Pessoa jurídica, representação legal e sistema jurídico
quinta-feira, 22 de abril de 2021
Atualizado às 08:36
Introdução
A Parte geral do Código Civil aplica-se a todos os ramos do Direito. Dispõe sobre as Pessoas, os Bens e os Fatos Jurídicos. O tratamento jurídico da Pessoa natural é o mais importante tema do Direito, pois o centro e o vértice dele é o ser humano. Humano, social, com necessidades a serem satisfeitas por bens espirituais e materiais, o que se dá com a projeção de cada um no seu agrupamento, exteriorizando as condutas ativas e omissivas que, reguladas pelo Direito, classificam-se como fatos jurídicos. A pessoa natural, física, muitas vezes, precisa da cooperação de outra ou de outras pessoas físicas, para a realização de finalidades comuns, associando-se entre elas e, assim, formando a pessoa coletiva que, por sua vez, assume personalidade jurídica própria, distinta da personalidade jurídica das pessoas físicas que a compõem.
A pessoa natural, física, é o "indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, de autoconsciência, de comunicação e de autotranscendência".1 "Entre todos os seres que vivem na Terra, só o homem é pessoa. Uma das notas da pessoa é a liberdade. Com a liberdade, o homem escapa ao reino da necessidade, em que estão inseridos, sem possibilidade de o transcender, os vegetais e os animais".2 A pessoa jurídica, coletiva, é a reunião desses indivíduos, harmonizando as potencialidades - espirituais e materiais - de cada um deles para, segundo regras gerais e específicas, conquistar um bem da vida, no exercício da personalidade própria desse ente moral coletivo, de forma que a vontade da pessoa jurídica é a vontade autônoma dela pessoa jurídica, distinta da vontade de cada pessoa natural que a integra.
A pessoa natural é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º e segs., CC). Segundo o direito positivo, adquire personalidade civil com o nascimento com vida.3 A pessoa coletiva tem personalidade jurídica própria, é capaz de direitos e obrigações na vida de relação, tem existência legal a partir do registro dos atos de sua constituição (art. 40 e segs., CC) que, por sua vez, disporão sobre o modo "porque se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente" (art. 46, inc. IV, CC).
Tanto são distintos os direitos e as obrigações da pessoa física e do ente coletivo que a lei civil, expressamente, consagra que o exercício da personalidade jurídica pela pessoa moral não implica a responsabilidade das pessoas físicas, claramente distinguindo-as daquele e, somente por exceção, na hipótese de abuso da personalidade jurídica, cuidará da desconsideração da personalidade jurídica, em face de pessoas físicas determinadas e por atos concretos e identificados (arts. 47 e 50, CC).
Assim como a pena criminal não ultrapassa a pessoa do condenado,4 a infração civil é reparável pela pessoa física ou jurídica que participou do negócio jurídico descumprido; a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com os patrimônios das pessoas físicas que a compõem.
Essa regra admite exceção que, como toda excepcionalidade, deve ser interpretada restritivamente,5 e nos termos de um preceito legal promulgado; justifica-se a exceção porque algumas pessoas físicas podem se valer da pessoa jurídica que integram para praticar iliceidades; essa a "ratio legis" do instituto da desconsideração da personalidade jurídica acolhido pelo Código Civil.6
Esse preceito que agasalha a exceção é bastante claro; em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o juízo natural poderá decidir que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos ao patrimônio particular do administrador ou do sócio da pessoa jurídica.
Somente em caso de mau uso da personalidade jurídica é que se pode aplicar o dispositivo e não qualquer mau uso, mas tão somente aquele derivado de desvio de finalidade ou que implique a confusão dos patrimônios sociais e particulares; abuso caracterizado, isto é, provado;7 a decisão atingirá os efeitos de relações jurídicas concretas e delimitadas, causadas por sujeitos identificados que perpetraram o abuso8 e, sobretudo, fundamentará exaustivamente o seu conteúdo e especificará as partes afetadas.
Portanto, pessoas físicas podem se reunir a outras pessoas físicas, conjugando esforços pessoais e aplicando recursos materiais, para atingir uma finalidade comum, firmando um ato de constituição que, registrado no órgão competente, dará início à personalidade jurídica desse ente coletivo.9 Esse ato constitutivo, chamado estatuto (associações), contrato social (sociedades simples ou empresárias), escritura pública ou testamento (fundações), especificará o nome, os fins, a sede e o tempo de duração da pessoa jurídica; declarará o nome dos componentes; o modo de administração e quem a representará; a possibilidade ou não de alterar o modo de administração e a forma desta; a assunção ou não de responsabilidade subsidiária pelos membros do ente coletivo; e, por fim, as condições de extinção e o destino do patrimônio (art. 47, CC). O modo de administração e o representante legal da pessoa jurídica são dois temas essenciais à segurança dos negócios.
Modo de Administração. Representação Legal e Sistema Jurídico
As pessoas naturais reúnem-se, formam uma pessoa jurídica com um projeto a ser executado em função de um fim a ser alcançado. A execução desse projeto comum exige a gestão do mesmo, a administração do ente coletivo. O modo - forma, feição ou jeito particular - dessa administração precisa ser estabelecido no respectivo ato constitutivo. Dá-se algo semelhante à execução do plano individual de uma pessoa natural: uma ideia, o jeito de a concretizar, os meios para conseguir o objetivo, os recursos destinados ao projeto e a aplicação da inteligência para obter o conhecimento do objeto e a vontade para o transformar em uma realidade. A pessoa jurídica indicará os órgãos encarregados de cada função, as pessoas físicas que integrarão os mesmos, os limites de suas respectivas atribuições, a maneira de prestar contas de cada atuação e o modo de as exigir. A natureza familiar ou profissional do ente coletivo também causa importante feição ao empreendimento comum, pois as relações de parentesco e a afetividade, por mais objetividade que se proponha, acabam moldando a administração da pessoa jurídica.
É vital a forma de apurar a vontade da pessoa jurídica, pois a expressão volitiva de cada membro - pessoa física - precisa ser cuidadosamente avaliada e, conjugada às manifestações dos demais componentes, proclamar a vontade uniforme do ente coletivo, desaparecendo as posições individuais, emanando a vontade concreta da pessoa jurídica não como simples somatório de vontades dos integrantes, mas vontade própria do ente coletivo. Essa vontade da pessoa jurídica, em regra, é apurada nas assembléias dos membros, ordinárias ou extraordinárias.
A unidade, a harmonia da pessoa jurídica depende muito do traçado desse modo de administração e, principalmente, do perfil do administrador. A sua capacidade de conhecer o projeto comum, executá-lo com eficiência e ética, voltado ao fim colimado, redunda no sucesso da empreitada comum. Além dos muitos predicados que a realização de qualquer empreendimento demanda, a capacidade de liderança é imprescindível para o bom exercício da função e, por outro lado, a capacidade de obediência dos demais membros é essencial para evitar a dissipação de forças, a perda da finalidade, a administração caótica e ruinosa. Nesse sentido, a hierarquia é muito importante, na medida em que colabora para prestigiar o líder e centrar os liderados nas suas respectivas áreas de atuação. Projeto, seres humanos, meios e fins, vinculados ao modo de administração capaz de outorgar a todos a satisfação de suas necessidades, construindo uma sociedade livre, justa e solidária, com o emprego da pessoa jurídica como realidade do Direito para manter a pessoa humana no centro e no vértice da vida.
A pessoa jurídica movimenta-se no mundo dos negócios e uma pessoa física representará aquela. O representante, pessoa física, age em nome da pessoa jurídica. Os atos do representante legal beneficiam e obrigam o ente coletivo. A existência, a validade e a eficácia da representação é matéria do direito privado.
Como o Direito é um sistema e a sua especialização em diversos ramos jurídicos é para a melhor compreensão do próprio Direito, a instituição do representante legal da pessoa jurídica deve observar a lei civil e os atos constitutivos daquela. E os diversos ramos do Direito, por sua vez, sempre que disciplinarem a representação legal devem observar os princípios e as regras do Direito Privado.
Enfatizando, se a parte geral do Código Civil é um conjunto de normas que regula todo o Direito em vigor, a noção de sistema é essencial para que a ciência jurídica permita a justa atribuição do devido a cada um.
"Em sentido amplo, sistema é visto como esse conjunto de componentes que mantêm um nexo entre si em razão do seu objetivo global. Trata-se de um complexo de mecanismos, procedimentos e normas interligadas que, funcionando como uma estrutura organizada, gera um modelo ou modo de pensar".10 Essa noção abrange os sistemas políticos e jurídicos.11 "No sistema, há uma estrutura operacional integrada por entes distintos e com funções diversas, vinculados pelo fim comum a ser alcançado, comunicando-se entre si, justificados por uma necessidade externa a eles e que se satisfazem com a resposta à demanda que os ativa".12 É muito mais do que uma operação mecânica. É uma concepção orgânica, essencial à preservação da unidade. É mais do que a estrutura organizada, pois há a finalidade comum, a consecução do bem de todos.
Preleciona-se, que Kant, "partindo da natureza 'arquitetônica' da 'razão' (Vernunft), afirma que sistema é uma relação entre o todo e as partes, onde a retirada ou acréscimo de uma só parte destrói ou modifica o todo como unidade orgânica. Aqui se abandona o modelo mecânico, substituído pelo orgânico, o qual pressupõe uma força única, central, interna, agindo de modo teleológico, diferente da mera soma das partes do sistema. Um tal sistema não poderia ser desmontado e montado de novo, pois ao fazê-lo, algo se perderia, pois o todo precede as partes sendo mais que a simples agregação de elementos".13
Veja-se que o Direito Processual Civil disciplina o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 e segs., CPC), exigindo o preenchimento de requisitos para a instauração desse procedimento (art. 133, § 1º, CPC) e, além disto, a demonstração prévia dos pressupostos legais específicos desse instituto (art. 134, 4º, CPC). Contudo os requisitos do modelo legal do incidente estão no Código Civil, isto é, o abuso da personalidade jurídica, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (art. 50, CC). Sem a caracterização do abuso da personalidade jurídica, o incidente é um adjetivo sem substantivo. Sem o devido procedimento legal, o abuso da personalidade jurídica é substantivo sem adjetivo. Juntos, em harmonia, integrando o sistema jurídico, tutelam a autonomia da vontade do ente coletivo e, nos casos de abuso no exercício da personalidade jurídica, permitem a desconsideração desta, tutelando os prejudicados com o meio para a proteção de seus interesses e a pessoa jurídica com um procedimento devido para que se defenda o uso e não o alegado abuso da personalidade jurídica.
E o sistema, bem interpretado, funciona em favor da justiça. Há recente reforma criminal que condiciona o exercício da ação penal à representação da vítima nos casos de estelionato (art. 171, § 5º, CP). Vítima é quem sofre a ação criminosa. A pessoa jurídica pode ser vítima de estelionato. A representação para a persecução do autor de estelionato contra a pessoa jurídica depende de manifestação da vontade do representante legal dessa pessoa jurídica patrimonialmente ofendida (art. 24, caput, CPP). O representante legal da pessoa jurídica é a pessoa física que, por seu ato constitutivo, na forma da lei civil, foi incumbido dessa representação do ente coletivo. Integram-se, no sistema jurídico, o Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
Os membros da pessoa jurídica que não estiverem satisfeitos com a instituição e a atividade do representante legal dela, na forma da lei civil e do ato constitutivo do ente coletivo, poderão exercitar a pretensão de afastar este representante legal, mediante ação própria, no juízo cível, especializado ou comum, sempre cível, competente para a aplicação do Direito Civil. O juízo penal não é competente para decidir sobre a capacidade, investidura e atuação do representante legal da pessoa jurídica. Todavia, e se volta à noção de sistema, o juiz criminal não ficará sem poderes jurisdicionais para se instruir e decidir a questão, pois há regra ensejando a suspensão do processo criminal até à decisão do ponto na justiça cível (art. 92 e segs., CPP).
É o sistema jurídico a permitir que a pessoa jurídica opere na plenitude de suas potencialidades, assegurando a unidade e a harmonia interna do ente coletivo, o respeito à liderança e a outorga de segurança jurídica a todos com o prestígio dos atos do representante legal que, todavia, na hipótese de abuso, poderá ser removido, segundo o devido processo legal, no juízo natural da causa, cível.
Conclusão
A parte geral do Código Civil disciplina as relações jurídicas do Direito em seu todo, aplicando-se aos diversos ramos jurídicos. O tratamento legal da pessoa é vital para a ciência jurídica e para a sociedade. É cada vez mais importante a ação das pessoas jurídicas no mundo em evolução. A segurança jurídica depende da disciplina no modo de administração dos entes coletivos, da formação da vontade destes e da instituição e poderes de seu representante legal. A noção de sistema é essencial para que o Direito realize a Justiça. Os diversos ramos jurídicos, integrados no sistema e operando segundo os seus princípios e regras, torna funcional e segura a vida das pessoas físicas e jurídicas, o que contribui para o bem comum.
Referências bibliográficas
Battista Mondin, O homem, quem ele é?, São Paulo, Paulus, 1980.
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980.
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Jaques de Camargo Penteado, Acusação, Defesa e Julgamento, Campinas, Millennium, 2001.
__________. O Devido Processo Legal e o Abortamento in "A vida dos Direitos Humanos", Coords. Jaques de Camargo Penteado e Ricardo Henry Marques Dip, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
Osvaldo Ferreira de Melo, Dicionário de Direito Político, Rio de Janeiro, Forense, 1978.
Rafael Gomes Perez, Problemas morais da existência humana, Lisboa, Cas, 1983.
Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976.
__________
1 Battista Mondin, O homem, quem ele é?, São Paulo, Paulus, 1980, p. 303.
2 Rafael Gomes Perez, Problemas morais da existência humana, Lisboa, Cas, 1983, p. 31.
3 Sustento que a personalidade jurídica da pessoa natural começa no instante de sua concepção, segundo a mais rigorosa doutrina: "'aceptar el hecho de que una vez producida la fertilización há surgido un nuevo ser humano, ya no constituye una cuestión de gustos u opiniones. La naturaleza humana del ser humano, desde la concepción a la vejez, no es una hipótesis metafísica, sino una evidencia experimental'. Son palavras de Jerome Lejeune(...). E, para não deixar cousa alguma sem esclarecer, acrescentou Lejeune: 'No es la vida que comienza en la concepción, es la vida del nuevo ser. O sea que cada individuo en la cadena de la generación tiene un comienzo muy preciso... En el caso de este individuo determinado, que más tarde reconoceremos, estamos seguros de que su propria vida há comenzado cuando há sido concebido, y no hay escapatorio científica alguna al respecto'. Trata-se da posição que conta com o prestígio de Jean Rostand, Prêmio Nobel de Biologia que (...) afirmou: 'Existe un ser humano desde la fecundación del óvulo. El hombre, todo entero, ya está en el óvulo fecundado'" (Jaques de Camargo Penteado, O Devido Processo Legal e o Abortamento in "A vida dos Direitos Humanos", Coords. Jaques de Camargo Penteado e Ricardo Henry Marques Dip, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1999, p. 147).
4 Art. 5º, inc. XLV, CF.
5 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 225.
6 Art. 50. Aplica-se esse dispositivo legal porque as partes são pessoas jurídicas e não se identifica relação de consumo, mas negócio jurídico que se enquadra na codificação civil. "Ao caso não se aplicam os dispositivos do Código do Consumidor, pois não existiu qualquer relação de consumo entre os litigantes" (RT 791/258).
7 "Para a admissibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, visando o comprometimento de bens particulares dos sócios por atos praticados pela sociedade, é necessário que haja prova de que a empresa tenha sido utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito" (RT 784/282).
8 "De fato, a aplicação da disregard doctrine tem de ser apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social da pessoa jurídica, com proveito ilícito dos sócios. A existência de ações e de protestos, por si só, não a autoriza, tampouco a não localização de bens a penhorar. Aliás, nem mesmo a falência da sociedade seria suficiente para justificar necessariamente essa aplicação (Fábio Ulhoa Coelho, Código Comercial e legislação complementar anotados, Saraiva, 1995, p. 211)" (RT 791/258).
9 "A capacidade jurídica adquirida com o registro estende-se a todos os campos do direito, não se limitando à esfera patrimonial" (Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. 1, Parte Geral, Kindle, 2019, posição 4742).
10 Jaques de Camargo Penteado, Acusação, Defesa e Julgamento, Campinas, Millennium, 2001, p. 3.
11 Osvaldo Ferreira de Melo, Dicionário de Direito Político, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 118.
12 Jaques de Camargo Penteado, op et loc cit.
13 Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, p. 12.