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Força maior e caso fortuito: o efeito de fatos incontroláveis pelas partes nos negócios jurídicos patrimoniais

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Atualizado às 08:33

Texto de autoria de Micaela Barros Barcelos Fernandes

A força maior e o caso fortuito são institutos que se inserem no universo dos contratos, estes instrumentos de criação e circulação de riquezas patrimoniais mais frequentes e com maior variedade de tipos em qualquer economia orientada pelo princípio da livre iniciativa, como a brasileira. Eles se inserem tecnicamente na disciplina de direito das obrigações, e indicam um caminho possível para lidar com certas situações de descumprimento contratual, aquelas relacionadas a eventos necessários e que geram efeitos inevitáveis, que as partes contratantes não possam impedir.

Como qualquer instituto jurídico, a força maior e o caso fortuito - atualmente bastante lembrados em razão da pandemia de coronavírus - não podem ser tratados como panaceia, solução para todos os conflitos relacionados ao inadimplemento contratual. Assim como na Medicina o remédio adequado para cada enfermidade varia conforme a doença específica e o paciente real, e não apenas hipotético, também no Direito as soluções possíveis para os problemas variam em função das peculiaridades de cada caso concreto, da situação de dúvida ou conflito que possa existir na prática, portanto do perfil das pessoas envolvidas, suas circunstâncias pessoais e interesses, que devem ser levados em consideração na interpretação e aplicação do Direito.

Com relação aos contratos civis e comerciais, a disciplina da força maior e do caso fortuito está hoje prevista na legislação brasileira nos artigos 393 e 399 do Código Civil (CC), o primeiro deles que estabelece, em seu parágrafo único, que ambos1 se verificam no fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir2. Quando, portanto, as partes se vêem diante de circunstâncias necessárias e inevitáveis, a lei brasileira diz que se tais circunstâncias levarem ao descumprimento pelo devedor em uma dada relação contratual, este não responderá, em regra, por eventuais prejuízos sofridos pelo credor.

Em concreto, a força maior ou o caso fortuito será então o fato com esta característica de força para além daquelas controláveis pelas partes e que impede a devedora, isto é, que tem algo a pagar ou cumprir, uma prestação a entregar, de desempenhar adequadamente aquilo a que se comprometeu, no todo ou em parte, de forma temporária ou definitiva.

Dependendo da extensão e da importância deste descumprimento para a relação jurídica, para o programa contratual que foi estabelecido pelas partes, ele pode se caracterizar como um inadimplemento relativo, também conhecido como mora (palavra cuja raiz é a mesma da expressão demora, que remete ao atraso, mas que juridicamente se conecta não apenas com a imperfeição do cumprimento quanto ao tempo, mas também ao modo ou ao lugar de execução) ou como um inadimplemento absoluto.

A diferença entre os dois tipos de inadimplemento é importante porque somente no segundo caso, isto é, no inadimplemento absoluto, no qual fica caracterizado que o credor perdeu o interesse útil na prestação que tinha a receber, ele pode se recusar a receber a entrega ou pagamento em atraso, ou de outro modo, ou em outro lugar, isto é, ele pode se desfazer da relação com o devedor, por meio da resolução contratual, nos termos do parágrafo único do artigo 395 do Código Civil.

Por sua vez, o devedor só terá a prerrogativa de se desfazer da relação, desobrigando-se dos compromissos assumidos, em circunstâncias muito específicas, amparadas por outro instituto do direito de obrigações, a saber, a onerosidade excessiva, esta prevista nos artigos 478 e seguintes do Código Civil. Com efeito, para o devedor se desobrigar diante de eventual situação de impossibilidade de cumprimento do que lhe compete, há pressupostos que devem ser preenchidos: o contrato deve ser de execução continuada ou diferida, e, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a prestação deve ter se tornado excessivamente onerosa, com a parte credora ficando em posição de extrema vantagem.

Em um contexto de fatos extraordinários como os que a sociedade tem recentemente enfrentado diante da pandemia de coronavírus (ou de quaisquer fatos que concretamente se caracterizassem como evento de caso fortuito ou força maior em uma dada relação jurídica), as partes sempre podem buscar a renegociação diante de qualquer dificuldade, repactuando a combinação original. E assim se recomenda fortemente. No mínimo o estado de prontidão para lidar com problemas e evitar litígios em qualquer relação jurídica em curso é dever legal que se impõe às partes sempre, em decorrência da cláusula geral de boa-fé consagrada em nosso ordenamento jurídico. Todavia, se a renegociação não for bem sucedida, em princípio vale o que foi combinado originalmente pelas partes.

Na prática, são os seguintes os conjuntos de hipóteses de liberação de um devedor por obrigações assumidas contratualmente: 1. pelo pagamento, isto é, o pleno cumprimento da obrigação, situação ordinária nas relações contratuais, a mais comum forma de liberação do devedor, incluídas neste conjunto de hipóteses também as formas especiais de cumprimento (as modalidades indiretas, como por exemplo, a dação em pagamento); 2. por quaisquer modos de extinção da obrigação diversos do adimplemento (como a compensação, a confusão, e a remissão da dívida); 3. pela cessão pro soluto da dívida, ou pela cessão da posição contratual, em que a obrigação continua existindo, mas assumida por terceiro, mediante aprovação do credor); 4. por comum acordo, que pode acarretar no distrato, isto é, o desfazimento do contrato por mútuo consenso das partes; 5. pela renegociação, em que a liberação da obrigação original decorre da sua substituição por uma nova, fruto da repactuação realizada (ocorrendo, portanto, novação); 6. pelo rompimento da relação por força da resolução, seja por iniciativa do credor (quando configurado o inadimplemento absoluto, suporte fático que o autoriza a cancelar o contrato), seja por iniciativa do devedor (quando caracterizada a onerosidade excessiva, nos termos do já mencionado artigo 478 do CC), ou ainda; 7. pela revisão contratual, quando, diante das mesmas circunstâncias que autorizam a resolução pelo devedor, há modificação equitativa dos termos e condições do contrato, em sede de juízo estatal ou arbitral (conforme previsto no artigo 479 do CC).

Em condições normais no curso da execução de obrigações, se o devedor descumpre aquilo que se comprometeu a fazer, ele responde, tanto no inadimplemento relativo quanto no absoluto, pelas perdas e danos que o descumprimento produzir na esfera do credor. Assim prevêem expressamente os artigos 389, e 395, parágrafo único do Código Civil. Entretanto, diante de uma situação de força maior ou caso fortuito, isto é, fato necessário e com efeitos inevitáveis, o legislador brasileiro optou, em regra, por uma distribuição específica de riscos, estabelecendo que nestes casos o devedor está isentado de arcar com os prejuízos.

É importante destacar que o que o legislador prevê é que o devedor não responde por perdas e danos relacionados à causa de força maior ou caso fortuito. Ou seja, o legislador não isenta o devedor de cumprir o pactuado, não o libera de suas obrigações. O devedor deve empreender seus melhores esforços para cumprir com aquilo que se comprometeu da maneira mais próxima possível ao originalmente previsto. Não há, no Código Civil ou em nenhuma outra passagem da legislação brasileira, autorização para que o devedor, por sua escolha, simplesmente descumpra em definitivo uma obrigação a que se comprometeu, mesmo quando existe situação de força maior ou caso fortuito. A regra é a expressa no brocardo latino pacta sunt servanda, que determina que os pactos celebrados devem ser cumpridos.

Em outras palavras, a força maior e o caso fortuito não têm o condão de retirar a obrigatoriedade dos contratos, de liberar o devedor de cumprir a prestação a que se comprometeu. Sem dúvida, um ou outro modificam o estado das coisas. Isto fica muito evidente diante de uma pandemia como a que a sociedade brasileira (e todo o mundo) agora enfrenta. Há milhares de contratos que estão com as suas execuções suspensas, pelas mais variadas razões, por exemplo (mas não só), porque os entes da Federação nas suas esferas de competência de fato restringiram circulação de bens e pessoas, impactando a capacidade de cumprimento de muitas obrigações. No mundo todo, o cenário é de insegurança. A título ilustrativo, parte das compras internacionais que foram realizadas para aquisição de insumos ou bens de consumo ou produção não estão sendo entregues, ou sequer chegando no território brasileiro, ora por complicações logísticas, ora por aumento de demanda e quebra de contrato pelos fornecedores internacionais, comprometendo a capacidade dos importadores de cumprir seus contratos internamente. Diante deste cenário, os devedores, em regra, não respondem pelos prejuízos sofridos por seus credores, em razão do rompimento do nexo causal entre o dano sofrido pelo credor e a conduta direta do devedor. Mas há exceções. Quando isto não acontece?

Há situações em que mesmo diante de evento de força maior ou caso fortuito o devedor responde pelos prejuízos e deve indenizar o credor por eventuais perdas e danos comprovados. A primeira ocorre quando há mora anterior ao evento de força maior ou caso fortuito. Naturalmente, se o descumprimento pelo devedor já existia, independentemente do evento impeditivo, isto é, se o devedor já estava em mora, ele responderá pelos prejuízos que causar ao credor, mas não apenas aqueles anteriores ao evento de força maior ou do caso fortuito, como também todos os prejuízos que se somarem no curso dos acontecimentos após a ocorrência do fato inevitável. É o que diz a primeira parte do artigo 399 do CC, e que a doutrina costuma referir como hipótese de perpetuação da obrigação, em que o devedor responde pela impossibilidade da prestação, ainda que decorrente de caso fortuito ou força maior3.

Uma segunda situação em que, ainda que confirmada concretamente a força maior ou o fortuito incidente sobre a capacidade do devedor de cumprir suas obrigações, os prejuízos devem ser por ele pessoalmente assumidos decorre de acordo entre as partes. Conforme previsto na parte final do artigo 393 do Código Civil, e em respeito à autonomia privada, o legislador estabelece que a força maior ou o caso fortuito não poderão ser invocadas pelo devedor para se eximir de sua responsabilidade contratual por eventuais prejuízos sofridos pelo credor se as partes tiverem definido expressamente hipóteses em que o devedor assume tais riscos e deve por eles responder. Daí a importância de as partes estabelecerem adequadamente a alocação de riscos, que deverá ser respeitada por qualquer julgador, em sede judicial ou arbitral, em caso de eventual conflito de interesses.

Uma terceira hipótese de exceção à regra geral de não responsabilização do devedor pelos prejuízos decorrentes do descumprimento diante de cenário de força maior ou caso fortuito, em concreto, pode ocorrer nas situações em que há prestações diversas previstas no contrato, algumas descumpridas em decorrência de razão do fato necessário e com efeitos inevitáveis, outras não (seja porque o fato não era concretamente necessário, ou seus efeitos eram evitáveis). Nestes casos, se os prejuízos não decorrerem apenas do evento de força maior ou do caso fortuito, a responsabilidade incidirá regularmente com relação à parcela de descumprimento não atribuível ao evento. Ou seja, o argumento de que fatos necessários e com efeitos prejudiciais inevitáveis pelas partes impediram o adequado cumprimento poderá ser usado para poupar o devedor da responsabilidade por prejuízos diretamente relacionados à força maior ou ao caso fortuito, mas não por prejuízos decorrentes de inadimplemento que seja imputável ao devedor. Naturalmente, há um desafio procedimental nestas hipóteses, pois as prestações devem ser destacáveis, para saber quais descumprimentos geram responsabilidade civil, e quais não.

E por fim, em quaisquer hipóteses em que não caracterizável a força maior ou o caso fortuito, inclusive, por exemplo, em todas em que há alocação específica de riscos por imposição legal ou pela própria natureza do negócio jurídico (portanto independente de previsão contratual expressa, ou, em alguns casos, até mesmo contra previsão contratual expressa), a responsabilidade por eventuais perdas e danos será sempre assumida pelo devedor. Incluem-se aí aquelas hipóteses construídas pela jurisprudência brasileira e designadas como ocorrências de "fortuito interno", aplicáveis em certas circunstâncias nas relações consumeristas, em que o risco de ocorrência de fatos incontroláveis que tragam prejuízo foi entendido como devendo ser absorvido pelo devedor (no caso o fornecedor) em função da própria natureza do negócio jurídico e de circunstâncias específicas do fornecimento de produtos e/ou serviços.

Em resumo, a força maior e o caso fortuito são, portanto, institutos de direito já posto e em vigor, previstos para utilização justamente em situações de crise, e que podem ser invocados pelo devedor em sua defesa desde que concretamente verificáveis como fator externo ao devedor e impeditivo ao regular cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, com disciplina legal estabelecida há tempos no direito brasileiro, inclusive sobre as exceções cabíveis.

Sem prejuízo, em virtude da crise instaurada pelo coronavírus, estão em curso várias iniciativas de mudanças legais, todas relacionadas aos impactos da pandemia, entre elas algumas com relação à disciplina da força maior e do caso fortuito, tanto oriundas do Executivo, quanto das duas casas do Legislativo. O curioso é que a previsão legal em vigor foi formulada justamente para dar conta de situações de excepcionalidade como a que vivemos. Embora pouquíssimas pessoas vivas já tenham tido experiência parecida com a desta pandemia (há idosos que sobreviveram à gripe espanhola, no início do século XX, e agora enfrentam a covid-19, mas raríssima é a memória viva da pandemia anterior), as regras sobre força maior e de caso fortuito remontam a tradições muito anteriores, do Direito Romano, o que recomenda prudência com relação a eventuais modificações legais.

A primeira mudança que merece algum destaque é aquela prevista no Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do Senador Antonio Anastasia, e que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus. Ele já foi aprovado no Senado e aguarda votação na Câmara de Deputados.

Em seu artigo 6º, o projeto prevê que as consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos. Parece que se procura criar um marco temporal definitivo para que os efeitos da pandemia possam ser invocados pelas partes contratantes. Na justificativa ao PL, consigna-se que "Os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou de força maior, mas não se aproveitam a obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia".

Naturalmente, a pandemia não pode ser usada para motivar qualquer descumprimento que tenha havido antes de sua própria ocorrência, mas a este resultado interpretativo já seria possível chegar com as regras vigentes do Código Civil, independente do PL 1.179/2020. Não obstante, o proposto artigo 6º parece não atentar para algumas hipóteses até bastante comuns, como as relações de trato sucessivo, ou mesmo negociações que já se encontravam em fase avançada e apenas seriam formalizadas por agora. Em outras palavras, como a aplicação dos efeitos de caso fortuito ou força maior, justamente porque não pode ser abstrata, só pode ser feita em cada caso concreto, não é possível de antemão definir, a partir de uma data específica, que nenhum contrato sofrerá ou deixará de sofrer impactos em decorrência da pandemia.

Mesmo com relação a eventuais contratos firmados depois do reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial de Saúde, ou depois da aprovação de qualquer lei subsequente a tal reconhecimento, é possível pensar, ainda que cada vez mais de maneira excepcional conforme mais dados e informações passam a ser paulatinamente conhecidos por toda a sociedade, que há consequências que as partes não podem evitar ou impedir. Especialmente no Brasil, em que, para além da crise sanitária, tem-se visto, sobrepostas, outras crises, de natureza econômica e política, em que cada semana parecem aparecer fatos novos que causam enorme insegurança jurídica.

Neste contexto, quaisquer alterações legislativas com parâmetros abstratos definitivos podem ter consequência desastrosa, contribuindo eventualmente inclusive para gerar, e não prevenir novos conflitos. Não se recomenda, portanto, que se estabeleça previsão legal genérica que impede a aplicação dos institutos a partir de certa data, sem atenção para as particularidades de cada relação jurídica em concreto.

Outra proposta de mudança legislativa que recomenda cuidado é aquela contida na Medida Provisória 948, de 08/04/2020, ora submetida à apreciação do Congresso Nacional, e editada especificamente para tratar sobre o cancelamento de serviços, reservas e eventos relacionados aos setores de turismo e cultura, em razão do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Entre outras disposições, a MP 948 prevê no seu artigo 5º que as relações de consumo por ela regidas se caracterizam como hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor.

Ou seja, de plano, mesmo sem atenção a consequências específicas nos casos concretos em relações de consumo, a MP prevê que todas as relações por ela contempladas devem ser entendidas como sujeitas a caso fortuito ou força maior. A ponderação que aqui se faz é no mesmo sentido daquela referente ao PL 1.179/2020, isto é, de um lado, a norma genericamente estende a aplicação dos institutos a situações que talvez não se enquadrassem como hipóteses de caso fortuito ou força maior, porque, ainda que impactadas pela pandemia, não teriam efeitos impossíveis de evitar ou impedir. E de outro a norma estabelece que em nenhuma hipótese é possível o pagamento de danos morais.

Naturalmente que muitas situações decorrentes da pandemia não devem estar de fato sujeitas a qualquer tipo de responsabilização dos devedores (na MP 948/2020, os fornecedores) por danos, sejam de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, mas a exclusão de forma sumária pela lei da possibilidade de reparação de um certo tipo de dano em toda e qualquer situação parece em desacordo com o princípio da reparação integral de danos (artigo 944 do CC), que inclui os de natureza extrapatrimonial, com reconhecimento inclusive em sede constitucional, conforme previsto no inciso X do artigo 5º da Constituição.

Em outras palavras, se configurada concretamente hipótese de caso fortuito ou força maior, a quebra do nexo causal impede a responsabilização do devedor em qualquer relação jurídica e também nestas relações específicas regidas pela MP 948 entre o consumidor e o fornecedor de produtos e/ou serviços. Entretanto, o perigo está na predefinição geral de que em todas as hipóteses os danos morais não poderão ser ressarcidos. Se existentes os danos, e se decorrentes de fato imputável ao fornecedor, ele deve responder. Assim, por exemplo, o cancelamento de um evento, um show, em virtude da pandemia, inclusive em observância a normas de restrição de circulação de pessoas, não pode gerar danos morais para o consumidor que comprou o ingresso, porque caracterizado o fortuito ou força maior. O consumidor deve, não obstante, ter o direito à restituição do valor pago, sob pena de enriquecimento sem causa da casa de espetáculo ou da produtora. Todavia, não deve, em princípio, fazer jus ao ressarcimento de danos, sejam morais ou mesmo materiais, justamente por conta do rompimento do nexo causal provocado pela situação de caso fortuito ou força maior.

Entretanto, se a casa de espetáculo não devolver o valor pago tampouco providenciar (i) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; (ii) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou (iii) oferecer outro acordo a ser formalizado com o consumidor, ou seja, se não apresentar nenhuma solução para o problema por nenhuma das formas previstas no artigo 2º da MP, a conduta (omissiva) do fornecedor pode gerar situações que, ainda que originalmente decorrentes da pandemia, podem não ser mais caracterizadas como fatos necessários e de efeitos inevitáveis (conforme verificação em cada caso concreto), e, neste caso, caberá sim indenização na medida do dano sofrido, seja ele de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, porque o dano será imputável ao fornecedor, não pela necessidade do cancelamento, mas pelos desdobramentos posteriores.

Em suma, sabe-se que a pandemia traz inúmeros desafios, de toda ordem, todavia, no que tange aos problemas jurídicos, é necessária bastante prudência para que os institutos já existentes sejam corretamente aplicados, e novos problemas, que poderiam ser evitados, não ocorram.

*Micaela Barros Barcelos Fernandes é doutoranda em Direito Civil pela UERJ, mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ, mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica pela UERJ, pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ, graduada em Direito pela UFRJ, sócia do escritório Demori Claudino Advogados, membro das Comissões de Direito Civil e de Direito da Concorrência da OAB - seção RJ.

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1 Para efeitos da disciplina legal, não há diferença prática entre os dois institutos, portanto não há relevância na sua diferenciação, embora os doutrinadores costumem diferenciá-los como um sendo mais decorrente de forças da natureza, e outro de ato humano (curiosamente, como se atos humanos não pertencessem à natureza).

2 O que, para muitos intérpretes, afasta a necessidade de questionamento sobre sua previsibilidade ou não pelas partes, importando apenas a impossibilidade do controle dos fatos.

3 Criando uma exceção a esta exceção, o legislador prevê que o devedor não responderá pelos prejuízos se provar isenção de culpa (em dispositivo que causa certo questionamento na doutrina, pois se não há culpa a mora não deveria sequer estar configurada, nos termos do artigo 396 do CC), ou ainda, quando provar que o dano sobreviria ao credor ainda que a obrigação fosse oportunamente desempenhada.