Pauta registral em destaque: A uniformização do instituto da união estável a partir do provimento 141/23 do CNJ
sexta-feira, 31 de março de 2023
Atualizado às 08:36
Com o advento da lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, dentre outras alterações, incluíram-se mudanças ao sistema dos registros públicos brasileiro, inovações apresentadas objetivando a modernização e simplificação dos procedimentos administrativos junto ao serviço extrajudicial, criando novas figuras jurídicas, agregando-as aos institutos preexistentes e ampliando o rol de atos praticados pelos registradores civis do país.
Ao aprimorar os serviços ofertados pelas unidades registrais de pessoas naturais, dentre as novidades, em que pese toda polêmica envolvendo a temática das Uniões Estáveis, destaca-se a viabilidade da lavratura do "Termo Declaratório ou Dissolutório de União Estável", formalizado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, cuja previsão encontra-se no caput do artigo 94-A1, acrescido à Lei de Registros Públicos.
A novel legislação, não obstante preze a segurança jurídica e social dos atos registrais e notariais, carecia de alinhamento regulamentar, no que se refere à estrutura de montagem do procedimento e ao marco temporal inicial da união, detalhes e minúcias necessárias à sua ajustada elaboração e à perfectibilização do registro.
Por se tratar de uma inovação no sistema jurídico pátrio, surgiram discussões acerca da competência, validade e viabilidade de execução direta com base no descrito em lei e, mormente, de dúvidas, na práxis, quanto ao procedimento para lavratura do registro no Livro "E", da última residência dos companheiros.
Tendo em vista a finalidade precípua dos registros públicos em garantir os ditames de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos2, a Sra. Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas do 1º Subdistrito (Sé) da Capital do Estado de São Paulo encaminhou Pedido de Providências, autuado sob n. 1089074-73.2022.8.26.0100, à 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, negando o registro de termos declaratórios de união estável, em razão da necessidade de prévia regulamentação administrativa. Na decisão relativa ao pedido, o MM. Juiz de Direito daquela Vara submeteu a questão à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, buscando a padronização dos procedimentos pelos Oficiais de Registro Civil paulistas.
Em paralelo, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) apresentou a ADI n. 7.260, ao Supremo Tribunal Federal, e Pedido de Providências, autuado sob n. 0004621-98.2022.2.00.0000, diretamente ao Conselho Nacional de Justiça, pugnando pelo sobrestamento da prática de atos registrais, relativos a elaboração do instrumento declaratório, de modo a sanar a sua competência e a sua validade, até a total regulamentação do instituto.
Após frutífero debate entre especialistas na área notarial e registral, eis que se direciona uma proposta de regulamentação, com tamanha solidez com que a questão merece, decidida pelo Conselho Nacional de Justiça, com o surgimento do Provimento 141, de 16 de março de 2023, alterando o Provimento n. 37, de 7 de julho de 2014, para atualizá-lo à luz da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, tratando, em específico, do Termo Declaratório de Reconhecimento e Dissolução de União Estável perante os Registro Civil das Pessoas Naturais e dispor sobre a alteração de regime de bens na União Estável e a sua conversão extrajudicial em casamento, pelas razões que passamos ao debate3.
A polêmica do termo declaratório de união estável e sua dissolução pelo mesmo instrumento
Embora dispense qualquer formalização, a União Estável corresponde a uma unidade familiar com plena proteção constitucional (nos termos do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 19884), consistente em uma situação familiar fática, que, para a sua instituição, despe-se de solenidade se equiparada ao instituto do casamento5.
Apesar da informalidade do instituto, dispensando quaisquer documentações, a legislação permite e, em algumas situações exige, a devida comprovação de sua existência, a citar, nos casos de vínculo previdenciário, alegação de dependência econômica, agregar dependente em planos de saúde, bem como na aquisição conjunta de bens imóveis pelos companheiros, entre outros exemplos.
Coexistem em nosso ordenamento jurídico, algumas formas de se documentar a constituição e, ou, a dissolução da União Estável: a) proferida em processo judicial, por meio de sentença; b) lavratura de escritura pública declaratória de união estável, perante Tabelião de Notas; e, atualmente, c) elaboração de termo declaratório, lavrado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais.
Interessante frisar, na prática, serem usuais as declarações unilaterais de união estável por mero instrumento particular, com a firma reconhecida do declarante, cujo ingresso é vetado no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais, não produzindo a eficácia desejada de publicidade perante terceiros ou ingresso comprobatório perante o registrador imobiliário. Sua corrente utilização, contudo, apresenta-se restrita a casos específicos, como, por exemplo, visitas íntimas em estabelecimentos prisionais, nosocômios e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.
Não obstante essa restrição, inúmeros companheiros convivem longos períodos sem uma formalização documental ou optam pelo reconhecimento judicial, e algumas das principais razões a esse fato são, eminentemente, a desinformação e, na maioria dos casos, a ausência de recursos financeiros.
No Estado de São Paulo, por exemplo, uma escritura pública de declaratória de união estável, sem dissolução ou partilha de bens, de acordo com a Tabela de Emolumentos para 2023, monta em R$ 541,70 (quinhentos e quarenta e um reais e setenta centavos)6, fora a alíquota de ISS, variável de acordo com o município de localidade da Serventia. Ademais, nas dissoluções, caso haja partilha de bens, no ato da escritura pública, há cobrança diferenciada sobre o patrimônio partilhado pelas partes, além da exação tributária (ITBI ou ITCMD se houver doação), assim como honorários advocatícios, encarecendo ainda mais o desenlace.
Por outro lado, caso as partes optem por um reconhecimento e, ou, dissolução judiciais, além das custas e emolumentos processuais e honorários destinados ao causídico, há também que se considerar o tempo dispendido com o processo judicial.
Isso porque, em inúmeros municípios brasileiros, a distância percorrida ao Fórum Judicial, cumulada à ausência de assistência da Defensoria Pública, de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil ou, mesmo, de um Tabelião de Notas local, têm dificultado o acesso amplo à justiça, mantendo uma parcela da sociedade à margem da formalização de sua união.
Nesse sentido, a lei Federal 14.382/2022, sensível às questões sociais, buscou agregar mais uma opção às partes, possibilitando aos Registros Civis das Pessoas Naturais a lavratura do Termo Declaratório de Constituição ou Dissolução de União Estável, um imperativo que socorre a demanda de uma camada social hipossuficiente, aproximando os operadores do direito, a sociedade como um todo e os serviços realizados no extrajudicial.
Ademais, o legislador, atrelado à consagração da desjudicialização e aos avanços da extrajudicialização nacional, prestigiou a atuação dos registradores civis (ofícios de cidadania), que proporcionam com êxito e presteza, de um modo célere e eficiente, uma alternativa menos onerosa aos conviventes, por intermédio de um instrumento acessível e democrático a documentar esse núcleo familiar, se comparado a outros meios de alcançá-lo, em que pese alguns pontos ainda precisem de ajuste.
Destarte, no que se revela essencial à sua instrumentalização, em conformidade com a atribuição da segurança e eficácia dos Termos Declaratórios e os Dissolutivos de União Estável, para fins de uniformização procedimental, a normativa trouxe a exigência de apresentação documental completa própria aos procedimentos administrativos7; além disso, requer seja observado o devido arquivamento do processo administrativo, assim como seja observada a emissão dos respectivos Termos efetuados em papel de segurança dos registros civis.
Ressalte-se que, por uma questão de paralelismo com as escrituras públicas, a fim de salvaguardar a segurança jurídica do ato, sugere-se ao Oficial Registrador que faça constar expressamente do instrumento entregue às partes que houve a assinatura de ambos os conviventes no requerimento arquivado.
A busca pela adequação nacional dos procedimentos ao espaço digital, via disponibilização na Central de Registro Civil (CRC-Nacional), torna necessária a construção de um módulo apropriado de instrumentalização dos Termos e seu encaminhamento para registro e averbações, consagrando a automação procedimental, inclusive projetando um índice, verdadeiro banco de dados, alimentado pelos registradores civis, facilitando as buscas, evitando litígios e contribuindo à formação dos dados estatísticos nacionais.8 Atualmente, com o intuito de suprir a demanda incipiente, o acesso está sendo disponibilizado dentro da CRC-Nacional9.
Note-se, mais uma vez, que não se trata de conflito de competências entre as serventias notariais e as registrais; mas de proporcionar ao cidadão mais um instrumento para realizar a dissolução da união, tendo o CNJ a cautela de exigir para o termo declaratório os mesmos requisitos que há para o ato notarial escritural, quais sejam: assistência de advogado ou defensor público, concordância das partes e inexistência de filhos menores ou incapazes.
Da alteração do regime de bens da união estável
Conforme já mencionado, a União Estável é uma situação eminentemente fática, mas que pode ser documentada formalmente a fim de resguardar direitos dos companheiros. Em um paralelo com o instituto do casamento10, não havendo documento escrito, o regime de bens que regula a união estável segue a regra da legislação civil pátria, comportando como regime patrimonial a comunhão parcial de bens.
Para o casamento, a alteração de regime de bens somente pode se dar de forma exclusivamente judicial, mediante pedido motivado dos cônjuges e ressalvados os direitos de terceiros, em virtude do § 2º do artigo 1.63911 do Código Civil. Já para a união estável, caso os companheiros decidam por elaborar um documento escrito, com a estipulação de um regime de bens diferente do legal, surge a controvérsia, se seria possível ao casal deliberar pelo efeito retroativo do regime escolhido12.
Permitir que o regime de bens dos conviventes retroaja, contudo, seria o mesmo que autorizar que a união estável receba tratamento mais benéfico do que o casamento, uma vez que os efeitos do regime de bens de pessoas casadas iniciam-se na data do ato formal e solene de celebração do matrimônio.
Ademais, o documento escrito, ainda que consubstanciado em instrumento público, possui eficácia inter partes, passando a repercutir efeitos perante terceiros apenas a partir do registro (ressalte-se, facultativo) da união estável no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais. Com o disposto no Provimento, estimula-se o registro e a consequente publicidade em relação a terceiros, com o propósito de imprimir mais segurança jurídica à situação fática. Trata-se, no entanto, de ponto polêmico, pela imputação genérica de atribuição, ainda sem precisar os efeitos advindos pelo tempo dessa forma de concretização; por ora, não dispensa uma análise mais acurada no decorrer da prática.
Pelo visto, nos termos do artigo 9º-A, caput13, acrescido ao Provimento n. 37/2014, será admissível o processamento do requerimento firmado por ambos os companheiros, sem especificar a exigência do reconhecimento de firma (por autenticidade ou simples) destinado ao pedido de alteração de regime de bens, mediante a instauração de procedimento administrativo com a respectiva averbação no registro da união estável no Livro Especial.
A partir da redação do Provimento, é possível extrair duas conclusões: primeira, para ser viável a alteração, a união estável precisará estar devidamente registrada no Livro "E" (registro de natureza facultativa14), pois é o registro que concederá efeitos perante terceiros à respectiva alteração; e, segundo, essa alteração será efetuada por um procedimento, em que o oficial analisará e deferirá (ou não) o requerimento, após exame deste e dos documentos apresentados pelos companheiros, cujo rol consta do artigo 9º-B15.
Outrossim, insta destacar, a norma procedimental determina inclusive que, caso a certidão de que trata o inciso IV, do art. 9º-B ("certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos") seja positiva - isto é, um dos companheiros for interditado-, a alteração de regime de bens somente poderá ocorrer na via judicial, assegurado o resguardo aos incapazes e terceiros de boa-fé.
Da mesma forma que outros procedimentos, a alteração do regime de bens poderá correr diretamente perante o ofício em que se encontra registrada a união estável no Livro "E", ou ser recepcionada em qualquer registro civil nacional, com encaminhamento à serventia responsável pelo registro por meio do módulo "e-Protocolo", da CRC-Nacional, nos termos do § 6º16 do referido artigo 9º-A.
Por fim, o Provimento dispõe no § 4º do 9º-A: "o novo regime de bens produzirá efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese"; ou seja, havendo o efeito ex nunc, acrescentando, ainda, que, "se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros".
Do procedimento de certificação eletrônica de união estável
Um grande imbróglio envolvendo a união estável, justamente por ser situação eminentemente fática que não obriga instrumentalização ou formalização, consiste na fixação do termo inicial da união, em virtude de declaração tardia feita pelos companheiros, cuja materialização usual visualiza-se no momento da sua conversão em casamento.
Explicitando melhor: muitos companheiros vivem há anos, talvez décadas, em uniões estáveis, gerando filhos e construindo um patrimônio em comum, sem a preocupação em documentar a convivência. As razões são as mais variadas, desde pessoas "desquitadas" (pela nomenclatura atual, separadas) que não efetivaram a dissolução do matrimônio - o que impede um novo casamento antes de encerrado o vínculo -, ou, simplesmente, por não desejarem se unir pelo casamento.
No entanto, reflexões sobre o futuro da relação, planejamento sucessório, direitos previdenciários, entre outras, fazem com que muitos casais busquem regulamentar, de forma expressa, a vigente situação familiar. Até a vigência da lei 14.382/2022, a maioria das decisões judiciais convergia no sentido de não ser possível a retroação da data de início da união por mera declaração dos conviventes, sendo necessária a formação de um processo judicial com amplitude probatória a fim de fixar seu termo inicial.
A fixação do marco temporal inicial da convivência tem seu principal reflexo no regime de bens. O exemplo contumaz que a prática denota é a hipótese em que um (ou ambos) dos companheiros já tenham completado 70 (setenta) anos: novamente, faz-se uma correspondência ao casamento, uma vez que, tanto na elaboração da lavratura da escritura pública declaratória, quanto na conversão em casamento, por questões etárias, há a imposição17 do regime da separação obrigatória de bens, nos termos do artigo 1.641,18 inciso II, do Código Civil.
Com isso, casais que conviviam em união estável não formalizada (a quem aplicar-se-ia, conforme já mencionado, o regime legal da comunhão parcial de bens), viam-se acuados a adotarem um outro regime, da separação obrigatória, a partir do momento da formalização. A discussão da imposição do regime da separação obrigatória de bens é tão relevante que o Supremo Tribunal Federal decidirá se é constitucional a aplicação desta regra para os casamentos e, consequentemente, para as uniões estáveis. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236) do Supremo Tribunal Federal.
No Estado de São Paulo há decisões19 no sentido da possibilidade da lavratura de escritura pública em que as partes declarem que a união remonta a data anterior, com a escolha de regime de bens outro que não o impositivo, resguardadas conjunturas em que se evidencia o interesse fraudulento do casal20.
Por ser da própria essência da união estável sua concretização com o decorrer do tempo21, tendo a convivência more uxorio se iniciado anteriormente à referida faixa etária, é natural que, ao verificar a necessidade de documentar a união, os companheiros não desejem ter sua vontade tolhida, com a imposição de um regime protetivo que pode estar em desacordo com seus anseios.
Outra polêmica surge caso seja da vontade do casal converter sua união estável em casamento, sem a imposição do regime protetivo: ainda que possuíssem documento escrito firmando data anterior, por uma questão de segurança jurídica, os companheiros eram direcionados a buscar o reconhecimento pretérito da união perante o Poder Judiciário, fazendo uso de todas as provas em direito admitidas para demonstrar a longevidade da convivência, como prova testemunhal, registro de nascimento de filhos em comum, contas conjuntas bancárias, fotografias, etc.22
Em outras palavras, a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça23, já reconheceu a possibilidade de conversão da união estável em casamento com a opção por regime que não a separação obrigatória de bens caso os companheiros já convivessem anteriormente, mas essa possibilidade não é autoaplicável ou automática, uma vez que os efeitos das decisões são inter partes. No Estado de São Paulo, por exemplo, há decisões locais em sentido contrário24, sendo necessário que o casal buscasse judicialmente o reconhecimento prévio da união, para somente após realizar a conversão em casamento por regime diverso do impositivo.
A lei 14.382/2022, pelo § 6º, artigo 70-A, incluído na Lei de Registros Públicos, a fim de contribuir para a resolução dessa questão, criou o chamado "Procedimento de Certificação Eletrônica de União Estável" realizado perante oficial de registro civil, no presente devidamente regulamentado, nos termos do descrito no artigo 9º-F, acrescido pelo Provimento n. 141/2023 ao Provimento n. 37/2014.
Por meio dessa espécie de procedimento administrativo, a requerimento dos interessados, caberá ao registrador civil das pessoas naturais aferir e consolidar o termo inicial e final da união estável, mediante entrevista pormenorizada junto aos companheiros (§§ 3º e 4º do art. 9º-F), bem como tecnicamente observar o contexto probatório apresentado pelos conviventes (§ 2º), inclusive testemunhal (§ 3º), de modo a atestar o respectivo tempo de convivência25, garantida a segurança jurídica inerente aos atos registrais.
E, como consequência dessa certificação, será possível aos conviventes maiores de 70 (setenta) anos afastar a imposição do regime da separação obrigatória de bens26, caso decidam fazer a conversão da união estável em casamento27, sem necessidade de processo judicial, mediante um procedimento administrativo a ser realizado diretamente no RCPN.
A análise probatória documental em sede de procedimentos administrativos não é algo totalmente inédito aos registradores civis de pessoas naturais, que já possuem essa atribuição em outras situações, como em procedimentos de retificação, de alteração de patronímico, de alteração de nome e gênero (Provimento n. 73 do CNJ), de alteração de nome e sobrenome (as novíssimas possibilidades incluídas pela lei Federal 14.382/2022).
Vale ressaltar, em certos casos, até mesmo o exame probatório efetuado pelos Oficiais Registradores é considerado acurado e minucioso, abarcando outras provas lícitas em direito admitidas, além da documental, como nos procedimentos de registro tardio (Provimento 28/2013, do CNJ) e no procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63/2017, do CNJ) mediante apuração e critérios objetivos, por intermédio da verificação provas e de declarações dos interessados.
Assim, a possibilidade de certificação eletrônica de união estável perante os registradores civis apresenta-se como potencial instrumento de desjudicialização, ao solucionar questões pontuais da união estável, inclusive possibilitando àqueles que já convivem fazer constar a data de início e eventual término da união em seus documentos, e até mesmo na conversão da união estável em casamento.
Considerações finais
O Registro Civil das Pessoas Naturais acompanha a evolução da sociedade e da família, buscando resguardar a todos, sem distinção, e com atenção voltada a servir a comunidade abarcada pelos serviços registrais.
As recentes atribuições concedidas à esfera registral, sem dúvida, prestigiam e reconhecem a colaboração e a projeção nacional inexorável, bem como a dedicação dos oficiais civis em fornecer segurança jurídica e, principalmente, segurança social aos diversos núcleos familiares da sociedade brasileira.
Ressalta-se que as novas atribuições representam apenas mais uma via de acesso à consolidação da formalização do núcleo familiar dos conviventes em união estável, não havendo intenção conflitual de competência entre as especialidades do extrajudicial.
Portanto, tece-se o convite à reflexão, em homenagem às palavras do registrador imobiliário João Pedro Lamana Paiva: "É através dos debates que novas ideias germinam e outras já existentes tornam-se mais acuradas"28, dito em prestígio a todo o trabalho desenvolvido pelas serventias extrajudiciais no Brasil, referência ao destaque alcançado, fruto da confiança depositada pela sociedade, pelos representantes do Congresso Nacional e pelos membros do Poder Judiciário nos serviços desempenhados pelos inúmeros ofícios situados no país.
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1 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, art. 94-A, caput: "Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: [...]."
2 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 1º, caput, com redação dada pela lei 6.216, de 30 de junho de 1975: "Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei."
3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023.
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 226, § 3º: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."
5 Desse modo, "a posse do estado de casado, por si só, não equivale a casamento. É uma situação de fato, de vivência more uxorio, que serve como prova de casamento que tenha sido efetivamente celebrado. Sem esse antecedente, a mera situação fática da posse do estado de casado seria, eventualmente, uma união estável", que poderia converter-se em casamento a pedido das partes. Os elementos que caracterizam a posse do estado de casados são: a) nomen, indicativo de que a mulher usava o nome do marido; b) tractatus, de que se tratavam publicamente como marido e mulher; c) fama, de que gozavam da reputação de pessoas casadas. A rigor, a posse do estado de casados não constitui prova das justas núpcias, visto não se admitir presunção de casamento. Não se pode considerar existente a união conjugal pelo fato de conviverem e coabitarem duas pessoas e terem filhos. É difícil distinguir a sociedade conjugal de uma união estável, pois que esta também se caracteriza pelos três elementos suprarreferidos: nomen, tractatus e fama. O que distingue as duas situações é a prova da celebração, que deve existir, sob pena de toda união estável ser tida como casamento. Faculta-se a prova subsidiária de sua realização, justificada a falta do registro. A posse do estado de casados constitui, pois, prova hábil da celebração do casamento quando tem cunho confirmatório, não se prestando a tanto quando desacompanhada de outra prova do ato". (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, Direito de família. Vol. 6. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 45).
6 BRASIL. Lei Estadual n. 11.331, de 26 de dezembro de 2002. Tabela I, atualizada para 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023.
7 Certidões civis de nascimento ou casamento (de preferência atualizadas, com emissão nos últimos 90 dias), comprovante de residência e documentos pessoais dos declarantes.
8 ARPEN Brasil. Considerações acerca da lei 14.382/2022. Disponível aqui. Acesso em: 22/03/2023.
9 A partir da data 29/03/2023, foi disponibilizada ferramenta para realização das cargas e consulta dos termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável lavrados desde a edição da lei 14.382/2022 nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Disponível aqui. Acesso em: 29 mar 2023.
10 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.640: "Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial."
11 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.639, § 2º: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros".
12 Dentro da própria Corte do Superior Tribunal de Justiça, foi possível visualizar tal divergência, no julgamento do Recurso Especial n. 1.845.416, em que o Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze defendeu ser possível a retroação do regime de bens, quando formalizado pelos conviventes em documento público declaratório de união estável, no qual expressaram viver com patrimônios separados desde o início do relacionamento. A Ministra Nancy Andrighi, em voto divergente, acompanhado pelos demais Ministros da Terceira Turma, posicionou que a união estável nasce no regime da comunhão parcial de bens por imposição legal e, no decorrer da conjugalidade, pode tomar outra forma patrimonial, desde que pactuada, e com efeitos prospectivos. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.845.416 - Mato Grosso do Sul, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/08/2021, DJe 24/08/2021).
13 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, caput: "É admissível o processamento do requerimento de ambos os companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público."
14 "Repise-se que a união estável não prescinde do instrumento jurídico de materialização para alcance dos seus efeitos legais, entretanto há notório benefício aos companheiros, bem como aos terceiros, na confecção de documento com tal propósito, que pode ou ser não registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais (como a própria confecção do instrumento, também é facultativo o registro, mas importantíssimo para fins de publicidade e amplo conhecimento de terceiros). [...] Reforça-se ainda que o ato de publicidade do termo declaratório com o ingresso no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm sua residência não é automático ou obrigatório, mas recomenda-se fortemente que seja realizado, pois é exatamente da publicidade do termo que terceiros poderão ter conhecimento da união estável e dos contornos jurídicos entabulados." (PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. O Termo Declaratório da União Estável - Da materialização do instrumento aos efeitos jurídicos possíveis. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023).
15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-B: "Para instrução do procedimento de alteração de regime de bens previsto no art. 9º-A, o oficial exigira' a apresentação dos seguintes documentos: I - certidão do distribuidor cível e execução fiscal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); II - certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; III - certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; IV - certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos; V - conforme o caso, proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar."
16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, § 6º: "O requerimento de que trata este artigo pode ser processado perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de livre escolha dos companheiros, hipótese em que caberá ao oficial que recepcionou o pedido encaminhá-lo ao ofício competente por meio da CRC".
17 O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado sobre o tema, desde antes da mudança do limite etário, no sentido de que há extensão do normativo protetivo do idoso aos companheiros, decidindo que, "por força do art. 258, § único, inciso II, do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002), ao casamento de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o regime de separação obrigatória de bens. Por esse motivo, às uniões estáveis é aplicável a mesma regra, impondo-se seja observado o regime de separação obrigatória, sendo o homem maior de sessenta anos ou mulher maior de cinquenta". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 646.259 - Rio Grande do Sul, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 24/08/2010).
18 BRASIL. Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.641: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial".
19 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1000633-29.2016.8.26.0100. Parecer 220/2016-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria Iberê de Castro Dias, aprovado pelo Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, DJe 21/11/2016.
20 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Câmara Especial. Recurso Administrativo n. 0048142-07.2015.8.26.0100. Des. Rel. Renato de Salles Abreu Filho, julgado em 07/08/2017.
21 "A união estável, como situação de fato não se sujeita a nenhuma solenidade. Normalmente, concretizar-se-á com o decorrer do tempo, pois não há como saber previamente se ela será duradoura e estável. Dessa forma, eventual contrato de convivência pode ser formalizado a qualquer momento, seja na sua constância seja previamente ao seu início. Isso se justifica, pois, como não se submetem às solenidades e rigores do casamento, os conviventes possuem maior liberdade para decidir o momento em que vão celebrar o contrato. Além disso, o que não é proibido ou contrário à lei, presume-se permitido." (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.383.624 - Minas Gerais, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 02/06/2015, DJe 12/06/2015).
22 Interessante mencionar que a Lei Federal n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, já contemplava uma situação análoga, em seu artigo 45, in verbis: "Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existentes antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no artigo 258, parágrafo único, nº II, do Código Civil."
23 No ano de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, excepcionando a regra legal que impõe o regime da separação obrigatória, afastou "a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1318281 - Pernambuco, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 01/12/2016, DJe 07/12/2016).
24 O recorrente nasceu em 7 de novembro de 1943 (fls. 3) e completou setenta anos de idade no ano de 2013. Em razão disso, para o casamento é obrigatória a adoção do regime da separação de bens, sendo, portanto, cogente a observação do disposto no inciso II do art. 1.641 do Código Civil [.] Neste caso concreto, essa solução não é alterada pela alegação de anterior manutenção de união estável em que adotado o regime da comunhão universal de bens. Assim porque a escritura declaratória de união estável, com adoção do regime da comunhão universal de bens, foi lavrada em 12 de setembro de 2018, nas páginas 51/52 do Livro n. 1.344 do 18º Tabelião de Notas da Capital (fls. 5/6), quando o recorrente já tinha completado mais de setenta anos de idade. No que tange ao conteúdo, ou seja, ao fundo das declarações de vontade das partes reproduzidas na escritura pública, não existe presunção de veracidade decorrente da fé pública do tabelião, mas somente presunção de que essas declarações foram, efetivamente, manifestadas ao Tabelião de Notas. [.] Por outro lado, a natureza administrativa do procedimento de habilitação de casamento não autoriza o uso de fotografias para a comprovação de que a união estável teve início quando o companheiro não tinha completado setenta anos de idade. Resta aos nubentes, diante disso, valer-se da ação jurisdicional adequada para eventual autorização do casamento com adoção de regime de bens distinto do legal. (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1107198-46.2018.8.26.0100. Parecer 267/2019-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria José Marcelo Tossi Silva, aprovado pelo Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, julgado em 24/05/2019).
25 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-F, caput: "O procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil autoriza a indicação das datas de início e, se for o caso, de fim da união estável no registro e é de natureza facultativa (art. 70-A, § 6º, lei 6.015, de 1973)."
26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-D, § 3º: "Não se aplica o regime da separação legal de bens do art. 1.641, inciso II, da Lei nº 10.406, de 2002, se inexistia essa obrigatoriedade na data indicada como início da união estável na forma do inciso III do art. 9-C deste Provimento ou se houver decisão judicial em sentido contrário".
27 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-C, caput e inciso III: "No assento de conversão de união estável em casamento, devera' constar os requisitos dos arts. 70 e 70-A, § 4º, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, além, se for o caso, destes dados: [...] III - a data de início da união estável, desde que observado o disposto no art. 1º, §§ 4º e 5º, deste Provimento."
28 Entrevista concedida ao Jornal do Notário em jan/fev 2023. Colégio Notarial do Brasil. Conheça o registrador de imóveis e especialista em adjudicação compulsória: João Pedro Lamana Paiva. Jornal do Notário, ano XXV, n. 213, jan/fev 2023, p. 17.