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A supressão de garantias no plano de recuperação judicial

terça-feira, 7 de julho de 2020

Atualizado às 09:53

Em abril de 2019, ao julgar o REsp n. 1.700.487-MT, o STJ enfrentou, sob perspectiva diferente, tema sobre o qual formulara o enunciado n. 581 de sua Súmula anos atrás: a extensão da novação a terceiros devedores solidários e coobrigados no bojo da recuperação judicial do devedor principal.

O enunciado sumular n. 581 dispõe que "a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória".

Esse entendimento teve como pano de fundo o julgamento do REsp n. 1.333.349-SP, em que a Segunda Seção do STJ, sob a sistemática do recurso repetitivo, fixou a seguinte tese em acórdão relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005".

Referida tese foi estabelecida em resposta ao grande número de casos em que devedores solidários de obrigação cujo devedor principal era empresa em recuperação judicial argumentavam que ações individuais ajuizadas contra si deveriam ser suspensas à luz da parte final do caput do art. 6º da lei 11.101/2005, que faz referência à suspensão - por ocasião do deferimento da recuperação judicial - do curso da prescrição, bem como de ações e execuções também contra "credores particulares do sócio solidário". O entendimento postulado era o de que a expressão "sócio solidário" tinha como sinônimo a expressão "devedor solidário".

O acórdão proferido pelo Tribunal Superior em regime repetitivo deixava claro que o termo "sócio solidário" não tem a mesma significação que o termo "devedor solidário" para os fins da lei 11.101/2005.

Para além disso, o julgado afirma que a situação do sócio solidário se difere daquela do devedor ou do coobrigado de forma evidente, pois a lei prevê expressamente a preservação das obrigações destes últimos na eventualidade de ser deferida a recuperação judicial do devedor principal, tudo na forma do § 1º do art. 49 da lei 11.101/2005.

A discussão não ficou limitada ao âmbito da primeira fase da recuperação judicial, relativa ao deferimento de seu processamento. O STJ igualmente se debruçou sobre a segunda fase do processo recuperacional, que se situa em momento posterior à concessão da recuperação pelo juiz e à aprovação do plano em assembleia de credores.

A parte recorrente naquela hipótese defendia que, por decorrência do que consta no art. 59 da lei 11.101/2005, que prevê a novação dos créditos com a aprovação do plano de recuperação judicial, as execuções intentadas contra a empresa recuperanda e seus garantes deveriam ser extintas, na forma dos arts. 364 e 365 do Código Civil, os quais tratam da novação comum.

Fazendo uma diferenciação entre a novação prevista na lei civil daquela disciplinada pela lei 11.101/2005, essa interpretação foi afastada pela Segunda Seção do STJ; in verbis: "Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz, como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da lei 11.101/2005), as quais só serão suprimidas ou substituídas 'mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia', por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º)".

A conclusão foi no sentido de a recuperação judicial operar uma novação sui generis: conquanto o plano de recuperação judicial implique a novação das dívidas a ele submetidas, "as garantias reais ou fidejussórias são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral", tal como está posto no voto do ministro Luis Felipe Salomão.

Com efeito, o entendimento preponderante da Segunda Seção do STJ é o de que a novação advinda do deferimento da recuperação judicial afeta apenas as obrigações da recuperanda constituídas até a data do pedido, sem interferência a coobrigados e garantidores em geral (v.g. fiador e avalista).

O julgamento do REsp n. 1.700.487-MT trouxe novas luzes sobre a questão, que fora reanalisada dentro de um arcabouço fático diferente. A Terceira Turma do STJ enfrentou, entre outras matérias, a validade de cláusula inserta em plano de recuperação judicial que estende a novação a terceiros garantidores e coobrigados1.

No citado caso, o plano de recuperação judicial foi aprovado por assembleia geral de credores em votação não unânime, mas respeitado o quórum legal, com previsão de "supressão de todas as garantias fidejussórias e reais", nos termos que seguem: "Uma vez aprovado o presente plano, ocorrerá a supressão de todas as garantias fidejussórias e reais existentes atualmente em nome dos credores a fim de que possa a recuperanda se reestruturar e exercer suas atividades com o nome limpo, tanto da sociedade quanto de seus sócios, tendo em vista a NOVAÇÃO pela aprovação do plano".

A celeuma bateu à porta da Corte Superior de Justiça, que se debruçou novamente sobre a matéria para decidir se poderia o Poder Judiciário, ao realizar o controle de legalidade do plano, restringir a "supressão de todas as garantias fidejussórias e reais" apenas aos credores que expressamente concordaram com tal previsão, determinando a ineficácia dos efeitos de determinada disposição sobre aqueles credores que não participaram da assembleia geral, se abstiveram de votar ou se posicionaram contra ela.

Por maioria, consoante o voto vencedor do ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma entendeu ser "absolutamente descabido restringir a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral, somente aos credores que tenham votado favoravelmente nesse sentido, conferindo tratamento diferenciado aos demais credores da mesma classe, em manifesta contrariedade à deliberação majoritária".

Da fundamentação do voto do relator para acórdão, extrai-se a supremacia e a força vinculativa das decisões do órgão máximo representativo dos credores, vale dizer, a assembleia de credores, que "assentiu com a supressão das garantias reais e fidejussórias, providência que convergiria, numa ponderação de valores, com os interesses destes majoritariamente".

O acórdão, no entanto, faz o registro de que na hipótese de não ser implementado o plano de recuperação da forma como aprovado, os credores terão reconstituídos seus direitos e garantias nas condições originariamente contratadas.

Opinião diversa foi apresentada pelo relator originário do recurso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, para quem "a submissão ao plano de recuperação de credores que votaram contra a cláusula que prevê a exclusão de garantias, importa verdadeira afronta à segurança jurídica e seus consectários, visto que um credor que concede crédito e recebe em troca uma garantia, certamente precisa de segurança mínima de que essa garantia será respeitada, mesmo em caso de recuperação ou falência, na forma como prevista na lei 11.101/2005".

Na perspectiva do ministro Cueva, cujo voto vencido foi acompanhado pela ministra Nancy Andrighi, "a conclusão que melhor equaciona o binômio 'preservação da empresa viável x preservação das garantias' é a de que a cláusula que estende a novação aos coobrigados seria apenas legítima e oponível aos credores que aprovarem o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz, portanto, no tocante aos credores que não se fizeram presentes quando da assembleia geral de credores, abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição".

Verifica-se, assim, que os ministros integrantes da Terceira Turma não comungam de um mesmo entendimento em torno do alcance da supressão de garantias no plano de recuperação judicial. A Quarta Turma, ao que consta, não tem precedentes específicos sobre o tema.

O arranjo de garantias e a sistematização do instituto da recuperação judicial são temas tortuosos e inegavelmente possuem forte apelo econômico na concessão de crédito. A questão é complexa e deve ser analisada sob diferentes prismas, pois os impactos nas esferas sociais e econômicas são evidentes. Notadamente o possível aumento do custo de aquisição do crédito tem reflexo direto na vida das empresas e do cidadão.

Diante disso, e principalmente da divergência de opiniões dentro do próprio STJ, faz-se o importante registro de que o REsp n. 1.797.924-MT, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi afetado pela sistemática dos recursos repetitivos para julgamento pela Segunda Seção, que terá a importante missão de pacificar a orientação das Turmas de Direito Privado sobre o assunto.

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1 REsp n. 1.700.487-MT, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, rel. p/ acórdão min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª T., j. 2/4/2019, DJe 26/4/2019. No mesmo sentido, já havia assim decidido a Terceira Turma: REsp n. 1.532.943-MT, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, j. 13/9/2016, DJe 10/10/2016.