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Multipropriedade mobiliária no mundo e no Brasil

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Atualizado em 27 de agosto de 2024 13:54

Introdução

A multipropriedade, também conhecida como propriedade compartilhada ou time-sharing, é um instituto jurídico que permite a múltiplos titulares compartilhar o domínio de um mesmo bem, de forma que cada um possa usar e gozar da coisa durante um período de tempo determinado (TEPEDINO, 2019, p. 5). Esse modelo de propriedade tem ganhado relevância nas últimas décadas, especialmente no setor imobiliário como uma alternativa para o acesso a bens de alto valor agregado, a exemplo dos imóveis de veraneio (OLIVEIRA, 2019, p. 23).

No entanto, a multipropriedade não se restringe a bens imóveis, podendo incidir também sobre bens móveis, dando origem à denominada multipropriedade mobiliária. Essa modalidade, embora menos difundida que a imobiliária, apresenta grande potencial de expansão na medida em que permite o compartilhamento de bens como embarcações, aeronaves, veículos e equipamentos de alto custo (MARCATO, 2018, p. 15).

O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto da multipropriedade mobiliária, abordando seu conceito, características e regulamentação em diferentes países, com especial ênfase no tratamento conferido pelo projeto de lei 3.801/20, em tramitação no Congresso Nacional brasileiro.

Conceito de Multipropriedade Mobiliária

2.1. Definição

A multipropriedade mobiliária, à semelhança da imobiliária, pode ser definida como um regime de condomínio especial, no qual cada coproprietário é titular de uma fração de tempo, correspondente a um direito real de propriedade sobre um bem móvel corpóreo. Essa fração confere ao multiproprietário as faculdades de usar, gozar, fruir e dispor do bem com exclusividade, de forma alternada com os demais titulares, segundo as regras estabelecidas no memorial de instituição e na convenção do condomínio (MARCATO, 2018, p. 17).

2.2. Características

A multipropriedade mobiliária apresenta algumas características distintivas em relação à propriedade tradicional. Em primeiro lugar, há uma dissociação entre a titularidade do direito e o uso do bem, uma vez que cada multiproprietário só pode exercer seus poderes durante o período correspondente à sua fração de tempo (TEPEDINO, 2019, p. 8). Além disso, o objeto da multipropriedade é indivisível, não se sujeitando a ações de divisão ou extinção de condomínio. Cada fração de tempo é, por sua vez, uma parte indivisível, à qual se vincula uma fração ideal do patrimônio condominial como um todo (MARCATO, 2018, p. 19).

Outra característica relevante é a possibilidade de instituição da multipropriedade sobre um conjunto de bens da mesma espécie, e não apenas sobre um único bem. Nessa hipótese, os multiproprietários terão direito a usar os bens de forma alternada, segundo critérios predefinidos, o que confere maior flexibilidade e eficiência ao aproveitamento dos bens (OLIVEIRA, 2019, p. 27).

2.3. Direitos dos Multiproprietários

Os multiproprietários têm direito a usar, gozar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo, com exclusividade. Podem, ainda, ceder sua fração em locação ou comodato, bem como aliená-la ou onerá-la livremente, independentemente da anuência dos demais multiproprietários (MARCATO, 2018, p. 22).

No entanto, os multiproprietários também estão sujeitos a algumas obrigações, como o dever de contribuir para as despesas de conservação e manutenção do bem, proporcionalmente à sua fração ideal e de usar o bem segundo sua destinação, abstendo-se de atos que possam prejudicar os demais titulares (TEPEDINO, 2019, p. 12).

3.0. Multipropriedade Mobiliária no Mundo

3.1. França

3.1.1. Histórico

A França foi um dos primeiros países a regulamentar a multipropriedade, inicialmente no setor imobiliário. A lei 86-18, de 6/1/86, disciplinou a multipropriedade imobiliária, estabelecendo regras para sua constituição, administração e extinção (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 35).

Posteriormente, a multipropriedade mobiliária também passou a ser admitida com base nas regras gerais do Direito Civil Francês. Embora não haja uma lei específica sobre o tema, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido a validade dessa modalidade de propriedade compartilhada (ATIAS, 2018, p. 42).

3.1.2. Regulamentação Legal

Na ausência de uma lei específica, a multipropriedade mobiliária na França é regida pelas disposições gerais do Código Civil sobre a propriedade e o condomínio, com as adaptações necessárias. Aplicam-se, ainda, as normas de proteção ao consumidor, especialmente em relação aos contratos de aquisição de frações de tempo (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 38).

A doutrina francesa tem defendido a necessidade de uma regulamentação própria para a multipropriedade mobiliária, a fim de conferir maior segurança jurídica e transparência às relações entre os multiproprietários e destes com terceiros (ATIAS, 2018, p. 45).

3.1.3. Natureza Jurídica

Segundo a doutrina majoritária francesa, a multipropriedade mobiliária constitui um direito real de propriedade sobre a fração de tempo, atribuindo ao multiproprietário as prerrogativas de usar, gozar e dispor do bem durante o período correspondente (SAINT-ALARY-HOUIN, 2019, p. 41).

Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade plena, ainda que limitada no tempo, e não de um direito real sobre coisa alheia. Nesse sentido, o multiproprietário pode alienar ou onerar sua fração de tempo, sem necessidade de anuência dos demais titulares (ATIAS, 2018, p. 48).

3.2. Alemanha

3.2.1. Regulamentação Legal

Na Alemanha, a multipropriedade mobiliária é regulada pela lei de contratos de habitação temporária (teilzeit-wohnrechtegesetz), de 20/12/96. Essa lei estabelece normas específicas para a celebração de contratos que tenham por objeto o direito de uso temporário de bens móveis, como embarcações e veículos recreativos (SCHMIDT, 2019, p. 52).

A lei alemã impõe uma série de requisitos formais e materiais para a validade desses contratos, visando a proteger os adquirentes de frações de tempo. Entre outras disposições, a lei prevê um direito de arrependimento em favor do adquirente, exercível no prazo de 14 dias após a celebração do contrato (SCHMIDT, 2019, p. 55).

3.2.2. Natureza Jurídica

De acordo com a doutrina alemã prevalente, a multipropriedade mobiliária configura um direito real limitado, que confere ao titular o uso e gozo do bem durante o período de sua fração, mas com restrições quanto à faculdade de disposição (OECHSLER, 2018, p. 61). Isso porque, segundo essa corrente, a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais multiproprietários, uma vez que pode afetar a destinação comum do bem. Trata-se, assim, de um direito real sui generis, que não se confunde com a propriedade plena (OECHSLER, 2018, p. 63).

3.3. Inglaterra

3.3.1. Aplicação da Multipropriedade Mobiliária

Na Inglaterra, a multipropriedade mobiliária tem sido utilizada principalmente em relação a bens como iates e aeronaves, permitindo o compartilhamento dos elevados custos de aquisição e manutenção desses bens (SMITH, 2019, p. 68).

A prática tem se disseminado por meio de arranjos contratuais variados, que vão desde a copropriedade tradicional até a constituição de clubes ou sociedades de proprietários, passando pela celebração de contratos de locação de longa duração (SMITH, 2019, p. 71).

3.3.2. Regulamentação Legal

Não há, na Inglaterra, uma legislação específica sobre a multipropriedade mobiliária. Aplicam-se, assim, as regras gerais do direito contratual e do direito de propriedade, com as adaptações necessárias a cada caso concreto (SMITH, 2019, p. 74).

Os tribunais ingleses têm reconhecido a validade e a eficácia dos arranjos de multipropriedade mobiliária, desde que observados os requisitos legais para a constituição e transferência da propriedade sobre bens móveis, bem como as normas de proteção ao consumidor (SMITH, 2019, p. 77).

3.3.3. Natureza Jurídica

Na Inglaterra, prevalece o entendimento de que a multipropriedade mobiliária constitui um direito de propriedade pleno sobre a fração de tempo, incluindo os poderes de usar, gozar, fruir e dispor do bem durante o período correspondente (SMITH, 2019, p. 80). Esse direito é oponível erga omnes e pode ser livremente cedido ou transferido pelo multiproprietário, independentemente do consentimento dos demais titulares. Trata-se, portanto, de uma forma de propriedade individual, ainda que temporalmente limitada (SMITH, 2019, p. 83).

3.4. Espanha

3.4.1. Regulamentação Legal

A Espanha conta com uma regulamentação específica para a multipropriedade mobiliária, introduzida pela lei 4/12, de 6/7, que estabelece normas sobre os contratos de aproveitamento por turno de bens móveis (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 88).

Essa lei define os requisitos para a celebração e execução desses contratos, os direitos e deveres das partes, as regras de publicidade e informação ao consumidor, entre outros aspectos. Aplica-se tanto aos contratos celebrados na Espanha quanto àqueles firmados no exterior, desde que envolvam bens situados em território espanhol (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 91).

3.4.2. Natureza Jurídica

Segundo a doutrina espanhola majoritária, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de aproveitamento por turno, que atribui ao titular o uso e gozo do bem durante sua fração de tempo, mas com limitações quanto à faculdade de disposição (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 94).

Isso porque a lei espanhola condiciona a alienação ou oneração da fração de tempo à concordância dos demais multiproprietários, visando a preservar a destinação comum do bem.

Trata-se, assim, de um direito real autônomo, distinto da propriedade plena (GARCÍA GARNICA, 2019, p. 97).

3.5. Portugal

3.5.1. Regulamentação Legal

Em Portugal, a multipropriedade mobiliária é regulada pelo decreto-lei 275/93, de 5/8, que disciplina o direito real de habitação periódica. Embora essa norma se refira expressamente a imóveis, a doutrina e a jurisprudência têm admitido sua aplicação, por analogia, aos contratos de direito de habitação temporária em bens móveis (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 102).

O decreto-lei português estabelece as regras para a constituição, exercício e extinção do direito de habitação periódica, bem como os requisitos de validade dos contratos que tenham por objeto esse direito. Prevê, ainda, normas de proteção aos adquirentes, como o direito de arrependimento e a proibição de práticas comerciais abusivas (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 105).

3.5.2. Natureza Jurídica

De acordo com a doutrina portuguesa dominante, a multipropriedade mobiliária configura um direito real de habitação periódica, que confere ao titular o poder de usar e fruir do bem durante o período correspondente à sua fração de tempo (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 108).

No entanto, esse direito está sujeito a limitações quanto à faculdade de disposição, uma vez que a alienação ou oneração da fração de tempo depende da anuência dos demais titulares. Trata-se, portanto, de um direito real limitado, distinto da propriedade plena (CARVALHO FERNANDES, 2018, p. 111).