MP 1.085/21: A luz dos fatos para espantar os monstros noturnos
quarta-feira, 13 de abril de 2022
Atualizado em 12 de abril de 2022 15:01
Li com atenção o artigo publicado nesta coluna no dia 30 de Abril (O vinho e a água chilra)1, com críticas contundentes à MP 1.085/2021. Como um dos muitos autores dessa Medida Provisória, tenho me preocupado em ler as opiniões divergentes e, sempre que possível, contribuir com a construção de consensos.
Há um aparente equívoco quanto à motivação para a criação do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP e a extensão dos seus efeitos sobre cada modalidade registral. O SERP não foi pensado para o registro de imóveis (que já conta com o Operador Nacional do Registro Eletrônico - ONR), nem mesmo para ser uma entidade para-registral dotada de personalidade jurídica, como, com razão, criticam alguns oficiais de registro. O SERP não foi concebido para modificar a qualificação registral, nem a delegação de registradores de imóveis, muito menos para modificar a forma como se registra os atos nas matrículas. Aliás, em nada se relaciona com isso. Daí a necessidade de se remover os espantalhos para que, sem histeria, se possa alcançar convergência.
Havia no início ao menos três problemas a serem resolvidos, em relação às plataformas eletrônicas. O primeiro, a necessidade de unificar nacionalmente a operação eletrônica do Registro de Títulos e Documentos, nos mesmos moldes do ONR - isso levou ao desenvolvimento dos extratos registrais para bens móveis e da certidão unificada nacional de garantias, restrições, cessões de crédito e arrendamentos mercantis financeiros, obtida por meio do CPF/CNPJ consultado. O segundo, o desejo de levar à lei alguns serviços relativos a imóveis, previstos para o SAEC (sistema do ONR) e que permanecem apenas objeto de normativa do CNJ. O terceiro, a necessidade de se estabelecer troca de informações entre serventias de diferentes modalidades - este foi o berço do SERP.
O terceiro problema que cito acima tem especial reflexo sobre os bens móveis. Há uma gravíssima anomalia na legislação brasileira ao atribuir competência para registro de garantias reais sobre os mesmos bens móveis a diferentes serventias: os penhores especiais são registrados no livro 3 - auxiliar, do Registro de Imóveis, ao passo que as alienações fiduciárias de bens móveis são registradas no RTD. Nenhum dos dois atualmente cumpre bem sua função de publicidade sobre os bens móveis, em especial pela descentralização das informações e pela dificuldade de obtenção de certidões exaustivas, que efetivamente apresentem a totalidade dos atos registrados. Essa constatação tem levado muitas vezes a discussões e iniciativas de excluir por completo a necessidade do registro público.
Por exemplo, há uma conhecida corrente jurisprudencial no STJ que dispensa o registro público para as cessões fiduciárias de créditos em geral, criando um sistema clandestino que confia apenas na intimação dos devedores para determinar se um crédito foi cedido em garantia (evidentemente, não se está aqui a falar dos ativos financeiros, objeto da Lei 12.810, que seguem sistemática diversa). De outro lado, são corriqueiras as discussões quanto à criação de um sistema próprio para o registro das garantias relacionadas ao agronegócio, retirando-as dos registros públicos. Está claro para todos que o atual sistema registral sobre bens móveis não atende sua função, especialmente no âmbito do agronegócio, o que, como bem demonstra o artigo a que me referi no início2, é o argumento perfeito para a afastabilidade do registro público.
A lacuna registral do agronegócio brasileiro, ao contrário do que afirmou o ilustre registrador, não é um problema tão excepcional quanto um raio que cai duas vezes sobre o mesmo ponto. Certamente não se registram penhores rurais em uma circunscrição cravada no coração de São Paulo, mas basta olharmos para o restante do país e perceberemos que o agronegócio não só tem enorme relevância, como tem sido um dos principais motivadores de mudanças na legislação de crédito e, por tabela, nos registros públicos. Essa foi a realidade na MP do Agro, que se converteu na lei 13.986/2020, e certamente será na nova MP da CPR, 1.104/22, em que já surgem emendas relacionadas ao tema dos registros públicos.
Penso que a solução correta para toda essa anomalia seria concentrar os registros sobre bens móveis no RTD, eliminando-se a atual competência do Livro 3 - Auxiliar, de Registro de Imóveis, para penhores especiais. É evidente que, para isso, torna-se também necessário a criação do operador nacional do RTD e, como já prevê a MP 1.085/21, também da certidão nacional, emitida de forma online. Essa é a solução definitiva proposta no anteprojeto de reforma das garantias reais no Código Civil, do qual fui relator no âmbito do Grupo de Estudos Temático (GET) criado pelo Ministério da Economia em 2021, ainda não enviado ao Congresso Nacional.
Não obstante, ao redigirmos a MP 1.085/21, sabendo que teria tramitação mais célere, enxergamos na interoperabilidade entre serventias uma solução de cunho mais imediato: mantida a competência do Livro 3 de Registro de Imóveis para os penhores especiais, caberia aos registradores de imóveis lançar essas informações em um sistema interoperado com o RTD, de modo que a certidão unificada nacional pudesse de fato ter a totalidade da informação disponível nos registros públicos quanto às garantias sobre bens móveis. Esse sistema, a princípio, seria compartilhado entre as especialidades, com a primazia do RTD e o auxílio do ONR.
Deve-se reconhecer que a interoperabilidade proposta também causa dificuldades. Uma delas é a necessidade de se estabelecer um marcador temporal unificado para o protocolo, para que penhores e outras constrições contraditórias sobre bens móveis não sejam protocolados em serventias distintas, com competências distintas, sem que se determine uma perfeita ordem temporal, sob o princípio "prior in tempore, potior in iure". Afirmou-se não compreender a necessidade de tamanha rigidez3, mas isso porque se está a racionar sob a ótica dos bens imóveis e urbanos. Não tenho dúvidas de que são raras duas hipotecas do mesmo imóvel e no mesmo dia - não posso dizer o mesmo, entretanto, quanto à dinâmica da economia sobre bens móveis. É para isso, e apenas para isso, que se pensou a necessidade de marcador temporal para os móveis. Necessidade, aliás, que não é invenção brasileira.
Como bem afirmado a partir da citada dissertação de mestrado de Constanza Bodini4, de quem fui feliz examinador, trata-se de prover o sistema jurídico brasileiro de uma publicidade adequada para as transações sobre bens móveis, seguindo-se exemplos já disseminados e comprovados em âmbito internacional, a partir das leis modelo aprovadas na OEA e na ONU (UNCITRAL), e reproduzidas em locais de culturas jurídicas tão díspares quanto Chile, Colômbia, Canadá e China.
Entre 2015 e 2018, fui apontado pelo Ministério das Relações Exteriores como delegado no grupo de trabalho da UNCITRAL que redigiu a lei modelo da ONU, composto de 60 países. A partir dessa experiência, pude também redigir reformas de garantias em Angola, Madagascar, Moçambique, São Tomé e Príncipe e, finalmente, no Brasil, todas com influência desses padrões internacionais.
Em Angola e Moçambique, onde leis de reforma das garantias mobiliárias já foram aprovadas, criamos sistemas eletrônicos que estabelecem marcador temporal no ponto de entrada de protocolos e, ato subsequente, reencaminham o ato para registro ao registrador competente, entre os vários do país (podem ser acessados nos sites www.crgm.gov.ao e www.crgm.gov.mz, que contêm links para as respectivas legislações). São modelos mais simples que o SERP porque, nesses países, não havia repartição da competência registral sobre bens móveis entre RTD e RI. No entanto, esses modelos replicam a mesma solução de centralização do protocolo eletrônico e de certidão única nacional proposta para o SERP. E, mais importante, não retiram de nenhum registrador o seu status legal, nem a capacidade de qualificar títulos.
Os méritos desse sistema, baseado em padrões internacionais, são bastante óbvios. Há extensa literatura sobre seus benefícios, inclusive de análise econômica do Direito5. São também nessa linha os comentários feitos nos demais textos citados pelo artigo supracitado de Jacomino, entre os quais um artigo escrito por João Grandino Rodas, meu livro "Garantias das Obrigações" (Ed. Iasp, 2017) e a publicação de um encontro que promovi em conjunto com a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), em 2017, que contou com a participação do Prof. Spyridon Bazinas, à época secretário do grupo de trabalho de reforma de garantias da UNCITRAL, e hoje professor em Viena. Em meu livro "Garantias das Obrigações", trato detalhadamente da ideia de unificação registral de garantias mobiliárias (§§ 745 a 752, pp. 675 a 687) e cito exemplos e estudos estrangeiros, sem mencionar, uma única vez, que tratamento equivalente deveria ser estendido ao Registro de Imóveis. Ao contrário, digo expressamente que:
"A conveniência de cada um dos modelos é frequentemente debatida e permite respostas distintas para bens imóveis e móveis ou, em nossa visão, para bens cuja titularidade é determinada pelo registro, em oposição aos bens cuja titularidade é presumida pela posse. Nesse sentido, resta claro que a publicidade da hipoteca (...) deverá permanecer sob os chamados efeitos positivos, exigindo o exame pelo Oficial e a qualificação do título, condições para o seu registro" (§ 748, p. 678).
Há ainda inúmeros textos sobre o assunto disponíveis na Internet, que são antídoto certeiro aos espantalhos e monstros noturnos. Basta compreender, ao lê-los, que o termo em inglês "secured transactions", onipresente nos estudos internacionais de centralização registral, significa tão somente "garantias mobiliárias" - aqui, um mero erro de tradução poderia ter consequências catastróficas na interpretação de texto.
Foi a partir do histórico acima que escrevemos os artigos relacionados às plataformas eletrônicas, nas primeiras versões da MP 1.085. Evoluções posteriores no texto legislativo levaram à criação do SERP como entidade autônoma (ou "super-ONR"), mudança que não considero necessária para o fim inicialmente proposto.
Sabemos também que, mediante a criação do SERP, outras funcionalidades foram agregadas. Entre elas, a inclusão do RCPN e dos tabelionatos de protesto, e a possibilidade de que as certidões unificadas de garantias sobre bens móveis, inicialmente concebidas, viessem a agregar também informações sobre ônus imobiliários, auxiliando a difusão de informações sobre o crédito. Essa inclusão gerou debates robustos.
Pessoalmente, considero sempre positivo que se amplie a publicidade e o acesso à informação constante dos registros públicos, mas compreendo os argumentos contrários apresentados. Vale dizer, listar as hipotecas imobiliárias em uma certidão online não significa mudar seu modo de qualificação e de registro, à moda dos bens móveis - é apenas permitir que sua existência seja evidenciada em uma busca de indicador pessoal. Outra possibilidade, sem a necessidade do SERP, seria o próprio ONR fornecer uma busca nacional de indicador pessoal para garantias imobiliárias. Assim teríamos duas certidões de indicador pessoal distintas: uma para móveis, outra para imóveis.
Sobre os diversos exemplos e possibilidades, discussões amplas ocorreram em um evento promovido no ano passado, que contou com importantíssimos convidados internacionais (Prof. Alejandro Garro, Columbia University; Prof. Ignacio Tirado, Univ. Autonoma de Madrid; Prof. Giuliano Castellano, Hong Kong University; Gavin McCosker, gestor da central de registros mobiliários da Austrália) - Disponível aqui.
Críticas e debates são meios necessários para que sejam feitas correções de rumo e, ao que parece, muitas das mais de 300 emendas propostas ao texto da MP 1.085/21 já pretendem readequar a qualificação do SERP, separar as plataformas eletrônicas por modalidade de registro e endereçar outras críticas de registradores.
É importante, entretanto, que nesse processo não se desvirtue o propósito primordial da norma, deixando problemas reais sem soluções adequadas. A MP 1.085 é uma extraordinária oportunidade para a melhoria do funcionamento dos Registros Públicos e, especialmente, da percepção pública sobre a sua relevância social. Desnaturar a MP ou, ainda, permitir que simplesmente caduque, abrirá a porta para que novas soluções sejam propostas aos mesmos problemas, possivelmente à margem de todos os trabalhos e estudos já feitos, dos registros públicos e da segurança jurídica. Quem tem a ganhar com isso? Com a aprovação da MP, não há dúvida que ganharão os registradores e também o país.
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1 Disponível aqui.
2 Diz o autor: "A constitutividade do registro das garantias fiduciárias sobre veículos automotores foi destruída por um argumento que, no fundo, se assentava e legitimava pela ineficiência da arquitetura analógica do registro de direitos. O registro nos órgãos de trânsito seria considerado pelo STJ "mais eficaz do que a mera anotação no Cartório de Títulos e Documentos (RTD)", na dicção do ministro LUIZ FUX, em triste precedente para a categoria. A exigência legal seria uma "odiosa imposição", segundo ele, em afronta ao princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel artigo 1.361 do Código Civil".
3 Id., Ibid: "Pois bem. Foi isso que aconteceu com o SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Sob o pífio argumento de que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD, RCPJ e RI - inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no mesmo título e com registros em especialidades diversas. A "prenotação" dos títulos, feita concomitantemente na plataforma eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia jurídica do negócio. Nunca entendi muito bem este argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria mais do que suficiente."
4 Registro de garantias mobiliárias: uma proposta para sua modernização. São Paulo: FGV, 2019.
5 J. ARMOUR, The Law and Economics debate about secured lending: lessons for European lawmaking? in H. Eidenmüller, E.-M. Kieninger (eds.), The Future of Secured Credit in Europe, ECFR special volume, p. 14, Berlin, De Gruyter, 2008; E. BENMELECH, N. K. BERGMAN, Collateral pricing, in Journal of Financial Economics, vol 91, p. 339, 2009; J. R. BOOTHAND, L. C. BOOTH, Loan Collateral Decisions and Corporate Borrowing Costs, in Journal of Money, Credit and Banking, vol. 38, p. 67, 2006; R. HASELMANN, K. PISTOR, V. VIG, How Law Affects Lending, in Review of Financial Studies, vol. 23, p. 549-80, 2010; E.-M. KIENINGER, Introduction: security rights in movable property within the common market and the approach of the study, in E.M. Kieninger (org.), Security Rights in Movable Property in European Private Law, p. 6, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.