercantil, logo interrompido pela invasão dos bárbaros e o fracionamento do território imperial.

Com o fim do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), ocorreu uma fragmentação do poder político, que resultou no fortalecimento do poder local e no surgimento do feudalismo.1 Os mais pobres procuravam a segurança dos seus senhores e a economia se interiorizou em torno do uso da terra e da propriedade.

Muitos agricultores e artesãos, para fugir dos abusos dos senhores feudais, foram para as cidades e desenvolveram o comércio. Formou-se uma classe burguesa. A cidade se transformou em um centro de consumo e de trocas, promovendo-se feiras e mercados, e os seus mercadores passaram a se associar. Surgiu nesse período, também, a letra de câmbio e os títulos de crédito, papéis necessários a instrumentalizar os pagamentos.

Essas corporações de comerciantes se organizaram. Fazia-se a eleição de Cônsules, que se incumbiam de dirimir os conflitos entre os mercadores, com base na equidade, nos costumes e nas práticas mercantis, ocupando o espaço existente em razão do fraco poder político central.

Os costumes e as práticas do comércio, assim como as decisões dos Cônsules, passaram a ser observados pelos comerciantes nas feiras, portos e mercados europeus, e foram reunidos em repositórios, que representava efetivamente os primeiros traços do Direito Comercial (ius mercatorum). Era um direito que se afirmava internacionalmente e que não conhecia fronteiras.

O direito dos mercadores (ius mercatorum ou lex mercatoria), como se convencionou designar a regulação das relações comerciais originariamente, apresentava, como visto, a particularidade de que nasceu e foi criado a partir dos próprios mercadores e dos seus costumes, sem a mediação da sociedade política. É por isso que Francesco Galgano2 afirma que a história da lex mercatoria é a história de um modo particular de criar o direito.

O Direito Comercial, entendido como um conjunto de normas destinadas a regular a atividade mercantil, nasceu, portanto, no século XII e se desenvolveu nos séculos seguintes, especialmente nas cidades italianas. Diante de um poder político central fraco, os comerciantes, que formavam uma classe econômica e política forte, porque controlavam a produção e a distribuição, fizeram prevalecer uma espécie de direito especial do comércio, contraposto ao direito comum (romano-canônico), baseado nos costumes e nos estatutos das corporações dos mercadores.

O Direito Comercial, portanto, nasceu na Idade Média, criado pelos comerciantes e para os comerciantes. Aplicava-se somente àqueles que faziam parte (eram inscritos) da corporação de mercadores, fundado essencialmente nos costumes da corporação. Os juízes (cônsules) eram escolhidos pelos mercadores e passaram com o tempo a ter jurisdição sobre qualquer pessoa que tivesse estabelecido relações com um comerciante da corporação, ainda que essa relação não fosse mercantil. Presumia-se que aquele que tivesse negócios com comerciantes também era comerciante. Aquele que não aceitasse a jurisdição dos cônsules ficava privado de fazer novos negócios. É um período da formação do Direito Comercial chamado de subjetivo, porque o direito dos mercadores era aplicado em razão do sujeito, o membro da corporação, uma espécie de direito de classe.

No final da idade moderna e início da época contemporânea3, com a centralização de poder no monarca e o consequente fortalecimento do Estado, a classe dos mercadores deixou de fazer o Direito Comercial. A lei do Estado se impõe e prevalece sobre os costumes mercantis em favor de um ideal de igualdade que caracterizava o novo regime de 1.789. Os tribunais de comércio, controlados pelo Estado, passam a aplicar as leis, tudo em razão do fortalecimento do Estado inerente à nova ordem social.

Com a Revolução Francesa (1.789), inspirada no Iluminismo, que inaugura a Idade Contemporânea, foram extintas as corporações e proclamada a liberdade de trabalho e de comércio. O Direito Comercial deixa de ser efetivamente classista e a força do Estado se faz sentir, especialmente pela legislação que se produziu.

Destaca-se neste cenário o Código Comercial francês de 1807, no qual se verifica que o comerciante não se define pela sua inscrição na corporação, mas pela prática habitual dos atos de comércio, sujeitando-se à jurisdição especial. É o chamado período objetivo, no qual o Direito Comercial é aplicado pela prática dos atos de comércio e não pela qualidade do sujeito. Essa orientação decorreu principalmente do fato de que a França dividiu o direito privado em duas codificações, procurando distinguir o Direito Comercial do Direito Civil pela identificação dos atos de comércio, o que tinha interesse especialmente para definir a competência da jurisdição.

O Direito Comercial, pelas suas características de origem, adquiriu autonomia em relação ao Direito Civil. Deu ao contrato a natureza de negócio, e não simplesmente de meio de transmitir a propriedade, como era a concepção romana daquele tempo. Com liberdade de formas, o Direito Comercial foi instrumentalizado a assegurar aos comerciantes o lucro e a criação de riquezas, enquanto o Direito Civil, romano-canônico, dirigia a sua atenção à fruição e transmissão de bens.  Esses traços marcantes e distintivos é que impõem ao Direito Comercial a autonomia necessária para o tratamento dessa categoria de relações.

Embora não se possa estabelecer ainda hoje precisamente os limites da autonomia do Direito Comercial no âmbito do direito privado, é certo que se distingue do Direito Civil em razão da sua natural mutabilidade em favor do tráfico jurídico, e se apresenta com uma distinta nacionalidade, porque procura se ajustar às exigências do mercado internacional.

O Direito Comercial, adverte Galgano, não regula todo o comércio e não é um sistema normativo autossuficiente a cuidar por inteiro de um setor da vida econômica. A disciplina jurídica do comércio sempre exige o concurso de outras normas, como ocorre com os contratos e obrigações, regulados pelo Direito Civil.

Hoje se pode falar de um novo Direito Comercial ou um novo direito dos mercadores ou empresários, diante do movimento de uniformização do Direito Comercial verificado nas relações internacionais, por imposição das mudanças sociais e econômicas vividas a partir do final do século passado.

A economia globalizada fomentou o comércio internacional e rompeu os limites territoriais ou soberanos na organização produtiva e distributiva. As grandes empresas assumem dimensão multinacional e suas relações potencializam a propagação de modelos uniformes de contratação, contribuindo, como afirma Galgano, para a formação de uma nova lex mercatoria.

Neste mundo novo as empresas se aproveitam de benefícios fiscais ou melhores oportunidades do mercado de capitais e do mercado de trabalho para determinar, convenientemente, onde e como organizar as suas atividades. As empresas multinacionais, destarte, mudaram completamente as relações comerciais de outrora, não encontrando limites nas fronteiras dos Estados para formar um grande e complexo mercado global que não está sujeito a um ordenamento jurídico nacional. O Direito Comercial não tem fronteiras e essa sua característica de universalidade o distingue mais sensivelmente do Direito Civil, confinado territorialmente pela soberania do Estado.

Essas características do mercado global, sujeito a uma espécie de ordenamento supranacional, que expõe a incapacidade do Estado soberano de regular essas relações, é a nova realidade do Direito Comercial. Voltam os mercadores a fazer o direito do comércio, como na Idade Média, utilizando-se de cláusulas gerais, comuns no mercado internacional, e de instrumentos de uniformização de costumes e do direito aplicado, como são aqueles provenientes da CCI - Câmara de Comércio Internacional, da UNCITRAL - Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e do UNIDROIT - Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado.

Os comerciantes se valem, ainda, de tribunais arbitrais ligados ao comércio internacional para decisão dos seus litígios à luz das fontes consuetudinárias, dos tratados internacionais e sobretudo das cláusulas dos próprios contratos. Tudo compõe uma nova disciplina do comércio no mundo globalizado, universalizada e supranacional, que volta a ser produzida pelos próprios comerciantes, o que evidencia a existência hoje de uma nova lex mercatoria e de um efeito, anotado por Pietro Perlingieri, de desterritorialização do direito.4

Há neste movimento a volta ao passado, quando se compreendia o Direito Comercial, especialmente, na absoluta liberdade e autonomia dos mercadores, longe da interferência do Estado. Representa a ideia de que o mercado é livre e se deve evitar qualquer intervenção estatal.

Resulta desse sucinto panorama que o Direito Comercial, hoje designado por muitos como Direito Empresarial, apresenta como características bem definidas a especialidade e a universalidade. Resulta ainda desta sumária observação que o contrato, no âmbito das relações comerciais, passa a produzir uma espécie de direito interestatal e livre, em parte, das intervenções estatais, o que desperta também reflexões para a chamada nova lex mercatoria e o interesse do jurista para esse novo efeito das relações contratuais, inclusive quanto ao que se convencionou designar de externalidades do contrato, que são os efeitos produzidos pelas relações contratuais além das suas fronteiras, riscadas pelo velho princípio contratual da relatividade. O Estado já não tem plena soberania sobre as relações contratuais. É um fenômeno que deve interessar muito ao jurista moderno.

______

1 O feudalismo se inicia com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e termina com a queda do Império Romano do Oriente (1.453) - também chamado de Império Bizantino. É o período da história que corresponde à Idade Média. Durante a Baixa Idade Média (século XI ao século XV), no auge do feudalismo, se fortaleceu o comércio e surgiram os primeiros traços do Direito Comercial.

2 GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, ed. Il Mulino, 5ª ed., 2010, p. 9.

3 Costuma-se situar a Idade Antiga entre 4.000 a.C. (invenção da escrita) e 476 d.C. (queda do Império Romano do Ocidente). A Idade Média situa-se entre 476 e 1.453 (tomada de Constantinopla). A Idade Moderna situa-se entre 1.453 e 1.789 (Revolução Francesa), quando se inicia a Idade Contemporânea

4 Anotação de PIETRO PERLINGIERI extraída do prefácio à 1ª edição italiana de "O direito civil na legalidade constitucional", edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco, ed. Renovar.