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Dilema jurídico de assinatura eletrônica entre cartório e instituição financeira

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Atualizado às 07:59

Resumo

O cerne deste micro opúsculo cinge-se ao seguinte problema: conquanto permitido legalmente o uso de assinatura eletrônica avançada e qualificada às instituições financeiras atuantes com crédito imobiliário, utilizado pelos clientes em grande parte a assinatura avançada na plataforma gov.br, o oficial de imóveis, ao revés, não tem autorização legal para aceitá-las, por ausência de permissão do CNJ, ensejando, assim, um dilema jurídico superável pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, afastando-se a regra tempus regit actum.

Introdução

A assinatura eletrônica foi instituída inicialmente pela MP 2.200-2/01, cujo seu artigo 1º define bem o seu conceito legal: "a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica (...), bem como a realização de transações eletrônicas seguras".

O certificado digital ICP-BR garante autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos (públicos e privados) em formato eletrônico, bem como as declarações constantes nesses documentos presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/2001 c/c o art. 219 do CC.

Aliás, o conceito normativo de certificado digital ICP-BR é muito semelhante ao conceito normativo de assinatura eletrônica notarizada prevista no inciso I do art. 285 do prov. 149/23 do CNN/CN/CNJ-Extra1, ao dizer que se considera "assinatura eletrônica notarizada: qualquer forma de verificação de autoria, integridade e autenticidade de um documento eletrônico realizada por um notário, atribuindo fé pública".

Note-se que as normas do CNJ e da MP 2.200-2/01 pretendem garantir a segurança na autoria, autenticidade, integridade e validade jurídica aos documentos (públicos e privados) em formato eletrônico.

A validade da certificação digital dar-se-á pela certificadora raiz da ICP-BR, por meio de ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (art. 12 da MP 2.200-2/01), disponível no site "https://validar.iti.gov.br/".

Por meio da lei 14.063/20, foram criadas as assinaturas eletrônicas simples, avançada e qualificada (art. 4º, incisos I, II e III), conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, sendo que a assinatura eletrônica qualificada - que utiliza certificado digital ICP-BR (art. 4º, inciso III) - é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos (§ 1º do art. 4º).

Nos atos de transferência e registro de imóveis, será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20). Entretanto, o § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, alterado pela lei 14.382/22, autorizou a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos que envolvam imóveis.

Outrossim, o art. 38 da lei 11.977/09, alterado pela lei 14.382/22, também permitiu que os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada. No tocante ao registro de imóveis, o § 2º do art. 38 da lei 11.977/09, também permitiu ao CNJ estabelecer hipóteses de admissão de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis.

Até então, nesse contexto, os instrumentos contendo atos de imóveis (transferência de titularidade ou ônus reais) requerem assinatura eletrônica qualificada, salvante outras hipóteses a serem autorizadas pelo CNJ, permitindo a assinatura avançada em atos de imóveis.

2. Assinatura eletrônica nas instituições financeiras e a plataforma gov.br

As instituições financeiras, que atuam com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20 alterado pela lei 14.620/23).

É importante ressaltar que o art. 17-A da lei 14.063/20 fala expressamente em "celebração", em vez de "registro" ou "averbação", implicando, por conseguinte, que se trata de formalização de contrato entre a instituição financeira e o seu partícipe, em momento anterior ao registro de imóvel.

As instituições financeiras solicitam ao cliente o uso de plataforma gov.br para assinar eletronicamente. Ocorre que a em grande parte das vezes quando da utilização desta plataforma, o cliente se utiliza da assinatura eletrônica avançada, e não da qualificada.

As identidades digitais da plataforma gov.br estão classificadas em três tipos: i) Identidade Digital Bronze; ii) Identidade Digital Prata; e iii) Identidade Digital Ouro, sendo que a bronze usará assinatura simples, ao passo que as duas últimas (prata e ouro), usaram as assinaturas simples e avançada (art. 1º, § 3º, da portaria SEDGGME 2.154/21), salvante para os atos de transferência e de registro de bens imóveis, que somente poderá usar assinatura qualificada (art. 1º, § 4º, da portaria SEDGGME 2.154/2021 c/c o art. 4º, inciso III, alínea "a", do Decreto Federal 10.543/20).

Dessa maneira, percebe-se que, as normas da plataforma gov.br permitam assinaturas eletrônicas avançada e qualificada. No entanto, os clientes na maioria das vezes, por não possuírem certificado digital ICP-Brasil, se utilizam da assinatura avançada.

3. Dilema normativo: Assinatura eletrônica da plataforma gov.br versus cartório de imóveis

Sucede que, à luz da doutrina de Clóvis V. do Couto e Silva, no seu livro "A obrigação como processo", ao dizer, em suma, que a boa-fé contratual vai desde a celebração até o registro de imóveis, tudo indica que o art. 17-A da lei 14.063/20 criou um hiato jurídico com a regulamentação jurídica de assinatura eletrônica no registro de imóveis.

O art. 38 da lei 11.977/09 determina que atos de registros públicos deverão ser inseridos no registro eletrônico2, permitindo a criação da plataforma mantida pelo ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, integrado atualmente pelo ON-RCPN - Operador Nacional do Registro Civil das Pessoas Naturais, pelo ON-RTDPJ - Operador Nacional do Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas.

O § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.393/22, permite a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada para atos envolvendo registro de imóveis, algo que, até então, parece que não houve qualquer previsão.

Eis aí o aparente dilema registral com duas legislações válidas e eficazes: enquanto uma norma permite à instituição financeira atuante com crédito imobiliário o uso de assinatura eletrônica avançada (art. 17-A da lei 14.063/20); uma outra norma não permite aceitá-la para o registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), até decisão em contrário da Corregedoria Nacional de Justiça (§ 2º do art. 17 da lei 6.015/73).

4. Uma ideia resolutiva ao dilema normativo sobre assinaturas eletrônicas

Uma ideia resolutiva ao dilema normativo sobre assinaturas eletrônicas - à luz da teoria de Clóvis V. do Couto e Silva ("A obrigação como processo") - seria a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos3, positivado em nosso Código Civil. Por exemplo, "em caso de cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador" (art. 1.899); "na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo casamento, se os cônjuges, cujo casamento se impugna, viverem ou tiverem vivido na posse do estado de casados" (art. 1.547); "não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé" (art. 523).

Desse modo, seria possível interpretar as leis 14.063/20 (assinaturas eletrônicas) e 6.015/73 (lei de registros públicos) à luz do princípio da conservação dos negócios jurídicos, afastando-se, portanto, da regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro, sendo irrelevante a data de sua celebração.

Então, uma vez iniciada a obrigação contratual com instituição financeira contendo assinatura avançada, tudo indica que a serventia de imóveis deveria aceitá-la, com o intuito de terminar a referida obrigação, à luz da teoria de "A obrigação como processo", mais conhecida como princípio da boa-fé objetiva contratual, positivado no art. 422 do Código Civil4, sem implicar, d'outro lado, violação normativa à legislação específica sobre registro de imóveis.

Em que pese tal argumentação, entendemos que até ulterior regulamentação das assinaturas avançadas pelo CNJ para uso junto ao registro de imóveis, não é possível sua aceitação pelo Oficial Registrador.

4.1 Mitigação da assinatura eletrônica qualificada em títulos do agronegócio

Agora, há uma outra situação fora daquele hiato jurídico criado pelo 17-A da lei 14.063/20, que é exatamente quando a legislação permite à cédula de crédito o uso de assinatura eletrônica avançada. Desse modo, tudo indica uma mitigação legal à obrigatoriedade de assinatura eletrônica qualificada para os atos de imóveis. Aqui se adentra nos títulos do agronegócio.

Na CCB - cédula de crédito bancário, por exemplo, foi permitida assinatura eletrônica de maneira genérica (§ 5º do art. 20 da lei 10.931/04, alterada pela lei 13.986/20), condicionando apenas a garantia de identificação inequívoca de seu signatário, sem qualquer remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01, como fizeram expressamente outras leis e legislações (lei 6.015/73 e decreto federal 10.543/20).

Outrossim, na cédula de crédito rural hipotecária e/ou pignoratícia, também foi permitida ao emitente ou representante (com poderes especiais) a assinatura eletrônica, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário, nos termos inciso IX do art. 14 c/c o inciso IX do art. 20, ambos do decreto-lei 167/67, sem qualquer tipo de remissão à observância da lei 14.063/20 ou da MP 2.200-2/01.

Na cédula de produto rural - CPR (lei 8.929/94), por sua vez, já foi bem mais específica que a CCB, permitindo expressamente assinatura eletrônica avançada ou qualificada para registro e averbação constituída por bens móveis e imóveis, nos termos do inciso II do § 4º do art. 3º da lei 8.929/94, incluído pela lei 13.986/20.

Assim, quando se trata de títulos envolvendo o agronegócio, tudo indica uma mitigação legal a obrigatoriedade de assinatura eletrônica qualificada, quando emitidas por instituições financeiras que atuam com crédito imobiliário, até decisão em contrário do CNJ.

5. Conclusão

Em que pese a grande evolução tecnológica nos negócios privados e públicos, a exemplo de assinaturas eletrônicas e de Serp - sistema eletrônico dos Registros Públicos, tudo indica uma ausência de normas sistemáticas, permitindo a sua celebração contratual, mas não permite o seu ingresso no registro de imóveis.

Após criação jurídica de chave digital ICP-BR (MP 2.200-2/01), sendo classificada como assinatura eletrônica qualificada para os atos de registro de imóveis (art. 5º, § 2º, inciso IV, da lei 14.063/20), representou um grande avanço aos negócios jurídicos, notadamente a criação de meios para uso de documentos nato-digitais.

Acontece que, para celebração de contratos com instituição financeira atuante com crédito imobiliário, permitiu-se a assinatura eletrônica avançada e qualificada (art. 17-A da lei 14.063/20, incluído pela lei 14.620/23), sem qualquer ressalva expressa ao § 2º do art. 17 da lei 6.015/73, que permite à Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ estabelecer hipóteses de uso de assinatura avançada em atos que envolvam imóveis.

Para piorar, quando a instituição financeira solicita ao cliente assinatura pela plataforma gov.br, ainda que a finalidade seja a segurança da celebração contratual, ensejou a criação de um problema registral, qual seja, na maioria das vezes, por não ter ICP-Brasil o cliente assina através da assinatura avançada, que até o momento não teve sua regulamentação pelo CNJ.

Dessa maneira, ocorre o seguinte dilema jurídico: Conquanto permitida a celebração de contrato bancário com assinatura avançada, não é permitido o seu ingresso no fólio real, por ausência de permissão da Corregedoria Nacional de Justiça.

Assim, para resolver esse dilema jurídica, argumentativamente seria razoável aplicar o princípio da conservação dos negócios jurídicos - já positivado em nosso direito civil -, junto com o princípio da boa-fé objetiva contratual (art. 422 do CC), em vez de aplicar a regra tempus regit actum, a qual significa que o título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro. D'outro lado, nos títulos do agronegócio com instituição financeira por meio de CPR e CCB, tudo indica uma mitigação à obrigatoriedade de assinatura eletrônica qualificada.

No entanto, por outro lado, o oficial de registro de imóveis não possui, até o momento, autorização por parte do CNJ para recepcionar títulos com assinatura eletrônica avançada (exceto certos títulos do agronegócio, que como visto, possuem normativa especial).

Portanto, e devido à ausência de sintonia legislativa, será prudente interpretar cum grano salis as normas de assinaturas eletrônicas no registro de imóveis, a fim de manter em sintonia a boa-fé objetiva contratual com o sistema de registro de imóveis.

________

1 Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra).

2 Cf. o art. 76 da Lei nº 13.465/2017 c/c o Provimento nº 89/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. Em seguida, foi publicada a lei 14.382/22, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) c/c o Prov. 149/2023 do CNN/ CN/CNJ-Extra.

3 BUZAR, Maurício. A invalidade do negócio jurídico. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 181-183.

4 "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."