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Pactos conjugal e convivencial na proposta de revisão do Código Civil e a objetificação de crianças e adolescentes

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Atualizado às 09:35

O Relatório Geral da Comissão de revisão do CCB, propôs, no Título de Direito Patrimonial, um capítulo denominado: Dos pactos conjugal e convivencial, que aparentemente destina-se a substituir a antiga previsão do pacto antenupcial. A proposta incluiu a regulamentação do chamado contrato de convivência que, na prática, corresponde a uma declaração de convivência feita pelos companheiros para a fim de fixar o termo inicial da vida em comum e a eleição do regime patrimonial de bens.

Contudo, a expressão contrato escrito entre os companheiros prevista no atual artigo 1725, não prevê uma forma específica para esse instrumento, não indicando, portanto, como condição de validade, que se dê por escritura pública. Também não informa que tal documento seja condição para o reconhecimento da união estável. Isso porque o artigo 1723 caput já denota a natureza jurídica de ato-fato do instituto, tal como defende a doutrina majoritária, uma vez que impõe apenas elementos fáticos subjetivos e objetivos para o seu reconhecimento, como a convivência pública, contínua e duradoura e o objetivo de constituição de família. Ao que indica, visou a comissão nesse primeiro momento, estender a formalidade do antigo pacto antenupcial ao contrato entre os companheiros, passando-o a denominar de Pacto Convivencial.

Para além da possível controvérsia sobre a excessiva formalidade para a união estável e a possibilidade, ainda que facultativa, de seu registro, constante no artigo 1564-A, § 4º, preocupa-nos, sobretudo, um possível retrocesso na distinção que deve haver entre o tratamento da conjugalidade e o da parentalidade.

Já havia uma crítica à redação referente aos deveres conjugais e convivenciais, previstos nos artigos 1566, IV e 1724 do CCB vigente, porque o sustento, guarda educação dos filhos são deveres parentais e não conjugais ou convivenciais.

A confusão advém de antigos valores carreados pelo Código Civil de 1916 que previa o exercício de uma autonomia da vontade dos pais sobre os filhos, considerados legítimos se concebidos na constância do casamento. Conquanto fossem considerados pessoas, as crianças e adolescentes eram invisíveis e praticamente eram apenas futuros sujeitos de direito.

Sob a análise de Philippe Ariès1 a criança e do adolescente sofriam apagamento no seio da família e da sociedade, alcançando maior importância entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII, embora ainda não fosse a figura central da entidade familiar. Foi com a modernidade que as crianças e adolescentes se destacaram como um grupo separado dos adultos, na medida em que a infância e adolescência passou a ser compreendida como uma fase específica da vida.

Paulatinamente foram surgindo organizações não governamentais em todo o mundo, como a Save de Children, para amparar os órfãos da 1ª guerra mundial (iniciativa privada na Inglaterra), favorecendo a elaboração da Declaração dos Direitos da Criança.2

A violação massiva de direitos durante a 2ª guerra mundial e a fundação da ONU - Organização das Nações Unidas, motivaram a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em cujo artigo 25, anuncia as crianças devem receber a devida proteção social, independentemente de serem ou não advindas do matrimônio.

O primeiro Tratado internacional sobre a criança foi aprovado pela ONU, em 1959 com a Declaração dos Direitos das Crianças e representou grande avanço na garantia dos direitos desse público, fortalecimento a sua condição de sujeito de direito. Sob as bases da doutrina da proteção integral influenciou fortemente a nossa Constituição Federal de 1988.

No ano de 1990 entrou em vigor a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que por sua vez, sedimentou a doutrina da proteção integral e deu azo ao Estatuto da Criança e Adolescente.

No resgate feito por Tânia da Silva Pereira, a proteção da criança requer a sua percepção como sujeito de direitos e não como mero objeto de proteção.

Perceber a criança como "sujeito" e não como objeto dos direitos dos adultos reflete, talvez, o maior desafio para a própria sociedade e para o Sistema de Justiça. Ser sujeito de direitos é ser titular de uma identidade social que lhe permita buscar proteção especial, já que se trata de uma pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.3

Em suma, os valores Constitucionais e o teor do Estatuto da Criança e do Adolescente informam que nada pode ser transigido quanto aos direitos da criança ou sobre o adolescente, sem que haja a intervenção Estatal.

As questões pertinentes à filiação não podem ser delimitadas somente pela autonomia dos pais, quando envolve interesse de criança e adolescente. Paulo Lobo assevera que, "no direito de família, a liberdade e a autonomia não são determinantes, porque estão em jogo valores superiores de proteção dos integrantes da entidade familiar, especialmente os que se qualifiquem como vulneráveis". Assim, confirma o autor, muitas de suas normas são cogentes, com determinação dos deveres jurídicos.4

Todo regramento que envolve a relação com filhos (crianças/adolescentes) é de ordem pública e natureza cogente, exigindo a intervenção imediata do Estado, inclusive para prevenir possível violação aos seus direitos fundamentais. A vulnerabilidade das crianças e adolescentes é presumida em razão de sua especial fase de desenvolvimento, consoante impõe doutrina de proteção integral.5

Em contraste com essas premissas, o artigo 1655-A, do capítulo II, do relatório geral da comissão, prevê a possibilidade os pactos conjugais e convivenciais firmados pelos cônjuges ou companheiros transigirem, inclusive, sobre a guarda e sustento dos filhos. Transferem ao Tabelião uma competência informar limites ou renúncia de direitos. Em dissonância com o caput, o parágrafo único dispõe sobre a ineficácia de cláusulas excessivamente prejudiciais a um dos cônjuges/companheiros ou que violem a proteção da família em sacrifício da igualdade. Veja que o parágrafo sequer menciona a possibilidade de lesão aos direitos dos infantes. In verbis:

Art. 1.655-A. Os pactos conjugais e convivenciais podem estipular cláusulas com solução para guarda e sustento de filhos, em caso de ruptura da vida comum, devendo o tabelião informar a cada um dos outorgantes, em separado, sobre o eventual alcance da limitação ou renúncia de direitos.

Parágrafo único. As cláusulas não terão eficácia se, no momento de seu cumprimento, mostrarem-se gravemente prejudiciais para um dos cônjuges ou conviventes, violando a proteção da família ou transgredindo o princípio da igualdade.

A proposta normativa é contrária à construção histórica dos direitos da criança e do adolescente e a sua afirmação como sujeito de direito, cujos direitos relativos à convivência familiar não podem ser avençados por meio de pactos no exercício da vontade e preferencialidade do par conjugal ou convivencial.

Os atributos do poder familiar não existem para realizar interesses dos pais e sim, para promover o superior interesse dos filhos e o seu desenvolvimento saudável até que possam alcançar a plenitude de uma vida autônoma. Ademais, a convivência familiar é direito fundamental que também viabiliza a realização dos interesses prioritários dos filhos menores e têm valoração de maior peso caso concorram com outros interesses dos adultos.

A guarda é instituto importante para o exercício da convivência familiar que também favorece o exercício das responsabilidades parentais.

Não se nega a importância da autonomia privada nas relações familiares contemporâneas, ressaltando cada vez mais, o caráter negocial das relações conjugais e convivenciais, mas não se pode confundir a liberdade para originar, experenciar e dissolver relações conjugais e convivenciais com o exercício e as responsabilidades decorrentes da parentalidade. A ampliação da liberdade das pessoas adultas e capazes para decidir sobre suas vidas enquanto família, não pode impactar situações jurídicas de terceiros vulneráveis.

Assim, causa estranheza o texto sugerido pela comissão, quando permite que os casais possam prever no pacto antenupcial ou convivencial, soluções sobre a guarda e sustento dos filhos na hipótese de ulterior dissolução do casamento ou união estável. E ainda pior, atribuir ao tabelião o dever de informar o alcance e eficácia de disposições sobre limitação e renúncia de direitos. O resultado, além de arriscado aos direitos dos infantes, aumentará a litigiosidade futura porque, além de tudo, quem saberá o cenário no qual essa dissolução ocorrerá para informar o que seja mais adequado ao superior interesse da criança?

Na prática, será improvável alguma eficácia protetiva, por força de tal informação. Indo além, o que significa a aludida limitação e renúncia de direitos? O texto coloca a decisão sobre guarda e sustento dos filhos como um direito dos pais, segundo a antiga e superada percepção de que os filhos menores são apenas objeto e não, sujeito de direitos.

A guarda se estabelece para garantir direito dos filhos e é por meio dela que se realiza a convivência familiar e o cumprimento de responsabilidades parentais. O dever de sustento é a contraface dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assentados em norma constitucional de força cogente que visa a garantia da vida digna e do desenvolvimento. Conforme o artigo 227 da CF, às crianças e aos adolescentes se deve garantir, com absoluta prioridade, o "direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária". Qualquer cláusula contratual que vier a limitar ou afastar tais direitos seria maculada pelo vício da nulidade.

Plausível seria considerar os negócios jurídicos estipulando acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais se firmados no momento final da conjugalidade ou convivencialidade, quando se sabem sobre as contingências do momento.

A vontade manifestada nos pactos conjugais ou convivenciais para estipular efeitos futuros, na hipótese de ruptura da família, quanto à guarda e sustento dos filhos, perde o sentido diante das incertezas do porvir que podem atingir a capacidade financeira dos pactuantes e/ou a sua condição de atender ao melhor interesse da criança.

Ainda que se argumente a possibilidade de uma revisão das cláusulas pactuadas, situações de família são tão sensíveis ao tempo e ao movimento da vida, tanto é que as decisões judiciais sobre guarda e alimentos não fazem coisa julgada, diferentemente de decisões judiciais sobre obrigações contratuais tradicionais de conteúdo econômico.

Portanto, pactuar sobre guarda e sustento de filhos para definir obrigações futuras importará em cláusulas de extrema fragilidade e possível ineficácia. Admitir a autonomia privada para decidir sobre a matéria em instrumento que se presta à regular matéria de direito patrimonial ressalta a cultura, anteriormente criticada e atualmente ultrapassada, de ver crianças e adolescentes como objeto e não, como sujeitos de direito.

O dispositivo é inconstitucional, se vier a nascer como regra, o que deve ser evitado quando de sua votação para a configuração de um Projeto de lei.

Quanto a forma, o arranjo proposto merece melhor técnica legislativa. Um capítulo de lei deve direcionar o conteúdo a ser tratado em todos os artigos a parágrafos, sem prejuízo de diálogo com outros capítulos, mas não deve estabelecer conteúdos destinados a outras classes. Assim, os pactos devem tratar das cláusulas estabelecidas entre os cônjuges e companheiros para tratar de assuntos a estes relacionados, e não de matéria relacionada aos filhos que são terceiros nessa relação.

A lei complementar 95/98, dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.  Em seu artigo 11, estabelece que as disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica.6

No inciso III desse artigo, há as exigências para a obtenção da ordem lógica, como: a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro - apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei; b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio; c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.

No caso em espécie, se o parágrafo único da referida proposta de regra é complementar ao seu caput, confirma a distorção do tratamento preferencial à vontade dos pais, ao invés da análise do melhor interesse do filho infante.

Merece revisão o relatório geral, uma vez que as regras de guarda e convivência familiar devem estar alocadas no Capítulo referente à autoridade parental, restringindo-se o capítulo dos pactos, apenas aos acordos conjugais e convivenciais que dizem respeito apenas aos cônjuges e conviventes, mas não aos filhos menores. No mesmo sentido, merece reforma a realocação do inciso IV do artigo 1566 e a expressão contida no artigo 1724, sobre a guarda, sustento e educação dos filhos. Tais deveres existem e com prioridade, mas não por serem cônjuges ou companheiros e sim por serem mães e pais.

Referências

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 12.

BRASIL, Lei Complementar 95/98. Disponível aqui - acesso em 23/03/2024.

INSTITUTO MATTOS FILHO. Equidade. Disponível no POLITIZE aqui, acesso em 24 de março de 2024.

HOLANDA, Maria Rita.  Parentalidade: entre a realidade social e o direito. Belo Horizonte: Forum, 2021, p.87

LOBO, Paulo. Direito civil. Famílias, Vol. 5, 14.ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2024, p. 50

PEREIRA, Tania da Silva. O Princípio do melhor interesse da criança: da teoria à prática, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n.6, pg. 31-49.

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1 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 12.

2 Instituto Mattos Filho. Equidade. Disponível no POLITIZE aqui, acesso em 24 de março de 2024.

3 PEREIRA, Tania da Silva. O Princípio do melhor interesse da criança: da teoria à prática, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n.6, pg. 31-49.

4 LOBO, Paulo. Direito civil. Famílias, Vol. 5, 14.ed., São Paulo: Saraiva Jur, 2024, p. 50

5 HOLANDA, Maria Rita.  Parentalidade: entre a realidade social e o direito. Belo Horizonte: Forum, 2021, p.87

6 BRASIL. Lei Complementar 95/98. Disponível aqui, acesso em 23/03/2024.