Os contratos paritários na Teoria Geral dos Contratos - Uma visão crítica
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
Atualizado às 09:19
Paritário, do latim paritas, que significa semelhança, paridade, qualidade do que é par e igual, é expressão nova no vocabulário do jurista e na classificação dos contratos. Foi introduzida no Código Civil pelo art. 421-A, com a redação que lhe deu a lei 12.874/2019, que Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
A referência aos contratos paritários já era encontrada na doutrina, inclusive estrangeira, e na jurisprudência, e parece que ganhou foro quando surgiu o Código Civil de 2002, com a unificação do Direito Privado, com exceção das relações de consumo.
O Direito Contratual passou a olhar para os Códigos (Civil e Consumidor) e ver dois tipos de contratos, dividindo, ou separando, o universo contratual entre os contratos clássicos e liberais, que se passou a identificar como paritários, e os contratos da relação de consumo. Os contratos paritários seriam aqueles em que as partes se apresentam em condições de igualdade, são pares, e as negociações entre elas se dão com liberdade e no pleno exercício da mais ampla autonomia privada, resultando em um contrato que reflete mais fielmente a vontade dos contratantes.
De outra parte, as relações contratuais de consumo, caracterizadas pela adesão, se dão entre partes que se apresentam de forma assimétrica, não em razão propriamente da diferença econômica entre elas, mas em razão do déficit informacional, que caracteriza especialmente a vulnerabilidade do consumidor.
Esta ideia da existência de duas realidades contratuais, paritária e não paritária (de consumo), foi reforçada equivocadamente pela redação que se deu ao art. 421-A, do Código Civil: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção...".
O Código Civil, a partir desta inovação, colocou os contratos civis e empresariais, pelo gênero, no mesmo plano jurídico, como paritários, presumindo-se em relação a ambos a simetria de forças que inibe a intervenção judicial e fortalece a obrigatoriedade das declarações das partes.
Esta intervenção no Código Civil animou esse equivocado entendimento, que era conhecido desde a unificação do Direito Privado, no sentido de colocar todas as realidades contratuais nos dois modelos de regime. De um lado, o regime que valoriza a autonomia contratual e a intervenção mínima do Estado nessa relação (contratos civis e empresariais), e, de outro lado, o regime que reconhece a assimetria de forças e que promove a intervenção máxima na relação das partes (contrato da relação de consumo).
Este reducionismo não permite identificar com liberdade as relações contratuais que sofrem interferências decorrentes da dependência econômica e da deficiente informação, verdadeira causa de assimetria (ao lado da assimetria de poder de negociação e de poder de imposição), o que também se verifica nos contratos civis e empresariais. Por conta desta visão parcial das realidades contratuais, podemos ser levados a entender que pela qualidade das partes, e não pelo conteúdo e natureza contratual, existe uma relação contratual entre pares, semelhantes e iguais, quando nem sempre isto ocorre.
Na jurisprudência se verifica facilmente o reflexo dessa polarização. Quando não se identifica no contrato uma relação de consumo, ele é reputado paritário, e neste caso não se pode colocar em dúvida o cumprimento das declarações das partes, aplicando-se interpretação infensa à intervenção corretiva de abusos e desequilíbrios, deixando de dar valor à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao equilíbrio das prestações.
Pode-se observar de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça que essa interpretação é comum. No julgamento de ação revisional fundada na imprevisão, da compra e venda de fertilizantes, sujeita à variação cambial, afirmou-se na ementa do julgado: "Não envolvendo relação de consumo, o contrato objeto do pedido de revisão, mas, sim, revelando-se paritário, convém que se submetam as partes aos termos do acordo celebrado, não decorrendo da variação cambial verificada base para a revisão do negócio entabulado" (AgRg no REsp n. 1.518.605-MT, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe. 12.04.2016).
Em outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, se decidiu que a cláusula resolutiva expressa em contrato de promessa de compra e venda não opera efeitos automáticos, tantos nos contratos de adesão, como nos contratos paritários, indicando também a ideia de que existem apenas duas categorias de contratos, e nesse caso de um lado os paritários e de outro os de adesão. Na ementa do julgado se consignou o seguinte: "Esclareça-se, quanto ao tema, que a jurisprudência desta Corte Superior foi firmada não apenas com base em situações nas quais houve a pactuação de contratos de adesão, havendo precedentes ancorados em casos que versam sobre contratos paritários." (AgInt no AgREsp n. 1.170.673-RS, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe. 18.05.2018).
O Superior Tribunal de Justiça decidiu, em outro caso, pela validade da eleição de foro estrangeiro em contrato firmado por empresa de artigos esportivos e jogador de futebol, considerando a relação simétrica e paritária, e não uma relação de consumo, como se houvesse somente duas realidades. Na ementa do julgado se assentou o seguinte: "Em sendo paritária e, assim, simétrica a relação negocial estabelecida entre conhecido jogador de futebol e empresa multinacional do ramo dos artigos esportivos, contrato cujo objeto, ademais, relaciona-se à cessão dos direitos de uso de imagem do atleta, não é possível qualificá-la como relação de consumo para efeito de incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor." (REsp n. 1.518.604-SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe., 29.03.2016).
Neste último caso, a decisão afasta a relação de consumo e conclui: "Parte-se, assim, da premissa de que o contrato é paritário ... A relação é, assim, disciplinada pelas normas de Direito Civil, não se tendo, todavia, acerca da cláusula de eleição de foro, manifestado afronta a qualquer dispositivo de lei que não seja o art. 101 do CDC, razão por que estou em negar provimento ao recurso no que respeita".
Não se questiona aqui o acerto destas decisões. A nossa observação recai sobre a argumentação e a forma de pensar as questões que se apresentam no Direito Contratual. A partir do entendimento de que há somente duas realidades contratuais, o jurista poderá simplesmente decidir por um regime ou outro, e não atentar para situações diversas.
A ideia de que pode existir "paridade" nos contratos, no sentido de que as partes são "pares" e "iguais", não nos parece a mais adequada. Não há, evidentemente, paridade entre o jogador de futebol e a poderosa empresa de artigos esportivos e patrocinadora dos grandes eventos do esporte mundial. Nem parece que a expressão é utilizada nesse sentido nas decisões judiciais. Há uma questão semântica no seu uso que pode dificultar a identificação de abusos e de dependência econômica nas relações contratuais, assim como pode acolher desequilíbrios inaceitáveis. Parece também equivocado contrastar o chamado contrato paritário com o contrato de adesão, porque o resultado poderá igualmente indicar que o contrato é paritário quando não é de adesão.
A cláusula de eleição de foro ou de compromisso arbitral em contratos entre empresas, que apresentam posição de força diversa - assimétricas (como pode ocorrer, por exemplo, nos contratos de franquia, nos contatos de distribuição, nos contratos de concessão comercial e nos contratos de representação comercial), pode representar abuso, quando incluídas com o propósito de inibir a parte mais fraca de demandar contra a outra. Olhando para essa relação interempresarial com a visão binária das relações contratuais, a solução será pela validade desta cláusula, porque se a relação não é de consumo, o contrato deve ser entendido como paritário.
Há algum tempo escrevi sobre o Terzo Contratto1, expressão cunhada pelo italiano Roberto Pardolesi2 no prefácio do livro de Giuseppe Colangelo3, que sustenta a existência de uma "terra do meio" entre o contrato clássico liberal e o contrato da relação de consumo, passando-se a observar que a contratação entre duas empresas, quando uma delas é dependente economicamente da outra, reflete uma categoria de contrato que não se identifica com o contrato clássico (primeiro contrato), aquele caracterizado pela presença de partes igualmente informadas e com livre capacidade de escolha. Essa contratação também não se identifica com o contrato de consumo (segundo contrato), que é marcado pela presumida vulnerabilidade de uma das partes em razão essencialmente da deficiência de informação. Cuida-se, de acordo com Pardolesi, de uma realidade diversa - um terceiro contrato (il terzo contrato) -, para a qual o regime dualista apontado não oferece resposta adequada. É um novo personagem, afirma, que surge no horizonte e que deve ser visto muito proximamente4, como parte da fenomenologia e disciplina atual dos contratos entre empresas5.
Em geral a doutrina hoje classifica os contratos, de forma unitária, a despeito da variação designativa, em contratos business-to-business (B2B) e business-to-consumer (B2C), contratos negociados e não negociados, contratos individuais e estandardizados, contratos paritários e não paritários, e contratos com simetria ou não de poderes, revelando, fundamentalmente, a distinção entre a contratação individual e a contratação de massa, bem como a distinção entre a contração negociada e a contração não negociada6.
Bem anota Giuseppe Amadio que a classificação referida, assim como a norma que regula a respectiva contratação, tem como objeto de observação a atividade (não somente a posição ou o papel das partes no negócio, quanto à modalidade do exercício da autonomia negocial) e a efetividade da contratação, considerando no plano normativo o confronto entre o contrato de direito comum e o contrato de consumo. Do ponto de vista teórico, a distinção se faz entre o contrato que é celebrado com ou sem acordo de vontades7.
A classificação feita pela doutrina nestes termos passa em boa medida pela forma de exercício da autonomia privada e se reflete na dualidade de tratamento da tutela contratual. Esse dualismo, entre contrato de consumo e contrato de direito comum, revela que a lei labora: (i) de um lado, com um modelo de contrato inteiramente negociado, entre partes que se encontram em condição de igualdade, e que reclama o máximo de liberdade e o mínimo de intervenção do legislador e do Juiz, em favor da autonomia privada; (ii) de outro lado, com um contrato (de consumo) no qual se verifica uma disparidade de instrumentos e de informações, não negociado plenamente e marcado pela assimetria de forças, que reclama o máximo de controle do legislador, especialmente no momento formativo, e admite em grau maior a intervenção judicial.
Quando se unificou o direito privado, o que ocorreu no Brasil com o Código Civil de 2002, o regime geral dos contratos (empresariais ou não) também foi unificado. Destacou-se desse regime geral a contratação nas relações de consumo, o que polarizou o direito contratual em duas categoriais bem definidas. Sucede que a afeição do jurista à categorização do direito o levou a perder a percepção para outras realidades não compreendias nos modelos conhecidos, o que se refletiu no paradigma do direito contratual orientador da tutela adequada.
Se alguma restrição se pode fazer no campo acadêmico a uma classificação dogmática do contrato como supõe a doutrina de Pardolesi8 (embora não é nesse sentido exato o seu pensamento), é inegável o fato de que essa doutrina bem identificou a existência de realidades contratuais estranhas ao binário regime jurídico que se tem aplicado a todas elas, indistintamente.
Esses dois polos definidos no direito contratual não alcançam, seguramente, todas as categoriais contratuais que, em razão das suas especificidades, não se ajustam a esse dualismo9. Esse reducionismo das realidades contratuais tem um efeito perverso na tutela que exigem os desequilíbrios entre as vantagens e benefícios decorrentes da relação contratual, sobre a qual deve se concentrar a visão do jurista. Essa forma de ver e pensar o Direito Contratual, que trabalha somente com uma parte da sua fenomenologia, pode causar o equivocado entendimento, para além de outras distorções, de que, como bem anotou Anderson Schreiber, "os contratos empresariais representariam, desse modo, a última praia do liberalismo jurídico, um setor em que a liberdade das partes é tendencionalmente plena e a vontade dos contratantes merecem mais proteção que os valores solidaristas que norteiam a ordem jurídica brasileira. Tal abordagem exprime grave equívoco"10.
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1 Il Terzo Contratto - Surge uma nova categoria de contratos empresariais? Publicado em 30 de julho de 2018, em três partes.
2 Na página eletrônica de LUISS - Università Guido Carli, pode ser encontrado o link para "Una postilla sul Terzo Contrato", de Roberto Pardolesi, ou diretamente aqui.
3 L' abuso di dipendenza economica tra disciplina della concorrenza e diritto dei contratti. Un'analisi economica e comparata. Editora Giappichelli, 2004.
4 Gregorio Gitti e Gianroberto Villa. Il Terzo Contratto. (Introduzione). Ed. il Mulino, 2008, p. 7.
5 Vale registrar a observação de Rita Marsico: "Trattasi di una recentissima fattispecie dai contenuti normativi ed applicativi ancora incerti e che non ne garantiscono, ad ora, portata dogmatica, nonostante stia acquisendo sempre maggiori consensi nel panorama civilistico" (Le nuove frontiere della dottrina civilistica: il terzo contratto. Mesmo quando não invocada a nova figura, a doutrina reconhece a existência de um vazio na hipótese de um contrato entre empresários. Ernesto Capobianco, justifica esse vazio pelo fato de que, diante de uma relação contratual entre empresas, sujeitos profissionalmente organizados e melhores árbitros dos próprios interesses, não haveria de se imaginar necessária a intromissão judicial para decidir sobre a justiça do contrato (Lezioni sul contrato. G. Giappichelli Editore - Torino, 2014, p. 172).
6 Giusepe Amadio. Il terzo contratto. Il problema. Op. cit., p. 10.
7 Op. cit., p. 10-11.
8 Vincenzo Roppo prefere colocar todos os contratos os assimétricos, seja decorrente de uma relação de consumo, ou de uma relação entre empresas, quando uma é dominante e outra dependente, num único e homogêneo paradigma: contrato assimétrico. Todavia, admite rever essa posição se encontrar diferenças de paradigma normativo entre os contratos de relação de consumo e os contratos entre empresas a justificar uma autônoma categoria de terzo contratto. (Il contrato del duemila. Terza Edizione. Torino : G.Giappichelli Editore, p.120-124). Também Guido Alpa prefere falar em contrato assimétrico em geral, quando a parte é exposta ao poder econômico da outra (Le stagioni del contratto. Bologna : Il Mulino, 2012, p. 142-143).
9 Bem a propósito a precisa observação de Eros Roberto Grau e Paula Forgioni no sentido de que "o contrato não é um instituto único, porém um feixe de institutos jurídicos (os contratos)", de forma que as regras aplicáveis aos contratos são diferentes (O Estado, a empresa e o contrato. Malheiros Editores, 2005, p. 16).
10 Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 441.