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Alexandre Morais da Rosa assume no TJ/SC

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Atualizado às 10:31

No Ancien Régime o poder estava todo concentrado na figura do rei.1

Talvez na alusão mais marcante dessa concentração do poder, Luís XIV, apelidado de "Rei Sol", chegou a dizer: L'État c'est moi.

A Revolução Francesa, levada a efeito a partir de 05.05.1789, produziu o colapso da monarquia absolutista e, embora tenha sua base no pensamento iluminista, construiu um Estado no qual o poder seguia unificado; e o indivíduo, transformado em cidadão, reinava, cobrando a devida isonomia. Isso se vê pela - quem sabe - primeira lei sobre o processo penal depois da Revolução: a que acabava com a Justiça Senhorial, já em 11.08.1789. Ela era o espelho da monarquia; e mostrava como a chamada nobreza se diferenciava do povo.  

Em tal Estado, contudo, o poder pertencia a ele - o povo - que, por um pacto mítico, construiu-o de modo que aglutinasse todo o poder - recebido do povo -, salvo aqueles inalienáveis em face dos chamados direitos naturais: vida, liberdade e propriedade privada.

A Constituição fixaria a defesa do cidadão - que nela estaria reconhecido como tal -, assim como a estrutura do Estado e a "distribuição" do poder, em que pese uno e soberano. Como ressalta Nelson Saldanha, "O Estado moderno (que é a forma política onde mais caracteristicamente se localiza o problema dos 'poderes'), definido desde seu surgimento como estrutura secularizada e unificada de poder, necessitou da separação dos poderes em determinado momento de sua evolução, por motivos políticos: passagem do absolutismo monárquico absorvente para o liberalismo constitucionalista democratizante."2

 A Constituição, assim, ao organizar os órgãos e funções do Estado - ou da Soberania -, não faz propriamente uma divisão do poder e sim uma divisão da competência e das atribuições. Eis por que, no âmbito do Poder Judiciário, jurisdição é o poder (sempre aquele do Estado) de dizer o Direito no caso concreto, de forma vinculante e cogente, conforme a base oferecida por Chiovenda. Assim, difere-se do Poder Executivo e do Poder Legislativo.

Por outro lado, a competência dos órgãos jurisdicionais (como exercício do poder) vai estritamente delimitada, de modo a que se garanta a imparcialidade do chamado juiz natural, ou seja, o juiz ou juízes competente(s) para o processo. Tudo isso seria mera retórica, porém, se não houvesse liberdade dos juízes no exercício jurisdicional. Tal questão envolve - como se pode perceber - um problema um tanto paradoxal: como ser livre e estar vinculado à lei, começando por aquela constitucional, na qual vem expresso seu próprio poder?

A solução vem por uma questão lógica, ligada ao conceito de independência. Ora, em face da Constituição e demais leis, os órgãos do Estado atuam em conformidade com a lei, logo, sempre que previsto/autorizado por ela. Daí se falar de uma independência externa do Poder Judiciário (em relação aos demais poderes, o que se resolve pela harmonia dos poderes), assim como de uma independência interna, a qual permite que cada órgão jurisdicional, no exercício da competência, tenha liberdade para decidir só e tão só conforme a lei, não estando vinculado a nenhum órgão superior ou pressão externa de quem quer que seja. Isso, não obstante seja a regra, não é simples.

Basta ver como a doutrina - quiçá a melhor - se vê obrigada a usar conceitos vagos para tentar situar a questão. Eberhard Schmidt é um dos autorizados autores: "La independencia del poder judicial no importa un privilegio para los jueces. No significa libertad de toda obligación, sino libertad para producir resoluciones justas, porque sin esta libertad se traicionaría la 'causa de la justicia'".3

Enfim, a independência é fundamental; e o controle das decisões (mormente contra legem e injustas) se faz pelos recursos e ações impugnativas.

Mas é fundamental, sobretudo, porque os juízes conscientes dos seus misteres fazem um esforço enorme - não raro muito difícil de sustentar - para agir com liberdade, conforme a Constituição e as leis. Sabem que os preceitos legais fornecem quase todos os sentidos possíveis às decisões e, mais, que isso faz aumentar a responsabilidade sobre o "dizer o Direito", justo porque devem encontrar a melhor solução social refletida, sobremodo, nos direitos e garantias individuais. Agir assim, contudo, é um problema, dado que desagrada muitos que, por vários motivos, não querem "tamanha" independência.   

Os juízes que assim atuam são, de regra, os que são reconhecidos como grandes juízes. Começam por um domínio largo do Direito, ou seja, aquele que permite chegar na maior quantidade possível de sentidos na interpretação, abrindo-se, com eles, um maior leque de possibilidades de uma decisão justa e adequada socialmente, de modo a poder ganhar maior legitimidade no seio da comunidade. Com outras palavras, Glauco Giostra é bastante preciso: "Dessa situação inafastável - consciência do limite cognitivo e necessidade de julgar apesar disso - nasce a exigência de estabelecer um itinerário cognitivo ao final do qual um sujeito artificialmente 'alheio'['terzo'], a quem o ordenamento confia a tarefa de ius dicere, chegue a uma conclusão que a coletividade esteja disposta a aceitar como verdadeira".4 Depois, são tais juízes - como  regra geral - marcados por uma humildade epistêmica: sabendo das deficiências que podem ter, estão sempre abertos ao diálogo e ao reconhecimento de eventuais erros, o que faz com que - de uma maneira muito expressiva - concordem com as posições adotadas pelos tribunais nos recursos quando se colocam como corretas, ou seja, possíveis e razoáveis diante da plausibilidade dos direitos. Isso - além do mais - reflete, de um modo geral, uma certa "paz de espírito", com frequência expressa como uma "segurança" decorrente do "estar bem consigo mesmo". Para quem não está bem neste aspecto, a terapia psicanalítica é o melhor caminho a ser seguido, mesmo porque o processo - e particularmente as decisões - não são os lugares adequados para a solução do problema, até porque envolve direitos de pessoas que, em geral, não têm condições para contra elas (tais decisões) reagir adequadamente.

Pois bem. Um desses grandes juízes do Brasil (e são inúmeros) é Alexandre Morais da Rosa. Inteligentíssimo, é mestre, doutor e pós-doutor; é um professor de escol e seu mais conhecido livro (dentre dezenas deles) é um dos manuais mais usados no país: Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-C.

Na sexta-feira passada, 02.06.23, Alexandre Morais da Rosa - juntamente com os juízes João Marcos Buch e Eliza Maria Strapazzon - tomou posse como Juiz de Direito de Segundo Grau, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, para honra e orgulho do povo catarinense. A primeira instância, depois de longas décadas, passou a ser uma página virada.

Um juiz como ele, porém, vira a página da primeira instância quando vai para o tribunal? Eis uma questão palpitante e com tantos reflexos na vida do foro. A resposta negativa, sem dúvida, impõe-se. E isso por uma razão aparentemente simples: os grandes juízes têm preciso que os recursos (e demais demandas) são tão só uma continuação dos processos, senão pura manifestação da vida em si, com seus casos penais, suas lides, suas controvérsias e tudo o mais que ela possa produzir de conhecimento. Por isso, essa gente tem, por princípio, um agir que respeita o ser humano como tal, na sua dignidade. Agir por princípio é não abdicar da vida em abundância para todos, como consta no evangelho de João.

 O novo juiz de segunda instância do TJSC é um estudioso, um leitor voraz dos clássicos e dos últimos lançamentos, um pensador que busca alternativas não ingênuas para os desafios próprios do exercício da Jurisdição. Seus esforços teóricos são engajados com a melhor prática do direito - essa identificada com soluções que compatibilizem o tempo e a energia despendidos com os numerosos processos que batem à porta da Justiça diariamente com desfechos que sejam justos (ou menos injustos).

Pragmático que é, escreveu livros que expressam exatamente isso: empenho com a otimização das soluções, aliado à generosidade de quem divide o que sabe com quem quer que se mostre interessado em aprender.   

Alexandre é um professor nato, não apenas porque domina, com rara destreza, a arte de ensinar e comunicar, mas porque tem empatia, afeto e carisma. É um ser humano que se preocupa com o outro ali, na sua diversidade e diferença, estando sempre disposto a colocar-se no seu lugar e ao seu lado. Isso cria as condições de possibilidade de ser, também, um grande magistrado, técnico, rigoroso quando necessário, mas sem perder a empatia, a sensibilidade e a ternura, jamais. Sem dúvida um conjunto de atributos que raramente se encontram. Por isso, é realmente alguém diferenciado, que engrandece, enobrece e qualifica a magistratura.

Fica fácil entender sua disposição para tantas palestras e tantos cursos nos quatro cantos do Brasil; ainda que isso represente menos tempo com as suas "crias", como gosta de chamar carinhosamente seus filhos. A recompensa vem em forma da admiração que Felipe, Sofia e Artur nutrem pelo pai que têm.  À medida que crescem, cada um, à sua maneira, passa a refletir algo que viram no Rosa-pai, seja a curiosidade pela leitura, seja o entusiasmo pela tecnologia.

Alexandre Morais da Rosa, por definição, fará viva a vida, mesmo em segunda instância; e isso é um motivo de esperança para a cidadania. Ele é um exemplo a ser seguido.

As amigas e amigos da Coluna Limite Penal têm muito orgulho desse companheiro tão querido e respeitado.  

__________

1 ESMEIN, Adhémar. Histoire de la procédure criminelle en France. Paris: Larose et Forcel, 1882, p. 9 e ss.

 

2 SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação de poderes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 138.

3 SCHMIDT, Eberhard. Los fundamentos teoricos y constitucionales del derecho procesal penal. Trad. José Manuel Nuñez. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1957, p. 285-6.

4 GIOSTRA, Glauco. Primeira lição sobre a justiça penal. Trad. Bruno Cunha Souza. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 33.