Resolução CNJ 547/2024, protesto de CDA e execução fiscal: gratuidade sem fonte de custeio
segunda-feira, 7 de outubro de 2024
Atualizado às 07:44
Para além do § 1º do art. 1º da lei 9.492/97, a recém editada Resolução CNJ 547/24 fez inserir, em caráter definitivo, o protesto da CDA - Certidão de Dívida Ativa - no contexto macro de recuperação do crédito tributário inadimplido. Com ela, os tabelionatos de protesto passam a desempenhar papel de grande relevância no cenário da arrecadação e cobrança da dívida ativa tributária e não tributária, em todas as esferas da administração pública do país.
Mas há uma questão delicada a ser enfrentada em futuro bem próximo. Um pequeno elefante na sala que, em breve, não passará mais despercebido: o exercício privado da atividade púbica desempenhada pelos Tabelionatos e a necessidade de sobrevivência dos entes delegados através de uma justa e adequada remuneração pelos serviços efetivamente prestados e pela reconhecida eficiência nos resultados alcançados através do seu trabalho.
Antes, porém, duas premissas precisam ser estabelecidas: a primeira delas, referente ao caráter altamente "desjudicializante" do protesto de títulos e, a segunda, relacionada ao que um tabelionato de protesto definitivamente NÃO É: empresa de cobrança remunerada através do êxito (circunstancial) no recebimento do crédito.
Quanto à primeira das premissas, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que não há nenhuma atividade extrajudicial que seja mais desjudicializante do que o protesto de títulos. Explica-se: uma vez intimado o devedor e não tendo sido paga a dívida no tríduo legal, lavra-se o protesto e, a partir daí, a única alternativa que remanesce ao credor é o ajuizamento de uma ação de cobrança ou de execução extrajudicial. A constatação, portanto, é óbvia e necessária: a cada título que é quitado em um Tabelionato de Protesto corresponderá, necessariamente, menos uma ação judicial deflagrada para a cobrança desse crédito.
Repita-se: cada dívida paga é menos um processo emperrando a já assoberbada máquina judicial. Desta forma, os Tabelionatos de Protesto do país seguem firme ao lado do Poder Judiciário na verdadeira cruzada para reduzir o estoque alarmante de processos no país e reduzir a taxa de congestionamento do Judiciário. A parceria, na exata dicção da Resolução CNJ 547/2024 e do que ela propõe, nunca esteve tão forte, o que é motivo de orgulho para todo o seguimento.
A segunda das premissas, porém, é: os tabelionatos de protesto não atuam como empresas de cobrança, vale dizer, não são remunerados por percentuais aplicados sobre o total arrecadado (em média de mercado que oscila entre 20% e 30% do valor recebido). Tabelionatos desempenham atividade pública, porém em caráter privado. Não há taxa de "êxito" ou taxa de "sucesso" no seu rol de serviços.
São remunerados por emolumentos, que são integralmente devidos na exata medida em que todo o procedimento previsto em lei tiver sido observado pelo Serviço Delegado. Se o cartório desempenhou toda a sua função, se observou todo o procedimento que a lei lhe exige, deve ser portanto integralmente remunerado por isso, independentemente do pagamento pelo devedor. Quem deve assumir o "risco" da inadimplência é o credor e a empresa de cobrança eventualmente contratada por ele, não o ente delegado, que nada tem com isso.
Esta segunda premissa traz uma consequência inafastável e que deve representar uma mudança na visão e na forma como o trabalho desempenhado pelos tabelionatos de protesto deve ser visto: Se não é o ente delegado que cria/constitui o título, se não é ele quem escolhe a forma de cobrança (call center, "negativação" direta ou qualquer outro meio), se não é o cartório que mantém uma base de dados atualizada e "higienizada" sobre os devedores, se o cartório não tem, enfim, NENHUMA ingerência sobre a formação do título ou como e quando ele vai ser cobrado, não faz nenhum sentido lógico ou jurídico que o serviço efetiva e integralmente prestado somente seja remunerado SE o devedor efetuar o pagamento da dívida.
Essa é a forma de atuação de empresas de cobrança que, repita-se, optam por assumir o risco de prestar o serviço sem receber por isso, mas assim agem por cobrarem percentuais robustos sobre o êxito eventualmente alcançado. Cartórios de protesto não são empresas de cobrança e, por desempenharem atividade pública, têm seus emolumentos fixados em lei, que devem ser pagos quando o serviço for prestado. Há uma doutrina inteira de Direito Administrativo a sustentar a tese...
A questão assume contornos ainda mais dramáticos quando se está a tratar especificamente da cobrança de créditos públicos, vale dizer, do protesto das Certidões de Dívida Ativa, objeto da Resolução CNJ 547/2024. Por inúmeras razões, dentre os quais a alta carga tributária do país (e sempre crescendo), a natureza de "rejeição social" da norma que obriga ao pagamento de impostos, além (principalmente) da péssima gestão que fazem as Fazendas Públicas (com raras e honrosas exceções) sobre os créditos que têm a receber, o índice de pagamento de CDAs no protesto é baixíssimo. Repita-se uma vez mais: por culpa exclusivamente do credor, não tendo o tabelionato de protesto nenhuma ingerência sobre os procedimentos administrativos prévios de cobrança deste crédito tributário.
Se o Conselho Nacional de Justiça, diante das circunstâncias apresentadas, vê como alvissareira a utilização do protesto ao invés da execução fiscal, tendo em vista que o protesto apresenta, nestes casos, uma média de 20% de recuperação face ao percentual de êxito de uma execução fiscal (em torno de 2%), o fato é que, se para o ente público recuperar 20 em cada 100 títulos é motivo de júbilo, para o Tabelionato de Protesto significa dizer que em cada 100 serviços integralmente prestados, em 80 deles o trabalho foi feito de forma absolutamente gratuita.
Todo o custo da operação, em 80 (!) de 100 casos, foi integralmente assumido pelo Tabelionato de Protesto, na tentativa de recuperar o crédito público (de toda a sociedade), incrementar a arrecadação pública (de toda a sociedade) e diminuir os processos em curso na Justiça. Mas por que deve fazê-lo de forma gratuita, se o serviço foi integralmente prestado? Por que somente os Tabelionatos de Protesto devem prestar gratuitamente seus serviços se toda a sociedade é beneficiada?
A inserção dos Tabelionatos de Protesto na esteira da recuperação do crédito tributário traz ainda um outro paradoxo. Todos os personagens envolvidos no ciclo de cobrança dos créditos tributários, desde o seu nascedouro (lançamento tributário) até os últimos esforços para o seu recebimento (processo de execução) são devidamente remunerados através de verba orçamentária própria, independentemente do sucesso ou insucesso, da eficiência ou ineficiência do seu trabalho dedicado à arrecadaçao.
Absolutamente nenhuma dessas personagens depende da adimplência do contribuinte para receber os valores que lhes são devidos pelo seu justo trabalho. A título ilustrativo, os Secretários de Fazenda, os servidores públicos administrativos das Secretarias (e outros órgãos de arrecadação) não dependem do efetivo pagamento do tributo para serem remunerados pelo seu trabalho.
As Procuradorias, seus Procuradores (Federais, estaduais, municipais, autárquicos etc.) e seu quadro funcional igualmente não dependem do efetivo pagamento do tributo pelo contribuinte. Os Magistrados e os serventuários da justiça afetos aos processos de execução fiscal não dependem, igualmente, do pagamento do tributo para terem acesso à justa remuneração pelo trabalho de excelência que prestam. A pergunta que remanesce (já a essa altura óbvia) é: por que apenas o tabelionato de protesto, que desempenha atividade pública, vai receber os seus emolumentos apenas SE E SOMENTE SE o contribuinte efetuar o pagamento da dívida?
Titulos com baixíssimo índice de recuperação têm sido apresentados a protesto por órgãos públicos ávidos por colocarem fim aos inúmeros processos de execução fiscal pendentes. Apesar de a Resolução CNJ 547/24 não condicionar a extinção da execução ao prévio protesto (não confundir com o fato de o protesto ser requisito para NOVAS execuções), o fato é que, a título de exemplo, no Rio de Janeiro, Tabelionatos de Protesto receberam CDAs contra as empresas Mesbla, Ultralar e Arapuã. São situações reais, concretas, que estão longe de constituirem mera exceção ou esgarçamento da regra.
O afã de se extinguirem execuções fiscais leva necessariamente à apresentação de títulos (CDAs) que se apresentam irrecuperáveis, fazendo com que os Tabelionatos de Prostesto tenham altos custos operacionais e, apesar de desempenharem integralmente a sua atividade, apesar de prestem integralmente o seu serviço, não recebam nenhum tipo de remuneração por isso.
Não existe gratuidade sem fonte de custeio. Não se pode exigir o trabalho gratuito de quem quer que seja, esperando-se que aquele percentual (ínfimo) de recebimento compense todo o trabalho que foi desenvolvido e entregue de forma gratuita. Não existe recebimento "condicionado" de emolumentos.
Comparativamente, os Registros Civis de Pessoas Naturais, os chamados "ofícios da cidadania", são obrigados por lei a fornecer gratuitamente inúmeras certidões de nascimento e óbito, além de diversos outros atos que praticam em benefício dos mais necessitados. Um belo trabalho desempenhado por estes entes delegados. Mas para fazer frente a estas gratuidades, foram criados, em todo o país, fundos de compensação, fundos de ressarcimento para estes atos gratuitos. E é assim que deve ser.
Não custa lembrar e repetir à exaustão: Não existe gratuidade sem fonte de custeio. O legislador, ao criar gratuidades, não pode exigir que aqueles que desempenham atividades em caráter privado, assumam todos os encargos financeiros para permitirem que aquele serviço seja prestado. É exatamente isso que está agora acontecendo com os Tabelionatos de Protesto, com sua saúde e sua viabilidade financeira seriamente comprometidas, por estarem assumindo a cobrança estatal dos créditos públicos, através do protesto da Dívida Ativa, sem a devida e correspondente remuneração por isso.
A situação, especialmente em pequenos cartórios do interior do país, pode se revelar bastante grave. É preciso refletir muito seriamente sobre essa questão ou ela, como um monstro, nos engolirá a todos.
O elefante está na sala. E crescendo..