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O STF e os limites do poder regulatório da Anvisa: Proibição, mercado ilegal e segurança jurídica

sexta-feira, 21 de março de 2025

Atualizado em 20 de março de 2025 15:54

O  julgamento do Tema 1.252, pelo STJ, levanta um debate crucial sobre a competência regulatória da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária e os impactos não intencionais da proibição de determinados produtos. O STF decidirá se, ao editar a RDC - Resolução da Diretoria Colegiada 14/12 - que bane 99% dos ingredientes utilizados há décadas pela indústria na fabricação de produtos fumígenos -, a Anvisa extrapolou seu poder regulatório.

A agência argumenta que a proibição reduziria a exposição desses produtos aos menores de idade. No entanto, essa justificativa desconsidera a existência de legislações vigentes que já proíbem o consumo de tabaco por crianças e adolescentes, independentemente da composição do produto. Dessa forma, a medida não afeta diretamente o público infantil, mas impõe restrições ao setor produtivo, contribuindo para o crescimento do mercado ilegal. O fenômeno já foi observado quando da implementação de outras políticas restritivas, em que a tentativa de banir o cigarro resultou no fortalecimento do comércio clandestino.

Outro ponto é que a RDC 14/12 ultrapassa os limites da competência regulatória da Anvisa, invadindo a esfera do Poder Legislativo, que já normatiza a questão do tabaco. A Constituição Federal delimita com clareza as funções das agências reguladoras, que devem apenas regulamentar e executar normas definidas pelo Congresso Nacional. No entanto, ao estabelecer proibições sem respaldo legislativo, a Anvisa cria uma inovação normativa que precisaria ser debatida e aprovada pelo parlamento. Esse tipo de postura gera insegurança jurídica e enfraquece o devido processo legislativo, além de abrir precedentes para futuras interferências indevidas de órgãos reguladores em temas que exigem ampla deliberação democrática.

Pode parecer tema de menor importância, mas a questão central é que as agências devem executar políticas de governo, e não criá-las. A extrapolação de sua competência resulta na usurpação do poder do Congresso de legislar sobre o assunto.

Além do aspecto institucional, é preciso considerar as consequências econômicas e sociais dessa abordagem regulatória. A política pública de controle do tabagismo no Brasil possui dois aspectos distintos. De um lado, existem as medidas de saúde pública, como as restrições à publicidade e a proibição do fumo em ambientes fechados, já amplamente adotadas. De outro, há o impacto econômico e social de políticas excessivamente restritivas, que acabam incentivando o mercado ilegal. Hoje, mais de 50% dos cigarros vendidos no país são ilegais, seja por contrabando, seja por produção irregular sem fiscalização sanitária.

Um exemplo desse problema é a proibição da comercialização de cigarros eletrônicos pela Anvisa. Embora a justificativa seja a proteção da saúde pública, a vedação não impediu o consumo e, na prática, criou uma reserva de mercado para o comércio ilegal. Contrabandistas e vendedores clandestinos distribuem esses produtos sem qualquer controle sanitário ou tributário, tornando a proibição ineficaz e agravando o problema da fiscalização. Hoje 100% do mercado de cigarros eletrônicos no Brasil é clandestino, já que a não regulamentação do seu uso inviabilizou qualquer atividade legal no setor.

Ao invés de proteger a população, a ausência de regulamentação incentiva a disseminação de produtos de procedência duvidosa e sem controle de qualidade, muitos dos quais podem ser ainda mais nocivos do que os regulamentados. As rodovias são a principal rota de distribuição de produtos falsificados ou contrabandeados. Em 2024, os cigarros lideraram as apreensões realizadas pelas autoridades - somente a Polícia Rodoviária Federal recolheu 58 milhões de maços de cigarro e mais de 600 mil cigarros eletrônicos.

A resposta para a questão do tabagismo não pode se basear unicamente em medidas proibitivas. A experiência internacional e os avanços no próprio Brasil mostram que campanhas educativas são muito mais eficazes para reduzir o número de fumantes do que restrições excessivas. Além disso, é essencial intensificar o combate ao contrabando, a fim de impedir que o crime organizado continue lucrando. Esse mercado não apenas prejudica a saúde pública, como também desestabiliza a economia formal e financia outras atividades criminosas, ampliando a violência e a insegurança no país.

O debate no  STF sobre a RDC  14/12 da Anvisa vai muito além da proibição de cigarros saborizados. Está em jogo a delimitação dos poderes das agências reguladoras e o respeito ao devido processo legislativo. Ao extrapolar sua competência e impor restrições sem respaldo no Congresso Nacional, a Anvisa não apenas interfere na esfera do Legislativo, mas também contribui para o agravamento de um problema já evidente: o crescimento do mercado ilegal de cigarros.