COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas Notariais e Registrais >
  4. Aldemário troca-letras - Seção "Tudo é verdade e dou fé"

Aldemário troca-letras - Seção "Tudo é verdade e dou fé"

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Atualizado às 08:17

Aldemário Silveira foi um escrevente habilitado de uma pequena serventia de Registro de Imóveis. Apesar de ser admirado e reconhecido por ser um colega leal, bom datilógrafo, exímio nas contas, acabou não passando disso. Ele sabia tudo de geometria e aritmética, calculava a área de complexas figuras geodésicas, sabia como ninguém lidar com as frações ideais, extraía raízes quadradas e cúbicas, mas não dominava com destreza o principal instrumento de um bom cartorário: a linguagem.

Passados mais de cinco anos, Aldemário foi elevado automaticamente a escrevente habilitado, sem submeter-se ao exame de habilitação que àquela época era exigido. Temia ser reprovado pela banca composta pelo juiz, um tabelião e um registrador da comarca. A partir de então, Aldemário se especializaria em examinar e registrar títulos judiciais.

Fazia rapidamente os cálculos de frações, verificava a exatidão do recolhimento do imposto, era mais preciso e rigoroso que o partidor da comarca. Gostava de ler especialmente os formais de partilha, queria saber detalhes que cercaram a vida do de cujus. Do que morreu? Foi morte súbita ou doença crônica? Deixou filhos? Brigavam entre si? Se o velho deixara amante, o assunto lhe atraía especialmente. Quanto mais grosso o litígio, mais ele se entretinha. Diziam que era "braço curto", mas isso era uma injustiça, já que ele sempre acabava cumprindo suas tarefas no prazo.

Havia, no entanto, um aspecto pitoresco de sua personalidade: Aldemário era um incorrigível troca-letras. Tinha uma inteligência brilhante, é verdade, mas às vezes nos revelava pérolas, como "atende o telofone" (em vez de telefone), "troca as tocoveleiras" (em vez de cotoveleiras).

Todos ríamos das situações engraçadas nas quais ele se metia e das expressões que todo cartorário sabia de cor e logicamente evitava, mas Aldemário repetia inocentemente: "certidão de objeto em pé; "mandato de penhora"... Deixava escapar, vez por outra, numa nota devolutiva, um "retifique-se o formol de partilha", ou "não se respeitou a meiação do cônjuge supérstite", pedia a "certidão negativa de anos e alienações" e outras coisas do gênero. Todos mofavam de suas escorregadelas. Às vezes, quando líamos para ele em voz alta uma transcrição, nos interrompia: "confronta com quem?" E todos, à volta, repetíamos em uníssono: "confronta com quem de direito". Para ele essa expressão, tipicamente cartorária, não fazia o menor sentido, "imóvel confronta com imóvel, não com pessoas... Coisas não podem ser sujeitos de direito", resmungava, e seguia datilografando.

Um dia, porém, ele se excedeu. Ao registrar um formal de partilha oriundo de um inventário litigioso, no qual os herdeiros e uma concubina, insinuante atriz de teatro, disputavam o acervo, Aldemário deixou escapar no ato de registro: o "espírito de fulano de tal" - em vez de o "espólio de fulano de tal". Ele lavrou e subscreveu tranquilamente o ato, o escrevente autorizado lhe seguiu como de costume, o Oficial emitiu a certidão do ato praticado e a parte retirou o título no balcão.

Tudo seguia seu curso remansoso até que, dias depois, um advogado muito conhecido na comarca - homem falastrão, muito sagaz e espirituoso -dirigiu uma petição sardônica ao Oficial do Registro, requerendo providências nos seguintes termos: 

"Sr. Oficial.

Na qualidade de advogado e representante de Fulano e de Cicrano, herdeiros do falecido pai Beltrano, venho requerer a V. Sa. que retifique o ato de registro praticado, por representar engano evidente cometido, nos termos do art. 228 do Regulamento.

Em nome dos herdeiros, da legatária, e atendendo especialmente a um chamamento do além, requeiro as providências cabíveis antes que a diatribe se traslade dos tribunais para um centro espírita, ou para um ringue de Telecatch.

Como de costume, exigimos que admita o erro e suporte a corrigenda e que o retifique imediatamente." 

A petição irritou profundamente o Oficial. Ele não era dado a gracejos e tinha um mau-humor temível. Jamais sorria, odiava piadas, abominava comédias. Até mesmo juízes e promotores que passaram pela comarca o temiam. Sua ranzinzice fez fama além da comuna. Com os bofes virados, recebeu a petição e deu o andamento cabível.

Os filhos e a amante se odiavam, e esse pequeno acidente acabou por acirrar as controvérsias. Difamavam-se mutuamente. Os legitimários a chamavam de "barregã lasciva e lúbrica"; a legatária devolvia com "janotas arrivistas e idiotas espanéficos". As expressões provinham certamente do vocabulário prolixo do chicaneiro que parecia divertir-se açulando o conflito

Entretanto, o assunto realmente explodiu quando o editor de um conhecido jornal sensacionalista manchetou, entre fotos de mulheres a pelo e assassinatos à queima-roupa: "Espírito de falecido desce para fazer justiça no cartório de imóveis".

Durante uma semana inteira não se falava de outra coisa. Aldemário chegava em silêncio e saía mudo do cartório. Os colegas riam à sorrelfa, faziam troça do pobre escrevente habilitado. Pouco a pouco, ele perdia o interesse pelos rumorosos processos litigiosos, tornava-se taciturno e triste.

Não tardou e se exoneraria do cartório. Abandonou a velha máquina de escrever, os carimbos, a almofada violeta com seu nome cinzelado, o Código Civil puído e foi dedicar-se ao cultivo de orquídeas e avencas. Viveu solitariamente até o seu derradeiro dia. Diziam que decifrava o código secreto da natureza inscrito nas flores e discernia os mistérios da proporção divina nos pequenos fetos que se lançavam ao sol preguiçosamente. Nunca mais vi o pobre Aldemário troca-letras. Os velhos escreventes, já aposentados, diziam que partira há algum tempo e hoje descansa numa pequena campa do Recanto da Paz, cercado de glicínias e ipomeias. Todo o referido é verdade e dou fé.