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Procedimento de autotutela registral (art. 214 da Lei de Registros Públicos): limites objetivos

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Atualizado às 09:06

Noções gerais

Conforme já expusemos na coluna anterior, o procedimento de autotutela registral (previsto no art. 214 da Lei de Registros Públicos - LRP) é de natureza administrativa. Veja o referido dispositivo:

"Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta.            

§ 1o A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos.                    

§ 2o Da decisão tomada no caso do § 1o caberá apelação ou agravo conforme o caso.                      

§ 3o Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel.                

§ 4o Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio.          

§ 5o A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel."    

Neste artigo, discutiremos quais são os limites objetivos desse procedimento.

O procedimento de autotutela registral objetiva a decretação da nulidade de registro lato sensu no âmbito do Cartório de Imóveis.

Entende-se por registro lato sensu todos os atos praticados pelo registrador de imóveis, como a abertura de matrícula, o registro (stricto sensu) e a averbação.

Por conta da grande sensibilidade social e econômica da invalidação de um registro, com ameaça potencial a interesse de terceiros, somente o juiz é competente para a decretação da nulidade, após garantir o contraditório aos interessados (art. 214, § 3º, da LRP). Também se deve ouvir o Ministério Público diante de sua condição de custos legis (fiscal da lei) em procedimentos registrais, que envolvem interesse público e social (art. 178, I, CPC)1. Se o oficial se deparar com algum registro nulo, é seu dever comunicar ao juiz para a decretação da nulidade.

Como o procedimento pode durar um tempo considerável para seu desfecho, o juiz, de ofício, deverá determinar o bloqueio da matrícula caso identifique riscos de danos de difícil reparação em desfavor de terceiros, hipótese em que os títulos que vierem a ser prenotados ficarão à espera da solução final do procedimento de autotutela registral (arts. 214, §§ 3º e 4º, da LRP).

Classificação das nulidades do registro quanto à origem e o procedimento da autotutela registral

Sob uma classificação quanto à origem, a nulidade do registro pode ser de duas espécies:

a) Nulidade por vícios tabulares2: é a nulidade em razão de inobservância de regras inerentes à própria técnica registral, ou seja, de vícios intrínsecos ao ato registral. Trata-se de vícios perceptíveis a partir da mera consulta da matrícula, sem necessidade de recorrer a fatos extratabulares. Cuida-se de vícios provocados por falhas na prestação do serviço público registral. O principal exemplo é a duplicidade de matrículas abrangendo a mesma área, o que costuma acontecer em matrículas antigas, com descrições precárias dos perímetros dos imóveis.

b) nulidade por vícios extratabulares: é a que provém de irregularidades no título ou no ato jurídico subjacente, como vícios de inexistência ou invalidade do título ou do ato jurídico subjacente. Como exemplos, citam-se casos de reivindicação, pelo Poder Público, da titularidade do imóvel representado pela matrícula. Ilustramos, ainda, casos de registros feitos de negócios jurídicos anuláveis por fraude contra credores, nulos por simulação, inexistentes por escorarem-se em procurações falsas etc. Alerte-se que, quando o fato jurídico inscritível é ineficaz, entendemos que o registro também será ineficaz, e não nulo. É o que se dá na hipótese de negócios jurídicos ineficazes por fraude à execução. Todavia, para efeito de classificação - para evitar dispersões taxonômica -, incluiremos essas situações de ineficácia do registro dentro da categoria ora exposta.

O procedimento de autotutela registral limita-se às hipóteses de nulidade por vício tabular, pois seu objetivo é restaurar a regularidade rompida por uma falha do registrador no momento da prática do ato registral. Trata-se de medida fundamental em termos de interesse social e econômico, inspirando confiança na sociedade e no mercado em relação aos registros públicos.

A nulidade decretada em sede de procedimento de autotutela registral não alcança o título ou o ato jurídico subjacente, mas apenas o seu registro. Daí decorre que, em princípio, o título seguirá apto a produzir todos os efeitos, inclusive o de vir a ser registrado acaso tenham sido sanadas as restrições registrais. É o que lembra a talentosa tabeliã Martha El Debs, in literis (EL DEBS, Martha. Legislação Notarial e de Registros Públicos comentada - artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 1226):

A nulidade a que se refere o art. 214 da Lei de Registros Públicos é exclusiva do registro, absolutamente independente do título, tanto que, uma vez declarada, permite que o mesmo título seja novamente registrado.

A nulidade que pode ser declarada independente de ação é de direito formal, extrínseca. Ela não pode alcançar o título, que subsiste íntegro e, em muitos casos, apto a, novamente, ingressar no registro.

Nas hipóteses de vicíos extratabulares, caberá ao prejudicado servir-se das medidas judiciais que entender cabível para o desfazimento do título ou do ato jurídico subjacente, o que, por ricochete, acarretará a invalidação ou a decretação da ineficácia do registro. Nessa hipótese, a "queda do registro" é uma decorrência da "queda" do título ou ato jurídico subjacente.

Assim, por exemplo, se o Poder Público entende-se proprietário do imóvel que foi registrado em nome de um particular, cabe-lhe servir-se da via judicial própria, pois se trata de um vício extratabular. Igualmente, se um credor entende que o registro da transferência do imóvel deve ser invalidado por fraude contra credores, cumpre-se veicular sua postulação pela ação judicial pertinente.

Jamais poderá o juiz, em sede do procedimento de autotulela registral do art. 214 da LRP, decretar a nulidade de registro por vício extratabular, especialmente porque, nessas hipóteses, prepondera o interesse privado do prejudicado, e não o interesse público na adequada prestação do serviço público registral. Os limites objetivos do procedimento de autotutela registral são traçados pela existência ou não de vício tabular.

Esse é o entendimento pacificado dos tribunais.

No âmbito estadual, sob a relatoria do Desembargador Márcio Martins Bonilha - um expoente entre os juristas em Direito Notarial e Registral -, a Corregedoria-Geral de Justiça do TJSP entendeu pelo descabimento de, na via administrativa do procedimento da autotutela registral do art. 214 da LRP, decretar-se a nulidade de um registro fruto de um título lavrado com base em uma procuração falsa.

A propósito, assim consignou o talentosíssimo Desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho no parecer que subsidiou o referido julgado3:

5. Assim, na espe´cie, a controve´rsia diz respeito aos limites de aplicac¸a~o do artigo 214 da Lei n.6.015/73, ou seja, a` discriminac¸a~o das hipo´teses de conhecimento de nulidades passi´veis de serem declaradas e sanadas no a^mbito administrativo. 

6. Tal mate´ria ja´ foi objeto de numerosas deciso~es proferidas por esta Corregedoria Geral, inclusive algumas recentemente proferidas por Vossa Excele^ncia, como, pe., no Processo CG n.578/97, onde sempre restou frisada a necessidade de ser utilizado um crite´rio de legalidade estrita para a averiguac¸a~o da existe^ncia de vi´cios e resta limitado o exame do registrador e de seus superiores hiera´rquicos aos elementos constantes da ta´bua predial e do pro´prio ti´tulo, sem serem colhidas e apreciadas informac¸o~es estranhas ao fo´lio real, isto e´, extratabulares. 

7. O Egre´gio Supremo Tribunal Federal, no ensejo do julgamento do Recurso Extraordina´rio n.90.530 - RJ (RTJ 94/345), relatado pelo Ministro Xavier de Albuquerque, ja´ apreciou hipo´tese concreta semelhante a`quela noticiada nestes autos, formando entendimento ide^ntico e frisando que: "Se a nulidade do registro decorria da falsidade do ti´tulo que o havia propiciado, tal falsidade na~o poderia prescindir de declarac¸a~o judicial na via contenciosa". 

8. Nesse sentido, a provide^ncia ordenada, o cancelamento da Matri´cula 117.349, se recente da presenc¸a de obsta´culo intransponi´vel, pois pressupo~e o confronto imediato com um fato exterior ao Registro, a falsidade do instrumento de mandato utilizado para conferir poderes a um suposto representante do titular do domi´nio. 

9. Raza~o assiste, s.m.j., assim, ao recorrente, diante do solidificado entendimento no sentido de que apenas diante da existe^ncia de um vi´cio registra´rio e´ possi´vel fazer incidir o artigo 214 da Lei n.6.015/73. 

10. Nem se diga ter ocorrido violac¸a~o a princi´pio da especialidade subjetiva, visto inexistir imperfeic¸a~o quanto a` individualizac¸a~o de qualquer das pessoas mencionadas nos assentamentos registrais, ultrapassando a invalidade os limites do conhecimento pro´prio a` esfera administrativa. 

11. Ante o exposto, o presente parecer, que submeto ao elevado crite´rio de Vossa Excele^ncia, e´ no sentido de que seja dado provimento ao recurso interposto, reservado o conhecimento da falsidade apontada a` apreciac¸a~o jurisdicional.

16. No mesmo sentido, apontamos este julgado do TJSP:

"MANDADO DE SEGURANÇA. Impetração contra ato do Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que indeferiu pedido administrativo de anulação de averbação e registros imobiliários apontados pelo impetrante (proprietário do imóvel) como decorrentes de ação fraudulenta praticada por pessoa homônima. Alegação de ilegalidade por ofensa à regra de que "as nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta" (artigo 214 da Lei de Registros Publicos). Rejeição. O § 1º desse mesmo dispositivo estabelece que "a nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos". Fato indicativo de que a nulidade passível de anulação de pleno direito é somente aquela relativa à irregularidade de forma do registro, não abrangendo situações em que é necessário o reconhecimento de nulidade do próprio título, como ocorre no presente caso. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, proclamando que a via administrativa é inidônea para cancelamento do registro fundado em falsidade do título "devendo a questão ser solvida na via contenciosa" (RE nº 90.530/RJ, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. 20/05/1980). Direito líquido e certo inexistente. Segurança denegada."

(TJ-SP - MS: 22556392920168260000 SP 2255639-29.2016.8.26.0000, Relator: Ferreira Rodrigues, Data de Julgamento: 30/01/2019, Órgão Especial, Data de Publicação: 26/02/2019)

O STF, ainda nos idos de 1980, também já havia ecoado o mesmo entendimento, com a lembrança de que, apesar de o art. 214 da LRP ter passado a exigir contraditório expressamente a partir da mudança legislativa ocorrida com a Lei nº 10.931/2004, nada se alterou acerca dos limites objetivos do procedimento de autotutela registral. Veja:

Registro de imóveis. Cancelamento fundado em falsidade do título que lhe deu origem. Inidoneidade da via administrativa, devendo a questão ser solvida na via contenciosa. 2) Apelação. Seu julgamento deve ater-se aos limites da matéria devolvida ao conhecido do Tribunal de segundo grau. Inadmissibilidade da cassação, relativamente a quem aquiesceu ao pedido e não apelou, da sentença de primeira instância. 3) Recurso extraordinário parcialmente conhecido e provido."

(STF, RE 90530, 1ª Turma, Rel. Min. Xavier de Alburquerque, DJ 13/06/1980)

Listam-se, no mesmo diapasão, os seguintes julgados do STJ: STJ, REsp n. 691.456/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 27/6/2005; STJ, REsp n. 23.754/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 6/12/1993; STJ, RMS n. 69/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 5/3/1990; STJ, RMS n. 127/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Athos Carneiro, DJ de 10/9/1990 ; STJ, RMS n. 6.549/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nilson Naves, DJ de 14/4/1997.

Portanto, o procedimento de autotutela registral do art. 214 da LRP restringe-se a nulidade por vícios tabulares. Cabe ao interessado valer-se da via judicial pertinente caso pretenda o reconhecimento de nulidade por vícios extratabulares.

__________

1 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:

I - interesse público ou social;

II - interesse de incapaz;

III - litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.

Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público.

O termo "tabular" é uma metáfora em alusão aos registros públicos, dentro da ideia de que a escrita era lançada em tábuas em passado remoto.

3 (CGJSP, Processo nº 960/1997, Rel. Des. Márcio Martins Bonilha com parecer do então Juiz Auxiliar Marcelo Fortes Barbosa Filho, Data de julgamento 26/05/1997, Disponível aqui. Kollemata é um site organizado pelo enciclopédico jurista Sérgio Jacomino, que disponibiliza gratuitamente buscas a precedentes registrais e notariais.

4 No seu voto, o Min. Athos Carneiro consignou o seguinte: "realmente um registro determinado, bem ou mal, por sentença proferida em jurisdição contenciosa, ainda que em demanda possessória, não poderá ser de plano invalidado em decorrência de decisão prolatada em expediente administrativo, de 'consulta' formulada pelo titular do ofício imobiliário, com manifesto prejuízo a terceiros, não ouvidos e nem consultados, terceiros que, confiantes no registro, efetuaram ao longo dos anos negócios e adquiriram imóveis como sucessores na cadeia registral".