O usufruto de participações societárias e o planejamento sucessório
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
Atualizado às 08:01
O usufruto é originário do direito romano. Mais recente que as servidões prediais, "surgiu por obra da jurisprudência, no século II a.C., quando se difundiu em Roma o casamento que não é acompanhado da conuentio in manum. Neste, ao contrário do que ocorria no casamento a que se segue a conuentio in manum, a mulher não ingressava na família do marido, e, consequentemente, não se tornava herdeira dele. Muitas vezes, enquanto vivo o marido, a mulher dispunha de recursos que ele lhe propiciava, mas, quando ele falecia, ficava reduzida à miséria. Para obviar a isso, surgiu o usufruto, possibilitando-se assim que o marido, antes de morrer, e sem nomeá-la, no testamento, herdeira, em prejuízo dos filhos, a designasse usufrutuária de certos bens. O usufruto, portanto, nasceu com certo caráter alimentício"1.
Já no período clássico do direito romano, o usufruto se distinguia do direito de propriedade e era considerado como direito sobre coisa alheia (ius in re aliena). No direito de Justiniano o usufruto, até então independente das servitutes, foi aproximado das servidões prediais e enquadrado em categoria nova, denominada servidões pessoais (servitutes personarum)2.
Explica Cunha Gonçalves que "esta expressão de servidão pessoal atravessou os tempos até o século XVIII, em que o Código civil da Prússia a pôs de parte, classificando o usufruto como direitos de gôzo; e em França, ao tempo da elaboração do respectivo Código civil, depois que a Revolução Francesa abolira todos os serviços pessoais de origem feudal (corvéss) e abolida estava na Europa a escravidão, aquela expressão pareceu obnóxia, e, por isso, dela se não encontra qualquer traço no Código civil francês. Todavia, os jurisconsultos modernos continuam a usar e até defendem a expressão servidões pessoais, que nos parece inadmissível e errônea, porque o usufruto não recai nas pessoas, mas sim nas coisas"3.
O Código Civil de 2002, com mais técnica, se afastou do romanismo e regula simplesmente as "servidões", não mais adjetivadas.
É interessante notar como um modelo antigo de direito privado, que nasceu para atender a um determinado fim, amparar a mulher sem direito à herança na morte do marido, foi utilizado modernamente para outra finalidade, confirmando uma espécie de característica genética do direito privado de se amoldar às novas necessidades sociais4.
Com o tempo surgiu o usufruto oneroso e sobre qualquer coisa, como verdadeiro negócio jurídico. A ideia de fruição de um bem, como dono, sem adquirir a sua titularidade, foi levada a outras relações. Hoje é comum estabelecer usufruto sobre quotas e ações de empresas, como meio de planejar a sucessão.
Pretendemos abordar algumas questões que envolvem essa nova espécie de usufruto, ou talvez melhor fosse dizer desse novo objeto do usufruto, e a sucessão de partes societárias.
Geralmente o usufruto de participações societárias é utilizado na criação de uma Holding5. É o caso da pessoa que formou ao longo da vida um patrimônio e que deseja planejar a sua sucessão, com o propósito de prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, antecipar a herança, e ao mesmo tempo melhorar a administração dos seus bens, com a redução de tributos. É a Holding patrimonial.
A Holding (a designação vem de to hold, que na língua inglesa quer dizer manter, controlar, segurar, etc.) foi prevista no art. 2º, § 3º, da Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), que estabeleceu: "A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais".
A interpretação mais abrangente do objeto da Holding, que não se limita a deter participações em outras sociedades, admitiu a chamada Holding patrimonial, que tem por finalidade deter exclusivamente patrimônio. Esse tipo de sociedade, também muito empregado no controle de outras sociedades empresárias, bem serviu ao propósito de planejar a sucessão.
O capital da Holding é integralizado com imóveis ou a participação em outras sociedades (quotas e ações). O instituidor divide o capital em quotas ou ações, dependendo do tipo societário que escolheu (sociedade limitada, unipessoal, EIRELI ou sociedade anônima) e cede aos herdeiros, reservando-se para ele o usufruto vitalício.
A Constituição Federal assegura imunidade na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital (art. 156, § 2, I), o que facilita a criação da Holding. Recentemente o Supremo Tribunal Federal apreciou o Tema 796 de Repercussão Geral e fixou o entendimento de que "A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado". Essa decisão exige a maior atenção hoje na criação da Holding6.
Para a constituição de uma Holding patrimonial com a finalidade sucessória são necessários outros cuidados7. É importante assegurar expressamente ao usufrutuário o exercício exclusivo de direitos políticos e econômicos, sobre as quotas ou ações, e delimitar os poderes de administração decorrentes, para evitar que eventuais conflitos de interesses entre o usufrutuário e o herdeiro titular da propriedade das quotas e ações venham a ocorrer.
É importante estabelecer, expressamente, no caso de Holding constituída a partir da cessão das quotas pelos cônjuges ou companheiros em favor dos herdeiros, que a morte de um dos usufrutuários não extingue a sua parte no usufruto. É o chamado direito de acrescer a parte do usufrutuário morto, previsto no art. 1.411 do Código Civil.
As quotas podem ser gravadas com cláusula de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, protegendo-se da ação de futuros credores e da indesejada comunicação patrimonial pelo casamento dos herdeiros.
A constituição da Holding não pode ocorrer em prejuízo de credores do instituidor e, também, não pode resultar em fraude, quando a estrutura societária só existe no papel e no registro. A sociedade constituída deve ter vida, observando as normas contábeis e tributárias.
O usufruto pode ser utilizado também quando ocorre a doação de quotas ou ações. Neste caso não existe uma Holding. O titular das quotas e ações antecipa a legítima com a doação, e reserva a ele o usufruto vitalício. É preciso, também, deixar claro quais são os poderes do usufrutuário a respeito da administração, voto e direito de acrescer. É necessário estabelecer qual será o destino do usufruto se ocorrer a liquidação da sociedade. Não se deve deixar dúvidas sobre a extensão do usufruto em caso de aumento de capital ou subscrição de ações em razão do exercício de preferência. Cabe, também, dizer sobre o direito de retirada do sócio em relação ao usufruto e a participação do usufrutuário em acordo de sócios e acionistas.
Caso a doação de partes societárias ocorra sem reserva de usufruto, é possível estabelecer condição para a doação, exigindo a manutenção de administrador, observância de certas diretrizes da empresa, proibição de distribuição de lucros e dividendos acima de certo limite (evitando a descapitalização da sociedade) e a proibição de investimentos de risco. É possível, neste caso de doação sem reserva de usufruto, condicionar a doação à outorga de mandato irrevogável em favor do doador para administração da empresa, com indicação expressa dos poderes conferidos.
Neste cenário de planejamento sucessório e as empresas há uma particular situação que igualmente exige cuidados. É o caso do titular de participações societárias que, sem recorrer à constituição de uma Holding ou à doação de quotas e ações, pensa nos efeitos da sua sucessão sobre a empresa da qual participa.
É possível incluir no contrato da sua sociedade cláusulas que podem evitar litígio e preservar a empresa. Algumas recomendações podem ser feitas: a) estabelecer quem pode entrar na sociedade no caso da sua morte, restringindo a entrada de incapazes, meeiros, legatários ou herdeiros que não exerçam certa profissão; b) dispor sobre a nomeação e forma de administração da sociedade em caso de ingresso de herdeiros: c) impor direito de preferência para a cessão de quotas e acordo de acionistas para as sociedades anônimas; d) estabelecer o destino das quotas que não admitir ingresso de herdeiros (redução de capital, retenção em tesouraria etc.); e) estabelecer a possibilidade de exclusão de sócio e prever as hipóteses de justa causa (desvio de clientela, violação de sigilo, recusa em assinar documentos etc.); f) estabelecer a forma de apuração e pagamento de haveres (metodologia, juros, correção e parcelamento do pagamento); g) estabelecer claramente quóruns de deliberação e aprovação de matérias.
Essas medidas e outras são muito importantes, especialmente quando o titular de participações societárias estabeleceu múltiplos relacionamento durante a vida, gerando filhos de relações diferentes, quando a possibilidade do litígio entre herdeiros é real, com grave prejuízo para a sociedade.
Procuramos fazer um panorama das questões mais frequentes. Existem muitas outras possibilidades para planejar a sucessão. O usufruto tem se mostrado um instrumento muito útil para esse fim e merece a atenção dos advogados. Em outra oportunidade pretendemos examinar a jurisprudência que se formou a respeito destas questões.
O planejamento sucessório deve ser uma preocupação de todos que desejam prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, conservar empresas, facilitar a sucessão e reduzir custos, mas exige atenção máxima, porque o resultado pode ser indesejado.
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1 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 5ª ed., Rio de Janeiro : Forense, 1983, V. 1, p. 410.
2 ALVES, José Carlos Moreira. op. cit., p. 411.
3 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil. 1ª ed. Brasileira, v. XI, t. I e II. São Paulo : Max Limonad, p. 472.
4 A respeito do usufruto e sua relação jurídica me permitido indicar o que escrevi (Carlos Alberto Garbi. Relação Jurídica de Direito Real e Usufruto. São Paulo : Método, 2008).
5 Sobre Holding e planejamento sucessório vale a consulta à obra de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede (Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. São Paulo : Atlas, 2020.).
6 A tese foi fixada por maioria de votos em julgamento que se concluiu em 04.08.2020. Aguarda-se a publicação do Acórdão e das declarações de voto para o entendimento adequado da decisão.
7 A respeito pode ser consultada a obra de Fernanda Valle Versiani (Usufruto de Participações Societárias. Belo Horizonte : Editora D'Plácido, 2017).