Medidas executivas atípicas e o entendimento do STJ
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Atualizado às 08:29
O texto de estreia de nossa coluna tratará de tema que efetivamente rendeu "panos para as mangas", como bem antecipou Sergio Bermudes ao apresentar suas primeiras impressões sobre o art. 139, IV, do CPC.1
O referido dispositivo atribui ao magistrado poderes para assegurar a efetividade de suas decisões, podendo se valer de todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias que se façam necessárias para garantir ao credor a satisfação de determinada obrigação.
Ampliou-se o papel do juiz na condução do processo quando comparado à ordem processual civil anterior (art. 125 do CPC/73), assegurando-lhe o poder de empregar medidas executivas atípicas no afã de zelar pelo cumprimento de ordens judiciais que reconheçam não só obrigação de fazer, de não fazer e de entregar coisa, mas também nas que exijam prestação pecuniária.
O poder geral de efetivação das decisões foi de tal forma alargado pelo novo diploma processual civil, que as medidas executórias atípicas podem ser efetivadas para o fim de compelir a parte a exibir documento (art. 400 do CPC), superando, inclusive, o enunciado da súmula 372/STJ.2
A abrangência das medidas executivas atípicas previstas no CPC e os limites de sua aplicação são objeto de controvérsia.
Como já era de se imaginar, os tribunais enfrentam o tema com frequência, pronunciando-se sobre a interpretação e a extensão do inciso IV do art. 139 de acordo com as mais diversas peculiaridades dos casos concretos.
Naturalmente, há um tempo para a maturação da jurisprudência com relação a dispositivo que, por si só, traz certa instabilidade às relações jurídicas.
A 3ª Turma do STJ jogou luzes sobre a questão no julgamento do REsp 1.788.950-MT, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, interposto no bojo de execução de título extrajudicial em que foram indeferidos, pelo tribunal de origem, pedidos da parte exequente de suspensão da CNH e apreensão do passaporte do devedor. O órgão colegiado manteve a decisão do TJMT por considerar que não haveria sinais de que o devedor estaria ocultando seu patrimônio, mas sim que ele não possuiria bens aptos a serem expropriados.
Ao assim julgar, a 3ª Turma fixou, por unanimidade de votos, a orientação de que a "adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade."3
Oportuno destacar que o acórdão aqui examinado refutou a inaplicabilidade das medidas executivas atípicas meramente por conta de sua potencial intensidade no que toca a restrição de direitos fundamentais, na medida em que o próprio ordenamento jurídico albergaria explicitamente medidas até mesmo mais gravosas, a exemplo do despejo forçado e da busca e apreensão.
Ficou decidido, com acerto, que a determinação de medidas executivas atípicas ao arrepio de tais garantias deveria ser examinada caso a caso, e não aprioristicamente, em abstrato, por se tratar, nos dizeres da ministra relatora, "de hipótese excepcional que foge à regra de legalidade e boa-fé objetiva estabelecida pelo CPC/15."
No AgInt no REsp nº 1.785.726-DF, também julgado pela 3ª Turma do STJ, mas de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, decidiu-se, à unanimidade, que "para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia das que foram deferidas anteriormente".4
Apesar de ter-se negado provimento ao recurso por óbice do enunciado nº 7 da Súmula do STJ, o relator observou que as medidas executivas atípicas devem ser utilizadas nos limites dos princípios da adequação, exigibilidade, razoabilidade, proporcionalidade e subsidiariedade. Por derradeiro, levou em consideração se o padrão de vida do executado era compatível - ou não - com a ausência de patrimônio alegada, para o fim de manter-se a decisão do tribunal local que determinou a suspensão da CNH do devedor por três anos.
No REsp 1.733.697-RS, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ficou consignado não ser "mais correto afirmar que a atividade satisfativa somente poderá ser efetivada de acordo com as específicas regras daquela modalidade executiva, mas, sim, que o legislador conferiu ao magistrado um poder geral de efetivação, que deve, todavia, observar a necessidade de fundamentação adequada e que justifique a técnica adotada a partir de critérios objetivos de ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, de modo a conformar, concretamente, os princípios da máxima efetividade da execução e da menor onerosidade do devedor, inclusive no que se refere às impenhorabilidades legais e à subsidiariedade dos meios atípicos em relação aos típicos."5
A partir dessa premissa, a 3ª Turma do STJ, por votação unânime, conheceu do recurso especial para negar-lhe provimento, permitindo, na hipótese dos autos, que versava sobre execução de alimentos, a combinação de técnicas executivas atípicas e típicas.
Permitiu-se o desconto na folha de pagamento do devedor, parceladamente e observado o limite de 10% sobre seus subsídios líquidos (medida sub-rogatória, portanto atípica) e a excussão da penhora gravada sobre os bens do devedor (medida expropriatória típica), com a ressalva feita pelo TJRS, no sentido de que o valor descontado como forma de pagamento do débito alimentar deverá ser considerado quando da alienação do bem penhorado.
Vale registrar que, no julgado acima, a relatora fez importante observação acerca do uso de medidas executivas atípicas. Segundo ela, tanto a decisão de primeiro grau quanto o acórdão recorrido teriam registrado que o devedor seria contumaz, comprovadamente renitente e que efetivamente teria bens para fazer frente à dívida.
Também foi levado em consideração o fato de que a dívida alimentar do genitor já perdurava 24 anos, sendo que, se admitida somente a medida típica, o débito seria quitado apenas em 60, daí se justificando a combinação da técnica sub-rogatória com a possibilidade de expropriação dos bens penhorados no feito.
No HC 478.963-RS, cuja relatoria coube ao ministro Francisco Falcão, reiterou-se a possibilidade de impetrar o citado writ para impugnar a restrição ao direito fundamental de ir e vir causada pela retenção de passaporte, embora a ordem de habeas corpus tenha sido denegada ao fundamento de que a decisão que aplicou tal medida restritiva contou com motivação adequada e analítica, além de ter respeitado o princípio do contraditório.
Nesse específico caso, que cuidava de cumprimento de sentença referente à obrigação de pagar danos ambientais, o juízo de primeira instância indeferiu a apreensão do passaporte, mas o TJ/RS reformou tal decisão, autorizando a apreensão por entender que os elementos do processo evidenciariam que os pacientes, pessoas públicas, teriam se comportado, tanto no curso do processo de conhecimento quanto na fase executiva, de maneira desleal e evasiva, "embaraçando a tramitação processual e deixando de cumprir provimentos jurisdicionais, em conduta sintomática da ineficiência dos meios ordinários de penhora e expropriação de bens."6
Em outra decisão de relevo para o assunto, a 1ª Turma do STJ, no julgamento do HC 453.870-PR, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, firmou entendimento de que "em execução fiscal não cabem medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir",7 pois sua aplicação, nesse contexto, resulta em excesso. Para tanto, o STJ considerou que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor, sendo o crédito fiscal altamente blindado ao risco de inadimplemento por sua própria "conformação jusprocedimental".
A 3ª Turma do STJ, nos autos do RHC nº 99.606-SP, relatado pela ministra Nancy Andrighi, decidiu ser cabível a impetração de habeas corpus em matéria cível com o fito de impugnar ato judicial que autorizou a medida de anotação, pela Polícia Federal, de restrição de saída do devedor do Brasil sem prévia garantia da execução.
Nessa hipótese específica, o STJ entendeu que a referida medida teria o condão, ainda que potencialmente, "de ameaçar de forma direta e imediata o direito de ir e vir do paciente, pois o impede, durante o tempo em que vigente, de se locomover para onde bem entender."8
No bojo do mesmo RHC foi declarada inadequada a via mandamental como veículo para atacar decisão judicial que suspende o direito de o devedor recalcitrante dirigir veículo automotor, pois tal situação não configuraria "ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção do paciente", já que existentes outros meios de locomoção, demandando análise pela via recursal ordinária, na medida em que o habeas corpus não poderia ser utilizado como sucedâneo de recurso.9
Sobre o tema da impetração de HC contra ato judicial que determina a suspensão da CNH do devedor, o ministro Napoleão Maia Nunes Filho, nos autos do HC 453.870-PR, entendeu de forma diversa. Para Sua Excelência, nessa hipótese, o Pacto de San José da Costa Rica deveria ser trazido à baila, "na medida em que a existência de diversos meios de deslocamento não retira o fato de que deve ser amplamente garantido ao cidadão exercer o direito de circulação pela forma que melhor lhe aprouver, pois assim se efetiva o núcleo essencial das liberdades individuais, tal como é o direito de ir e vir."10
O STJ tem interpretado o inciso IV do art. 139 do CPC com cautela, pois a almejada efetividade da prestação executiva não está alheia ao controle da legalidade. Sem perder de vista a proteção às garantias constitucionais, tem fixado patamares claros - ainda que subjetivos - para a aplicação segura das medidas executivas atípicas.
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1 Sergio Bermudes. CPC de 2015: inovações. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016, p. 114.
2 REsp 1560976-RJ, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 30/5/2019, DJe 1/7/2019.
3 REsp nº 1.788.950-MT, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 23/4/2019, DJe 26/4/2019; sem itálicos no original. A mesma conclusão jurídica, embora com diferença no resultado do recurso específico, foi registrada no julgamento do REsp nº 1.782.418-RJ, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 23/4/2019, DJe 26/4/2019.
4 AgInt no REsp nº 1.785.726-DF, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 19/8/2019, DJe 22/8/2019.
5 REsp nº 1.733.697-RS, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 11/12/2018, DJe 13/12/2018.
6 HC 478.963/RS, rel. min. Francisco Falcão, 2ª Turma, j. 14/5/2019, DJe 21/5/2019.
7 Informativo de Jurisprudência nº 0654, publicado em 13/9/2019.
8 RHC nº 99.606-SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 13/11/2018, DJe 20/11/2018.
9 Nesse sentido: HC nº 411.519-SP, rel. min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, j. 21/9/2017, DJe 3/10/2017; RHC nº 97.876-SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, 3ª Turma, j. 5/6/2018, DJe 9/8/2018; e Voto divergente proferido pelo min. Gurgel de Faria no HC nº 453.870-PR, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. 25/6/2019, DJe. 15/8/2019.
10 HC nº 453.870-PR, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. 25/6/2019, DJe. 15/8/2019.
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