O Poder de disposição da coisa no contrato estimatório (venda em consignação) e os seus efeitos - Parte II
quarta-feira, 16 de junho de 2021
Atualizado às 09:34
Na última semana publicamos a primeira parte do artigo. Segue agora a segunda parte, que cuida dos elementos e dos efeitos do contrato estimatório.
O contrato estimatório tem como objeto coisa móvel infungível. Entenda-se coisa móvel como corpórea, concreta e tangível. Bens imateriais não podem ser objeto desse contrato, que tem natureza real e exige a sua entrega material ao consignatário. Há quem admita a posse como objeto deste contrato, porque ela tem valor econômico e pode ser transferida independentemente da propriedade (PAULO LUIZ NETTO LÔBO).
As coisas imóveis, porque não podem ser objeto de tradição real, estão excluídas. PONTES DE MIRANDA e PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO não encontram proibição no contrato estimatório de coisas imóveis. No âmbito do direito privado predominam as normas dispositivas e não havendo regra proibitiva expressa deve ser aceita a celebração do contrato estimatório de coisa imóvel. Esse é o argumento utilizado. Nesse sentido também a opinião de ROSENVALD e FARIAS, que invocam o direito austríaco em abono da tese de que não havendo proibição é possível celebrar o contrato estimatório sobre imóveis.
Com o devido respeito, não aceitamos essa opinião, porque o poder de disposição do consignatário impõe o recebimento da coisa. Sucede que a coisa imóvel só pode ser transmitida pelo registro, espécie de tradição ficta, que não tem tipificação real para o contrato estimatório, impedindo a vontade das partes de fazer celebração dessa natureza sem ofensa ao princípio da legalidade e da continuidade aplicados no registro de imóveis. O consignatário não poderia vender o imóvel e outorgar a escritura, pois o bem está registrado em nome do consignante. Assim, poderia ser outorgado um mandato ou firmado contrato de corretagem, figuras que se aproximam do negócio estimatório, embora inconfundíveis.
As coisas fungíveis e as consumíveis podem também ser objeto do contrato estimatório. Todavia, neste caso a entrega dessas coisas ao consignatário opera a transmissão da propriedade, restando ao consignante, que deixa a qualidade de proprietário, apenas um crédito, pois outras coisas poderão ser restituídas ao final do prazo previsto no contrato. Cuida-se de uma espécie imprópria de contrato estimatório.
O valor da coisa (preço) pode ser estimado desde logo ou poderá ser determinado no momento da opção do consignatário, podendo ser fixado pela cotação em bolsa, tabelas ou periódicos. Nada impede, também, que seja estabelecido por um terceiro designado no contrato.
Lembra PENALVA SANTOS que o valor pode ser estimado abaixo do preço de mercado para motivar o consignatário a aceitar o negócio. O que prejudica a validade do negócio é a indeterminação do preço, por falta de elementos previamente definidos no contrato, porquanto o valor da coisa constitui elemento essencial do negócio.
SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA lembra que é nulo o contrato quando o preço ficar ao arbítrio de qualquer uma das partes, o que caracteriza a condição meramente potestativa (art. 122, CC).
O contrato estimatório pode ser realizado entre pessoas naturais ou jurídicas. É necessário que o consignante seja proprietário do bem e dele tenha disponibilidade, pois o contrato entrega ao consignatário a sua disponibilidade absoluta.
Embora o art. 534 do CC faça referência a um contrato com prazo determinado, nada impede que ele seja firmado com prazo indeterminado, entendendo-se que nesse caso o prazo será aquele necessário à venda do bem, de acordo com os usos e os costumes (art. 134, CC). Caberá ao consignante, nesse caso, interpelar o consignatário a restituir o bem ou pagar o preço, dependendo dessa notificação para que ele seja constituído em mora (ex persona), de acordo com o art. 397, par. único, do Código Civil. É a opinião de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA e SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA.
Entende-se que o prazo é estabelecido em favor do consignatário (art. 133, do Código Civil), de forma que a ele deve ser assegurado o direito de fazer a restituição do bem antes de vencido o prazo, salvo se o contrato estabelecer de forma diversa (SILVIO VENOSA). Ao consignante, por esta razão, não será dado exigir a restituição do bem antes de vencido o prazo contratado, que deverá respeitar para que o consignatário possa tirar o proveito esperado do negócio com a venda do bem e o lucro do sobrepreço.
Embora ao consignatário não se possa exigir a exibição da coisa, as partes podem convencionar obrigação dessa natureza para impor ao consignatário a obrigação de expor a coisa à venda em certo lugar ou não expor em outro. Também pode ser convencionado que a coisa não será vendida em certas circunstâncias ou abaixo de certo valor. Tudo com o propósito de proteger a marca ou outros interesses do consignante.
Não impõe o Código Civil uma forma solene para o contrato estimatório. Logo, é livre a sua celebração, que poderá ser verbal ou escrita, seguindo o negócio a forma que melhor interessar às partes. Mas é sempre conveniente que se faça o contrato por escrito, com testemunhas, para prevenir litígio futuro.
Para a validade do negócio são exigidos os requisitos necessários a qualquer contrato, como a capacidade, legitimidade e o consentimento das partes.
Não há nenhuma consequência para a devolução do bem ao consignante quando não realizada a venda, como não há responsabilidade prevista para o consignatário se ele não encontrar comprador ou não se empenhar em fazê-lo. Ele se compromete a vender o bem, mas não assume a obrigação de resultado (SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA). Não se olvide, contudo, que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (art. 422, CC), o que significa que o consignante não poderá embaraçar a venda ou criar impedimentos para que ela se realize.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA enumera as principais características do contrato estimatório: a) exige a entrega da coisa; b) esta deve ser bem móvel; c) acarreta obrigação para o accipiens de restituí-la ou pagar o preço; d) o preço é elemento essencial, devendo ser previamente estimado; e) é contrato a termo, devendo ser cumprido no prazo estipulado; f) transfere ao consignatário a disponibilidade da coisa.
O contrato estimatório transfere os riscos de perda e deterioração da coisa ao consignatário, que não se exime de pagar o preço ainda que a impossibilidade de restituição da coisa seja decorrente de fortuito ou força maior (art. 535). Há neste caso uma inversão da teoria dos riscos (res perit domino), que atribui ao dono da coisa o prejuízo. Alguma dúvida poderia ser levantada a respeito, pois há quem sustente que essa obrigação sem culpa só poderá ser exigida quando a perda ou deterioração ocorreu após o prazo do contrato, mas é forte a redação do dispositivo legal citado a atribuir ao consignatário toda a responsabilidade pela coisa em razão da singularidade da situação em que a coisa se encontra em seu poder. Cuida-se, nas palavras de ROSENVALD e FARIAS de responsabilidade objetiva com risco integral.
Como consequência, poderá o consignante recusar a restituição da coisa, caso pretenda o consignatário devolvê-la deteriorada, porquanto se refere o art. 535 do Código Civil à restituição em sua integridade. Daí se infere, nas palavras de SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA, que é da maior importância a perfeita descrição do estado da coisa no momento da consignação, sem a qual responderá o consignatário pela sua restituição em perfeito estado, presumido, assim, embora relativamente, se o recebimento ocorreu sem ressalva alguma a respeito.
Caso a perda ou deterioração possa ser imputada ao consignante, como lembra PENALVA SANTOS a respeito de coisa entregue com vício, o consignatário não responderá pela perda ou deterioração.
O consignatário tem a posse direta do bem, que não anula a posse indireta do consignante. Mas o consignatário não é proprietário. Por isso, enquanto não pagar integralmente o preço, o bem não poderá ser penhorado ou sequestrado pelos credores do consignatário (art. 536 do CC Brasileiro e 1.558 do CC Italiano).
Mas com razão admite CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA que o terceiro, credor do consignatário, poderá validar o ato de constrição pagando ao consignante, dentro do prazo estabelecido no contrato, o preço estimado, que não poderá enjeitá-lo porque não ocorrerá nenhum prejuízo.
A posse do consignatário não poderá ser perturbada enquanto está em curso o prazo para a consignação, facultando-se a ele o uso dos interditos possessórios, inclusive contra o consignante.
É certo que o consignatário que não restitui a coisa está obrigado a pagar o preço, mas não se pode negar ao consignante o direito de obter a restituição da coisa enquanto ela está na posse livre do consignatário, depois de vencido. A alternativa de exigir o preço ou a coisa, caso o consignatário não a tenha vendido, ou caso ele também não tenha manifestado interesse em ficar com ela, é do consignante.
Manifestando o consignatário, de forma inequívoca, que aceitou a aquisição do bem, mas sem lhe pagar o preço, só poderá o consignante promover a resolução do negócio ou a sua execução, mas não lhe será assegurada a simples restituição da coisa.
Convém destacar que o consignatário deve manifestar o seu interesse na coisa dentro do prazo assinado no contrato, pois não lhe será permitido, vencido o prazo, fazer a opção com a qual o consignante já não esperava e talvez já não tivesse interesse.
Importa assinalar, igualmente, que o art. 537 do CC permite que o consignatário faça a comunicação da restituição ao consignante. É espécie de resilição ou denúncia unilateral do contrato. Se a comunicação foi feita dentro do prazo do contrato, ainda que a restituição material se faça depois, não está o consignatário obrigado a pagar o preço. Nesse ponto o legislador brasileiro avançou, pois o CC Italiano não prevê a possibilidade de simples comunicação com o efeito que deve ser reconhecido a essa manifestação da vontade.
Questão interessante se refere ao momento em que deve ser feito o pagamento do preço estimado caso vendida a coisa antes de vencido o prazo da consignação. Não havendo disposição a este respeito no contrato, o preço deverá ser pago imediatamente, pois não há nenhuma autorização legal para a retenção do preço pelo consignatário. De outra forma o contrato estimatório seria convertido em mútuo, que não foi objeto da vontade das partes.
O consignante não pode dispor da coisa enquanto ela não lhe for restituída ou comunicada a sua restituição (art. 537). Como o objeto do contrato estimatório é coisa móvel, cuja propriedade só pode ser transferida pela tradição, o consignante sem a posse direta da coisa não terá meios para dispor da coisa e nem poderes para fazê-lo, porque outorgou o poder de disposição ao consignatário. Ainda que o faça, a alienação contratada não prejudicará o consignatário ou o terceiro ao qual o consignatário alienou, porque autorizado a dispor da coisa e entregá-la ao adquirente.
A lei brasileira deixou de repetir, contudo, importante disposição encontrada na lei italiana. Declara o art. 1.558, do Código Civil Italiano, que são válidos os atos de disposição realizados por aquele que recebeu a coisa. Com isso, o descumprimento do contrato estimatório, não poderá prejudicar a validade do negócio realizado com terceiro, pois o consignante terá apenas um crédito a exigir do consignatário, sem qualquer direito sobre o bem, agora nas mãos de terceiro.
A omissão da lei brasileira a esse respeito pode criar incerteza e insegurança quanto ao poder de disposição do consignatário, que realiza o negócio em seu nome e não em nome do consignante. Ele não é representante do consignante no negócio, o que reforça a interpretação no sentido da validade do negócio de alienação. Em nome da segurança e da estabilidade das relações jurídicas a interpretação deverá ser feita no sentido de dar valor aos atos de disposição praticados pelo consignatário, salvo quando comprovada a má-fé do terceiro.
Consequentemente, o consignatário, que contrata em nome próprio com terceiro, responde perante o adquirente pelos vícios redibitórios e pela evicção, ressalvado o direito de regresso contra o consignante. Não se afasta, contudo, a responsabilidade direta do consignante, perante o terceiro adquirente, em razão da evicção. Cabe lembrar que a doutrina sustenta a possibilidade do adquirente se voltar diretamente contra o alienante anterior pela evicção. Essa possibilidade foi expressamente admitida pelo originário art. 456 do CC, hoje revogado pelo NCPC.
Pode ocorrer a alienação, perda ou deterioração do bem enquanto estava sob a posse do consignatário. Nesse caso, ao consignante se constitui um crédito contra o consignatário, caso não prefira, e a escolha é sua, receber a coisa como está e reclamar indenização. Tudo se resolve com as regras da obrigação de restituir (arts. 238-240, CC).
Outra questão diz respeito à falência do consignatário. A coisa deverá ser restituída ao consignante se ainda não vendida a terceiro ou se o consignatário ainda não havia manifestado a sua aceitação. Todavia, se já vendida a coisa ou se aperfeiçoada a compra com a aceitação do consignatário, o consignante deve ser reconhecido como simples credor da massa, não lhe assistindo direito de obter a entrega do dinheiro (VITTORIO NEPPI). Outra solução importa em reconhecer ao consignante privilégio que ele não tem na falência, em detrimento da igualdade de tratamento dos credores no concurso.
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça decidiu de forma diversa: "Assim, se a recorrente vendeu as mercadorias entregues em consignação pela recorrida antes da decretação da sua falência e recebeu o dinheiro da venda também antes da quebra, inclusive contabilizando-o indevidamente, conforme reconhecido na sentença, deve agora devolver o valor devidamente corrigido, pois já deveria tê-lo feito antes da quebra, já que não tinha disponibilidade nem propriedade do dinheiro da venda, que era por contrato da recorrida. A situação do consignante é de credor reivindicante e não a de simples credor quirografário" (REsp. n. 710.658/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 26/09/2005).
Na próxima semana será publica a terceira e última parte, incluindo a bibliografia referida.