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O reconhecimento de pessoas epistemicamente confiável chega à ACADEPOL/SP

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Atualizado em 24 de abril de 2023 11:13

Em 2020, aqueles que lutam pela redução das condenações injustas tiveram uma grande vitória. Dia 27/10/2020, por volta das 15h, a sexta turma do STJ julgou o HC n. 598.886/SC sob a relatoria do min. Rogerio Schietti e a partir da união de esforços da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, do Innocence Project Brasil e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD, de agora em diante).

Lembro-me de assistir a sessão comentando cada boa construção argumentativa emitida rumo a uma maior confiabilidade epistêmica para o reconhecimento de pessoas. Como sabemos, ali se decidiu que o roteiro normativo disposto pelo art. 226 do CPP constitui-se em condição necessária para o seu aproveitamento probatório. Nela, também se estabeleceu que as fotografias poderiam ser utilizadas, desde que também fossem observadas as formalidades do mencionado dispositivo legal. E, muito embora a decisão não fosse perfeita - pois não reconhecera a irrepetibilidade do procedimento (então contemplada em 2022, nos HC's n. 206.846/SP do STF e n. 712.781/RJ do STJ) - não há como se negar o enorme avanço que a presunção de inocência e o direito de defesa conquistaram naquela tarde. As comemorações nos grupos de WhatsApp, nas redes sociais, nas salas de aula, em palestras e corredores dos tribunais foram abundantes.

Não fomos ingênuos, contudo. Sabíamos que se tratava de um primeiro passo ao qual muitos outros precisariam ser somados. Tanto é assim que, na própria decisão, o relator enunciara a necessidade de que aquela nova interpretação do art. 226 fosse comunicada a diversas outras instituições:

Dê-se ciência da decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que façam conhecer da decisão os responsáveis por cada unidade policial da investigação. 

Pois bem. Passados quase três anos daquela tarde histórica, os casos sobre reconhecimentos inválidos mantêm-se numerosos e, de forma sintomática, denotam forte resistência à mudança de entendimento. Essa vultosa quantidade de condenações injustas de que o STJ ainda tem de se ocupar demonstra o quanto iniciativas em diversas frentes precisam ser somadas. A instituição do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas pelo CNJ, sem dúvidas, faz parte disso. A Limite Penal de hoje será dedicada a noticiar a nova empreitada do IDDD, dessa vez, realizada com o apoio da Acadepol/SP.

Trata-se de um curso de capacitação especialmente desenhado para os profissionais da Polícia Judiciária. Ora, se desde 2020 o principal argumento em defesa de um criterioso procedimento de reconhecimento refere-se à fragilidade do regular funcionamento da memória humana, fica fácil compreender o elevado destaque que a etapa investigativa passa a merecer. Na realidade, sempre mereceu e não teve. Se os policiais estão mais próximos aos fatos que devem ser reconstruídos, o aperfeiçoamento de suas atuações representa medida fundamental à redução de erros na produção informativo-probatória.

Até porque, se de um lado, o treinamento de policiais não faz desaparecer a relevância dos conhecimentos técnicos para a correta e racional valoração dos reconhecimentos (por exemplo, quanto à diversidade de variáveis que podem acometer a memória humana em qualquer caso, diminuindo a correspondência entre o que é recordado pela vítima/testemunha e o que efetivamente ocorreu, caso do HC n. 724.929/RJ) que os juízes precisam adquirir, por outro, é preciso encarar a realidade de que, tal qual uma "fábrica fordista" (HC n. 711.912/RJ), o sistema de justiça que condena sistematicamente negros e pobres tem como operários  - responsáveis por "apertar seus parafusos" - não somente nossos magistrados, mas também policiais, promotores e mesmo a defesa (se se oferece atuação aquém de efetiva defesa técnica). Em síntese, em maior ou menor medida, diversas são as instituições que contribuem para o atual estado de coisas, ainda tão distante daquilo que foi contemplado pela Constituição de 88. Essa é a constatação, portanto, que justifica o oferecimento de capacitações especialmente desenhadas para cada braço do sistema de justiça brasileiro.

Assim, no dia 10 desse mês de abril iniciamos um curso voltado especialmente para os profissionais da polícia judiciária (com ênfase para os provenientes da Acadepol/SP, mas não somente). Divido com o leitor, no que se segue, o programa da capacitação especialmente desenhada para os mais de 400 inscritos:

Sessão 1. "Reconhecimento de pessoas: desafios das polícias", ministro Rogerio Schietti e prof. Gustavo Badaró

No dia 10/4, o Min. Schietti e o professor Gustavo Badaró (USP) abriram os trabalhos. O ministro tratou sobre a importância do diálogo entre as diversas instituições que compõem o sistema de justiça brasileiro enquanto passo fundamental para a redução das condenações injustas respaldadas em reconhecimento pessoal inválido. Já o prof. Badaró abordou a confiabilidade epistêmica como desafio que precisa ser seriamente contemplado pela justiça criminal desde a etapa investigatória preliminar à instauração ao processo penal. Tal como destacou o professor adepto à epistemologia jurídica, a confiabilidade epistêmica das provas merece cuidados desde o momento em que, a rigor, ainda tratamos de elementos informativos. Quanto melhor tratemos dos elementos informativos em solo policial, melhor será a confiabilidade do conjunto de provas sobre o qual, lá na frente, o juiz deverá construir a sua premissa fática. Essa foi a única sessão híbrida, para a qual contamos com a presença de duzentos policiais na sede da Acadepol/SP. Todas as demais sessões, que se iniciam na próxima semana e vão até meados de junho, serão online. 

Sessão 2. "Panorama dos desafios e oportunidades para a definição e estabelecimento de hipótese na investigação policial", prof. Gavin Oxburgh

Na segunda-feira desta semana, 17/04, o prof. Oxburgh abordou a complexa tarefa de se estabelecer o objeto sobre o qual as investigações policiais devem recair. O Dr. Oxburgh compartilhou a sua experiência de policial investigador e pesquisador para que se evite a chamada visão de túnel. Ele atualmente é professor de Ciência Policial na Northumbria University, psicólogo forense e cientista credenciado pelo Conselho de Profissões de Saúde e Cuidados do Reino Unido. É membro da British Psychological Society e veterano da Polícia da Força Aérea Real, onde serviu por 22 anos. 

Sessão 3. "Psicologia do testemunho e falsas memórias", prof. Lilian Stein

Na próxima segunda-feira, 24/04, será a vez de os policiais judiciários conhecerem a prof. Lilian Stein, que falará sobre como a memória humana efetivamente funciona. O problema das falsas memórias (que embora sejam uma falsidade, distinguem-se das mentiras) será apresentado pela maior especialista brasileira na matéria. A prof. Stein é psicóloga de formação, com doutorado em Psicologia Cognitiva pela University of Arizona e pós-doutorado na Universitat de Barcelona. Sua atuação é pioneira e há mais de 15 anos dedica-se a capacitar operadores jurídicos acerca das falsas memórias.

"Presunção de inocência e injustiça epistêmica". prof. Janaina Matida

Terei a alegria de, mais uma vez, dividir espaço com a prof. Stein. Falarei sobre as sistemáticas situações nas quais oferece-se credibilidade indevida aos sujeitos que participam da justiça criminal em razão de preconceitos identitários que caracterizam sociedades estruturalmente desiguais como é o caso da sociedade brasileira. Tal fenômeno, identificado como "injustiça epistêmica" tem efeitos perversos sobre os reais contornos do direito à presunção de inocência. Disso, portanto, tratarei com os inscritos. Havendo-me doutorado na Universitat de Girona (Espanha), atualmente sou professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) e tenho a honra de integrar o gabinete do Min. Schietti, no STJ. Junto com a Prof. Verónica Hinestroza, a convite do IDDD, assino a coordenação desse curso. 

Sessão 4. "Sistema de justiça e relações raciais", prof. Luciano Góes

Em 08/05, a capacitação contará com os ensinamentos do Prof. Luciano Góes sobre as relações raciais no sistema de justiça brasileiro. Diante da inegável constatação de que a justiça criminal tem na população negra seu alvo preferencial para o encarceramento nas condições subumanas que encontramos em nossas prisões, é preciso encarar de frente o problema do racismo estrutural que invade nossas instituições, impedindo que cumpram as suas respectivas missões, constitucionalmente estabelecidas. O prof. Góes é doutorando em Direito na UnB, coordenador da Especialização em Criminologia da Universidade Católica de Salvador e advogado abolicionista e afrocentrado. Em 2017, foi agraciado com o 2º lugar do Prêmio Jabuti (Direito), com a obra "A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues. O racismo como base estruturante da Criminologia brasileira. Também vale destacar que o Prof. Góes e eu dividimos a relatoria de um dos comitês técnicos do GT sobre Reconhecimento de Pessoas do CNJ". 

Sessão 5. "A memória dos policiais de investigação", prof. Lorraine Hope

Em 15/05, teremos a aula da prof. Lorraine Hope sobre a memória dos policiais. Isso porque, embora sejam cada mais frequentes as ocasiões em que os desafios da memória humana são objeto de reflexão, pouco se trata dos desafios específicos que acometem a memória do policial ao investigar um caso específico. Para os apresentar da forma mais didática e completa possível, trouxemos a Prof. Hope, que é professora em Psicologia Cognitiva Aplicada na Universidade de Porthsmouth e membro principal afiliado do Programa de Elicitation do UK National Centre for Research and Evidence on Security Threats (CREST). Dedica-se a pesquisar técnicas inovadoras para obter informações precisas e detalhadas em uma variedade de contextos investigativos. 

Sessão 6. "Entrevista investigativa (parte 1): garantias de direitos humanos aplicáveis à entrevista e ao devido processo", prof. Verónica Hinestroza

No dia 22/05, receberemos a prof. Verónica Hinestroza. Ela abordará a entrevista investigativa a partir da preocupação com o respeito dos direitos humanos, estes considerados no plano do processo penal. Além de dividir comigo a coordenação do presente curso, a Prof. Hinestroza tem Mestrado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex, é Senior Legal Advisor da Fair Trials, membra-fundadora da Omega Research Foudation Network of Experts, especialista investigativa certificada pela Justice Rapid Response e integrante do Comitê Diretor que elaborou os Princípios Méndez, bem como do grupo de trabalho que elaborou o importante Protocolo de Istambul. 

Sessão 7. "Entrevista investigativa (parte 2): técnicas de entrevista", prof. Wayne Thomas

A última sessão do mês de maio (29/05) ficará sob os cuidados do prof. Wayne Thomas. O prof. Thomas dará continuidade à ferramenta da entrevista investigativa e caberá a ele oferecer aos inscritos as técnicas mais aconselháveis para o alcance do maior número possível de informações fidedignas e detalhadas sobre os fatos cuja ocorrência pretende-se determinar. O prof. Thomas é policial, com mais de 12 anos de experiencia como detetive no Reino Unido, especializado na investigação de crimes graves, crime organizado e métodos de policiamento secreto. Por 17 anos, trabalhou na inteligência do governo britânico, em investigações sobre terrorismo. É pesquisador de aspectos comportamentais e cognitivos da entrevista investigativa. Dedica-se a capacitar policiais e investigadores em diversas partes do mundo. 

Sessão 8. "Reconhecimento de pessoas", prof. William Cecconello

Em 05/06, finalmente terá lugar a aula sobre reconhecimento de pessoas. "E por que só na oitava aula?" - o leitor poderia perguntar-se. A resposta está na observância do que seja o mais adequado a captar o maior número possível de informações úteis e verdadeiras sobre o caso investigado. O procedimento de reconhecimento só deve ser realizado depois de que a vítima/testemunha seja cuidadosamente entrevistada e, assim, haja tido a oportunidade de descrever o suspeito (sem sugestionamento) e oferecer o maior número possível de informações sobre as circunstâncias o evento e do fato que presenciou. O prof. Cecconello é doutor em Psicologia com ênfase em Cognição Humana pela PUC-RS com período sanduíche na University of Porthsmouth. Atualmente, é professor de Psicologia da Faculdade Atitus e coordenador Ensino e Pesquisa do Laboratório de Cognição e Justiça (Cogjus). 

Sessão 9. "Entrevista investigativa (parte 3): exercícios práticos", prof. Verónica Hinestroza

No dia 12/06, nosso penúltimo encontro, teremos novamente aula com a prof. Hinestroza. Nessa ocasião, serão realizados exercícios práticos com o grupo de inscritos, a fim de verificar se os ensinamentos transmitidos foram apreendidos pelos policiais.

Sessão 10. "Inteligência artificial, reconhecimento facial e aprendizado de máquina", prof. Bianca Kremer e Prof. Pablo Nunes

Finalmente, a última sessão será dividida entre a prof. Bianca Kremer e o prof. Pablo Nunes e abordará a temática do reconhecimento facial (reconhecimento feito por máquinas). Nossa opção por encerrar o curso com o reconhecimento facial deve-se à forma como essa questionável ferramenta vem sendo apresentada como se fosse a solução probatória inerentes às provas dependentes da memória - para os seus adeptos, "se a memória humana é falha, a segurança pública e a justiça criminal teriam razões de sobra a recorrer ao reconhecimento feito por máquinas, por exemplo". Os professores Kremer e Nunes apresentarão o problema do racismo algorítmico do qual as máquinas não saem ilesas. À diferença do que se possa ingenuamente pensar, as máquinas não são neutras, nem infalíveis.

Esse é o trajeto que será trilhado com os profissionais da Polícia Judiciária, com o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento técnico necessário a investigações mais completas e à realização de procedimentos de reconhecimentos epistemicamente confiáveis. A redução de condenações injustas requer diálogo institucional e fôlego. Por isso, são mais que devidos agradecimentos a Sra. Márcia Heloísa Mendonça Ruiz (diretora da Acadepol/SP) e aos parceiros do curso, os policiais, professores e pesquisadores, Anderson Giampaoli e Rafael Marcondes de Moraes. Esse é mais um dos passos rumo à justiça criminal que a sociedade brasileira merece e de que precisa. Que venham os próximos.